30.9.17

Diário de Bordos - Lisboa, 01-10-2017

Era um gajo surdo, tão surdo que a surdez se lhe via de longe.

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Uma das coisas boas de andar de bicicleta em Lisboa é que se fica imediatamente a saber que temos os melhores condutores de automóveis do mundo. Um ciclista faz uma daquelas microscópicas, inofensivas e irrelevantes infracções e logo a chusma dos automobilistas que nunca estacionaram em cima de um passeio, passaram com um sinal vermelho, viraram sem pisca-pisca e por aí fora apita e manifesta a sua indignação.

 (Forçoso é porém reconhecer que hoje um automobilista cruzou-me quando eu ia em contra-mão e parou para me deixar passar.)

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A maré baixa, baixa e o Verão prolonga-se. Antes assim. Maré vazia por maré vazia ao menos que seja no calor.

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A amizade faz aparecer o melhor que há em cada um de nós; a família dá ao pior um vasto campo de possibilidades de manifestar-se.

Pitigrilli, um autor que fez as delícias da minha adolescência escreveu numa das suas muitas e hoje justamente esquecidas obras "pior do que inimigos, eles eram irmãos". Percebia sem dúvida de irmãos, talvez por experiência directa; e de amigos, quanto mais não fosse a contrario.

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Ontem (na verdade ainda é hoje) fiz sessenta anos. Aquece-me pouco e arrefece-me menos: o jogo só acaba no fim. Até a linha ser cruzada a regata continua; a viagem não acaba até os cabos estarem passados, a máquina parada e à manobra ter sido dada volta.

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Breve entrevista com R., que vai animar um dos meus ateliers flutuantes. A graça existe; neste caso é dupla, interior e exterior.

Sorte a minha: tem aquele tipo de graça contagiosa, airosa (como em aérea), leve e transbordante. Acompanhou-me o que sobrava do dia.

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Avanço pelo tempo como um porta-aviões sem escolta: invencível e vulnerável. Fortaleza frágil, solitária no meio do deserto.

A imagem é mais bonita do que verdadeira, mas não muito.

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Estou cansado, esgotado, exausto como se os sessenta anos que levo tivessem decidido encavalitar-se-me aos ombros.

E na cabeça também, de resto. É em dias assim que lamento não ser capaz de dormir muito. Uns dez anos, por exemplo.

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Ao fim e ao cabo uma só palavra sobrevive. Ou melhor, flutua: hallelujah. E um sinal de pontuação: !

29.9.17

Montanha russa

Interessa-me pouco quando acontecem os picos. São sempre bons. Mas as cavas (as das vagas e o vinho) que venham no Verão.

28.9.17

Ora bolas!

A esperança média de vida aumentou, diz a SIC.

26.9.17

Etologia

Começo a conviver com animais domésticos. Descobri que os cães são do género masculino e os gatos do feminino. Os periquitos não sei. Devem ser transexuais. 

Trilema

Ryan Air, Hubris Air ou Icarus Air? 

Re-edição

Pro, por, a favor de

Um dos argumentos em favor das senhoras jovens é a pena que dá imaginar tão bonitas mamas nas mãos inseguras e boçais dos putos da idade delas.

Já as senhoras mais velhas têm uma grande vantagem: não há corpo novo que valha uma cabeça vivida.

25.9.17

Léxicos e linhas

Há quem chame "rabanada de vento" a uma rajada (são os mesmos que dizem "uma âncora" em vez de "um ferro" ou pensam que um hélice é feminino e usam o artigo correspondente: "a hélice", expressão que soa mal, fere os ouvidos e a alma de quem a ouve).

Pouco importa. Aos terráqueos os franceses chamam "elefantes" (em francês, claro) porque não sabem andar a bordo e ainda menos falar. Não nos preocupamos muito com eles, excepto quando nos vomitam o sofá ou nos obrigam a ter um olho permanente neles não vão passar ao charco e fazer-nos voltar atrás.

Hoje estou preocupado com os fazedores de puzzles. Aqueles complicados, de cinco mil peças das quais quatro mil são mar e as outras céu ou prados verdes ou deserto.  Toda a gente sabe o trabalho que dão; e de repente vem uma estúpida de uma rajada de vento ou o remoinho de um hélice e manda-nos as peças todas para o fundo, onde parece que vão ficar fundeadas com ferros de cinquenta quilos (cada peça).

Um marinheiro, sendo basicamente um gajo que se sabe o mais fraco elo da cadeia e - simultaneamente - o mais forte encolhe os ombros, amaldiçoa duas ou três gajas que num passado mais ou menos distante lhe lançaram um mau olhado  (ou uma gonorreia, vá lá saber-se) e começa a ir ao fundo recuperar as peças uma a uma, põe-as à sota de uma antepara para não voltar a acontecer - sabendo perfeitamente que vai voltar a acontecer por outra razão qualquer - e recomeça a merda do puzzle.

Há quem ache isto louvável. Eu não. É simplesmente inevitável e a linha que separa o inevitável da estupidez é muito fina. Tanto como a que separa a vida da morte.

22.9.17

Tentemos

Pela primeira vez nos quase quatorze anos deste blog vou escrever bêbedo.

Bom.

Não garanto que seja a primeira vez. Deve ter acontecido antes.

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O princípio

Vamos começar por aqui: é obrigatório infrigir a lei.

Aviso à navegação

Entrei pela primeira vez numa coisa chamada Fábrica Coffee Roasters, na rua das Portas de Santo Antão. Estou contente porque contou por duas: a primeira e a última. A escolha de cafés é limitada, o serviço indescritível de mau, os preços para londrinos em férias. Gostava de me lembrar de mais coisas para demolir isto mas não me lembro. Estas chegam, de qualquer forma.

Em louvor do SNS e outras declarações

As pessoas que têm o azar de ler regularmente este blogue sabem a admiração intensa e profunda que eu tenho pelo Serviço Nacional de Saúde. Não é blague nem ironia: tenho sido extremamente bem tratado pelos nossos médicos, enfermeiros, ajudantes de enfermeiro e pessoal administrativo. Um neo-mega-hiper-ultra-liberal é uma pessoa que primeiro vê e depois pensa, não uma que só vê o que a ideologia lhe diz para ver.

O SNS tem defeitos operacionais que decorrem em parte de ser um serviço gratuito - o que não se paga com dinheiro paga-se com tempo e "mau aspecto" (vistos de fora alguns dos nossos hospitais parecem ilustrações de livros do Dickens; uma vez lá dentro pedem meças a qualquer um) e noutra parte da deficiente organização da nossa vida pública.

Quando saí da até agora única longa estadia num hospital (uma semana), o senhor que me tinha dado a possibilidade de ser operado naquele estabelecimento e não no que me cabia em sorte (a chamada cunha) perguntou-me o que tinha eu pensado do pessoal. "Médicos: muito bom; enfermeiros: bom; auxiliares de enfermagem: suficiente menos a medíocre", respondi. "Pois", retorquiu. "Os hospitais não podem contratar auxiliares de enfermagem. Trabalham a recibos verdes, muitos deles. E como o regime desses recibos não lhes permite ficar mais de seis meses no mesmo sítio passam a vida a mudar. É impossivel".

(Isto não faz sentido nenhum, se não nos lembrarmos de uma série de coisas).

Bom, mas tudo isto para exprimir a minha gratidão ao SNS, que lá vai fazendo o que pode para me manter a carcaça mais ou menos em condições; e ao meu médico de família. Se eu fosse mulher casava-me com ele (e se mais novo com a jovem médica que hoje o acompanhava).

Não há ideologia que ofusque este facto simples: as coisas que não funcionam em Portugal têm a ver com a nossa organização colectiva; as que funcionam têm a ver connosco enquanto pessoas, com cada um de nós. Viva o SMS, o Centro de Saúde de Cascais e quem lá trabalha. Abaixo os ministros, sub-ministros e restantes sinistros.

21.9.17

Diário de Bordos - Lisboa, 22-02-2017

No restaurante Zapata o homem assobia o tempo todo. Só interrompe o assobio quando pede qualquer coisa à rapariga do balcão ou da cozinha, não percebi bem. O assobio incomoda-me exponencialmente, mas olho em volta e vejo que sou o único. Os turistas devem considerar aquilo very typical e os portugueses - em minoria - não ligam.

Eu ligo. Deixo o jantar a meio e venho-me embora, a pensar ainda por cima que um tipo com aquela cara e que assobia mal, desafinado e escolhe músicas tão horríveis não vai decerto ser sensível ao meu eventual pedido de se calar.

Não foi a única cereja no bolo do dia. Foi um dia rico, teve direito a duas cerejas: o jantar (felizmente ao lado está o bar Irreal e ali tomei um comprimido para a dor de cabeça e descomprimi, sequência algo paradoxal mas que aconteceu mesmo, devido ao bar, aos gins e às companhias, bonitas e simpáticas) e depois lá consegui arranjar um sítio para dormir e quando o homem do táxi me diz onde é - deixou-me no cruzamento porque teria de dar uma volta enorme, obrigado Uber - vejo que é no prédio onde a minha Tia trabalhou tantos anos, o prédio do FAOJ, Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis. Fui lá muitas vezes, quando fazia as colónias de férias para crianças dos bairros de lata.

E assim termina o dia, cerejas e tudo, foi um dia chato, mais ou menos, mas eu gostei. Acabo sempre por gostar, é uma seca. Amanhã volto ao médico, por exemplo. É bom. Começo a pensar que devia tornar-me hipocondríaco, assim pelo menos retiraria prazer das visitas ao Centro de Saúde. E beberia imperiais pensando no bem que me fazem, como agora bebo e penso.

Amanhã é outro dia. Com uma sorte não terá cerejas; com outra sorte tê-las-á. Venham as duas: recebê-las-ei de braços abertos, a caminho do médico.

De onde somos

"Eu não sou daqui! Eu não sou daqui!" Os gritos da galinha Tadinha ecoavam nas paredes vazias da prisão "tipo Piranesi" onde ela vadiava. A prisão era grande e Tadinha não se apercebia, coitada, que estava numa prisão e não, como supunha, numa cidade cheia de altos e baixos.

Tadinha apreciava os grãos de milho que ia debicando e imaginava deixados ali por um Deus benfazejo no qual continuava a acreditar apesar das evidências. Só não queria debicá-los sozinha.

As quais evidências não são as mesmas para todos, claro. Tadinha, por exemplo, não percebia uma evidência que Piranesi percebeu: a grandiosidade, a beleza, a imponência oprimem tanto como a pequenez e a fealdade, se forem vistas na perspectiva de uma galinha sozinha, tadinha. Já um galo olharia para aquelas paredes imensas e pensaria "isto com uma galinha aqui até ia".

Mas Tadinha não era dali. Não era de lado nenhum, de resto. Não pensava - nunca pensou - que para ser de algum lado lhe bastaria um galo abraçado a ela.

Tadinha não sabia que somos de onde nos abraçam. Pensava que era de onde estava.

Um cantor judeu que percebia muito de opressões falava das pessoas que são oprimidas pelas figuras da beleza. Dizia ele que essa sensação partilhada e descoberta num elevador pode levar à cama de um quarto de hotel, a um amor fortuito, a uma comunhão breve e libertadora: as limousines podem esperar, o trânsito buzinar, enquanto num quarto de hotel dois seres fogem, cada um para seu lado ainda que esse lado pareça o outro, a pessoa que ali ao lado partilha a fuga.

Tadinha não percebia nada de opressões. O seu mundo era meia dúzia de grãos de milho e uma esmagadora sensação de inadequação. Infelizmente tinha um vocabulário limitado. Não sabia que murmurar "Sou tão inadequada" tem o mesmo valor do que gritar "Eu não sou daqui".

Zero, mas isso é outra história. 

Fingimentos

Um dia vou fingir que tenho juízo. Espero conseguir fingir tão bem como consigo que sou um marinheiro bêbedo  (drunken sailor no pleonástico original, que não uso porque ando numa estúpida cruzada - isto hoje deu-me decididamente para o pleonasmo - contra a porra do inglês pervasivo,  apesar de drunken sailor ser uma expressão idiomática e como tal com legitimidade para ser usada no original, acho eu. Pelo menos parece-me).

Pendular

De novo no comboio. A vida devia ser assim: ir a navegar vir de comboio (se possível no outro sentido, claro, mas enfim, não se pode ter tudo, e verdade seja dita até nem foi má a subida, pouco vento e um bom motor em bom estado bem tratado e os comboios também são porreiros, se bem atrasados as miúdas são giras e os lugares confortáveis as paisagens bonitas se chegassem a horas seria um sonho.

Assim não é um sonho, é só a vida, mas é bom e eu gosto).

20.9.17

Movimentos e comboios

O amor que tenho pela Verdade (com V grande) obriga-me a reconhecer que a) as miúdas nos comboios estão cada vez mais giras - num movimento ascendente que começou há cerca de trinta anos - e b) tal movimento ascendente não se deve exclusivamente à presença cada vez mais numerosa de estrangeiras.

Se bem o mix nacional / estrangeiro seja particularmente eficaz.

Fascínios

A Wikipedia não regista Cirrus Cavallus. Nem com um L nem com dois. Talvez deva substituir cavalo por cavalgadura, não sei. Pouco me faz.

A verdade é que verde há, cirrus e infinita gratidão também. Não sei qual anda mais alta, se eles se ela. A camioneta entra por estas colinas dentro como o G. C. pelas vagas, em melhor. E há que reconhecer: por vezes o verde das colinas é mais bonito do que o azul das vagas. Raramente, mas acontece. Tal como os cirrus são por vezes mais bonitos do que a sua ausência.

Penso em Hemingway,  naquela fascinante capacidade de se fascinar pelo que via. Não é difícil: basta olhar para coisas fascinantes. A vida, por exemplo.

A problemática do L

A Galiza enfeitiza, agora de camioneta. No céu cirrus, alguns estratificados e outros cavallus. Não sei se com um l ou dois.

Em baixo um cavalo (com L) pensa e escreve. Verde, muito verde. O cavalo com um L pensa nas coisas e quanto gosta delas, das coisas e das circunstâncias das coisas.

Metade delas é ele - o cavalo com um L - que as faz; a outra é construída por elas, as circunstâncias que se fazem e desfazem e fazem as vidas e desvidas dos outros, de quem nelas mergulha como na piscina do vizinho rico.

Ele é o seu próprio vizinho, um dia rico outro pobre, um dia feliz outro não.

A ter que escolher mais vale ser cavalo com um L do que besta sem ele. 

Mudança

Se a minha vida fosse uma regata teria quatro bóias:
- Marinas;
- Aeroportos;
- Estações de comboios;
- Rodoviárias.

A única coisa que muda é a qualidade dos percursos entre cada uma das bóias e a vontade que eu tenho de as substituir por uma só. 

Pleonasticus plasticus autisticus

- What do you do?
- I'm a drunken sailor.
- To be a sailor is almost acceptable. But you're pleonastic. Unpardonable.

Diário de Bordos - Vigo, Galiza, Espanha, 20-09-2017

Estou sozinho no restaurante  (La Canga, seguem pormenores). Tudo começou...

... Onde é que tudo começou? Este almoço tem as suas raízes profundas na ilha agora sofrida de St. Martin. Salto uma dezena ou duas de degraus e chego ao táxi que apanho na estação de comboios de Vigo, direcção estação rodoviária.

(A senhora a quem perguntei disse-me que a rodoviária era muito longe. Que podia ou ir de táxi ou de autocarro. Que de autocarro ela não sabia nada. Que de táxi bastar-me-ia perguntar aos táxis lá fora. Que até à rodoviária, daqui, são quatro ou cinco euros, diz-me o taxista. Que vamos, já o parênteses vai longo).

Pedi ao senhor que me deixasse num restaurante bom, não caro, blábláblá. De caminho passamos à frente de uma oficina que pertence ao cunhado e o sócio do mencionado cunhado está à porta e eis que de repentemente (cito) o chauffeur do táxi tem uma inspiração e pergunta ao sócio do cunhado se "o asturiano está aberto?". "Deve estar" (a tradução é minha).

Está. E ainda há quem não acredite nas engrenagens do acaso, a que outros - não forçosamente equivocados - chamam divino.

Toalhas e guardanapos de pano, copos de vinho com pé, porções "abundantes" (no original). Fabada fadada, Verde para começar e um tinto leve e aéreo para continuar.

[Os clientes começam a chegar. O restaurante tem uma máquina de servir cidra que vai para a mesa. Nunca tinha visto.  As engrenagens desembocam nas coisas mais estranhas].

O tinto acabou. Chegou a hora do Orujo. Perdi os comprimidos para a diabetes e estou cheio de pena do meu pâncreas. Vai ter de trabalhar sem ajuda.

E o pobre do Don Vivo de se escrever a si próprio, que eu vou atender a uma ou duas coisas urgentes.

Restaurante Sidreria As Cangas
C/. Talud 3
36205 Vivo
Tel.: 986 281 607
www.sidreriaascangas.com

Feitizos

De comboio por esta Galiza que me enfeitiza.

Diário de Bordos - Ria de Arousa, Galicia, Espanha, 20-09-2017

Estamos a entrar na ria onde o G. C. segundo) vai passar o inverno.  Estou contente por a viagem ser curta: este armador não é como o Mike, com quem atravessei o Atlântico e voltaria a atravessar, vírgula já. Do bote pouco há a dizer: um quarenta e seis extremamente bem mantido (o armador tinha uma empresa de reparação naval em Fort Lauderdale), confortável, com uma péssima passagem na vaga e - isto é o pior - um daqueles biminis que se fecham totalmente. Parece uma estufa.

[Adenda: poucos armadores são como o Mike, inútil é sonhar.]

O pior nem é o calor: esta noite esteve frio e durante o dia podemos levantar dois painéis laterais, um de cada lado (poderíamos, se o armador quisesse). O pior é que esta porcaria nos isola de tudo o que eu gosto quando navego: o vento, o cheiro do mar, o frio quando tenho roupas para ele.

Estamos a chegar. A viagem correu bem e eu confirmo, outra vez e outra vez, que o mar é muito tolerante. Ainda bem. Eu já beneficiei dessa tolerância.

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Chegamos por volta das onze e meia. O projecto é simples: atracar, tomar um duche, pegar no saco, almoçar e largar para a camionete. Sábado há mais.

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Os senhores são mais forretas do que frugais e eu tenho pouco de um e outro. Ela não gosto de navegar. Acha "aborrecido" (cito). Anda aqui a reboque do marido (interpreto). Deixaram o negócio aos filhos e vieram viajar. O barco ficou-lhes barato porque foi um negócio que o senhor fez. Está não só bem mantido mas equipado com o melhor que há, limpíssimo. Tudo funciona.

Diferente da ruína flutuante "charter de luxo" do aldrabão siciliano. É preciso de tudo para fazer um mundo, dizem os franceses. Eu concordo, mas não me importaria nada que o meu mundo ficasse cada vez mais pequeno.

19.9.17

Paradoxos e confirmações

Roubaram-me a carteira e dou por mim a pensar na sorte que tive: uma lição relativamente barata. Podia ter sido muito pior.

E a confirmação do que há muito penso: quando se tem dinheiro mais vale gastá-lo depressa. Se não formos nós a fazê-lo ele gasta-se sozinho.

17.9.17

Vivenda Solidão

Fugi de casa...

Missa das seis

As tardes de domingo no café Tati em que o trompete do Gonçalo Marques está encantado, em estado de graça e acompanhado por um baixo que paira pelas mesmas alturas.

Bom filho...

Regresso à Vivenda Solidão, de onde nunca devia ter saído. 

16.9.17

Presente?

Gosto do futuro: é mulher e bonita. Já o passado se parece com o Brutus do Popeye. Ou será o presente? 

Mergulho

Mergulho lento na noite, no sono. Como se a dor fosse a prancha de uma piscina e as horas um longo e desgracioso arco no ar denso, ardente e viscoso da vida.

Não é, não são. Imagine-se um céu sem núvens, um mar sem vagas, uma porta sem chave. Um corpo sem desejo, uma mente sem ideias. Estariam mais perto do deserto.

Fossas

Vamos então por partes, pode ser? As baixas são o imediato, as altas o que vem mais longe.

No meio fica a fossa séptica do presente.

Misturas

A água e o azeite não se misturam bem. Resta saber quem é água e quem é azeite.

As cores dos velhos

Querem um mundo como um cubo de Rubik, já feito. As faces todas da mesma cor, nada de misturas nem desordens. Mundos tristes, monocromáticos, acordantes, cada cor no seu lugar.

São mais velhos do que os velhos contra os quais eu me rebelava quando tinha vinte anos.

Grândola vila morena / Para não dizerem que não falei de flores

Gente triste, tacanha, pequena. Quanto mais apregoa a igualdade menos sabe conviver com a diferença, aceitá-la, discuti-la.

13.9.17

Serviço Público - Restaurantes Portimão

Um restaurante em Portimão que lamento não ter conhecido antes:

Tapa Latina
Largo do Dique 16,
T: 282 459 129

(Isto apesar de embirrar com a porcaria do "tapas" em Portugal. Petiscos tem mais sílabas e é mais bonito). 

11.9.17

Diário de Bordos - Lisboa, 11-09-2017

Para quem não sabe: o melhor café do mundo é uma livraria e chama-se Ler Devagar. Fica em Lisboa - mais precisamente em Alcântara, numa coisa chamada Lx Factory -. É aqui que hoje me embebedo (devagar, porque sou um rapazinho obediente). Bebo Colonels fictícios - a Ler Devagar não vende sorvetes, de modo vou à geladaria que lhe fica à frente e só tem sorvete de limão com manjericão (também conhecido por basílico) - enquanto oiço Smiths, a-b-s-o-l-u-t-a-m-e-n-t-e apropriado ao dia, à tarde e ao espírito da coisa.

Devo dizer que comecei noutro sítio - num restaurante chamado Beira-Rio que por acaso (mas só por acaso) é um dos melhores restaurantes de Lisboa. Foi no Beira-Rio que a minha lenta e inocente escorregadela começou. O calor e a Lx Factory fizeram o resto.

Acho bem que as pessoa se embebedem devagar, como lêem, fodem ou cozinham (isto é considerar que faço parte do grupo "Pessoas", assumpção que não é líquida, por assim dizer). Estou contente: ainda não comprei um único livro (os livros são uma forma estúpida de gastar dinheiro que nos faz falta para bebidas, porque as bebidas actuam imediatamente e os livros têm, por vezes, de esperar duzentos anos) e tudo indica que resistirei - ou pelo menos comprarei livros baratos, cuja pressão sobre a consciência se não os ler é menor -.

Vi a Maria João M., cada vez mais bonita - aquela mistura de olhos nos quais me poderia afogar com cabelos brancos nos quais me poderia estrangular é uma promessa de morte deliciosa -. E vim à Ler Devagar, durante um ano a minha casa e que ainda hoje me faz pensar que Lisboa é para mim uma colecção de casas nas quais não vivo, uma colecção de ruas nas quais não durmo, uma colecção de cafés nos quais por vezes me embebedo devagar, uma colecção de miúdas das quais acho lindos os olhos, uma colecção de misturas nas quais por vezes poderia morrer e outras ressuscitar, uma colecção de vidas, mortes, olhos e livros na qual nado como se a felicidade fosse uma piscina (não é: não passa de uma ilusão de óptica).

Tudo isto com a cabeça em Évora, milagre daquela mistura de cabeça e de Évora que tem um nome começado por C., palavra esdrúxula (são as mais interessantes) e sorriso infinito.

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Data funesta, a de hoje.

9.9.17

Diversos (ternura, desejo, vida)

Não comparo vidas, nem pessoas; nem dias ou noites, apesar de saber que as há melhores algumas do que outras. Estou-me nas tintas: sejam o que querem ou podem ser. Eu faço o mesmo. Equilíbrio instável entre o que quero e posso. Estão empatados, com ligeira vantagem para o quero.

Isto aplica-se mesmo aos dias em que a realidade me cai em cima feita camartelo: essa realidade é a que eu quis, por defeito ou activamente.

Não vale a pena chorar: as lágrimas são coisas importantes demais para se dilapidarem em auto-comiserações absurdas: queixar-me da vida seria queixar-me de mim.

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- No fundo tenho sorte.
- Define "sorte" e "no fundo".
- Morte e mundo.
- Mais do que sorte tens vida.

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Vejo-te os seios e o sorriso: vejo-te o desejo.

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Planície a cavalo, ao contrário: tu por cima a galope eu por baixo a amar.

8.9.17

Mais do que fragmento

Amo-te de amar vasto, extenso amor. Olha nos olhos o olhar que olha o vento. Verás a vastidão azul do mar, esse azul que nos corre na pele no futuro nos lábios quando dizemos Amo-te. Amor azul, cor de amor e amar.

Dar cor aos gestos: tu és azul. Fogo lento, azul e verde.

Amo-te: azul e rosa, amarelo e toda; todas as cores.

(Para a C., na planície).

Santinímetro (Cascais)

Um gajo que anda - outra vez - a tomar a quantidade de remédios que eu tomo quotidianamente tem direito a gelados, rum, batatas fritas, vinho tinto e mai-lo raio que o parta (a ele, não ao leitor).

Hoje fiz uma mistura mais ou menos desordenada disso tudo, sendo que o gelado (e objecto desta nota) foi um Santini.

A história é longa e deve ser contada: no meu caminho para a estação fui pela Rua do Santini em vez de ir pela Rua Direita porque "é sempre bom confirmar que há uma bicha enorme à porta do Santini e portanto não há risco de poder comprar um" e porque tenho a melhor defesa contra a compra de livros na Galileu: uma angustiante falta de notas na carteira. Não há tentação que sobreviva à estratégia da carteira vazia, assim nomeada em memória dos dias de carteira cheia.

Fui portanto pela Rua do Santini. Folheei rapidamente meia dúzia de livros na livraria mas nem lhes olhei para o preço, nunca fiando; no Santini não havia bicha.

Calma. Chego ao âmago da questão.

O sabor marabunta e o sabor maracujá têm em comum as duas primeiras sílabas, o facto de serem ambos excelentes e o de não se misturarem bem. Isto é, de todo. O jovem brasileiro que me sugeriu a mistura ou ----, ou não percebe nada daquilo (os tracinhos substituem as hipóteses que os leitores acharem plausiveis).

Ou seja: mara sim, mas ou bunta ou cujá. Não as duas.

Diário de Bordos - Cascais, Portugal, 08-09-2017

Está uma noite linda, muito calma, vento Norte mas fraco, o barco em bom estado, limpo, tudo funciona, o arrais é porreiro e eu estou com o telefone desligado porque não tenho muita bateria mas ligo-o só para dizer isto: está uma noite linda, muito calma e por aí fora. Estou para norte de Aljezur, não sei o nome da terra da qual vejo as luzes, mesmo à direita do trilho da lua no mar que ainda está um bocado alaranjado. Na amura de estibordo vejo o farol do Cabo Sardão e o meu cotovelo de vez em quando - largamente de vez em quando - tenta lembrar-me que existe mas eu não lhe ligo peva. Um sacana que me fez a cena de ontem não merece consideração nenhuma. O motor parece um relógio suíço e o armador era uma simpatia. Vi-o talvez três minutos, se tanto.

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E agora cheguei, vim comer um hambúrguer ao Skipper e aproveito de caminho bebo um rum ou dois. A marina continua na mesma, dizem-me pessoas e vozes: a marina mais mal gerida do hemisfério ocidental, um santuário de incompetência, coio de incapazes numa localização que desmente aquela máxima do imobiliário: localização repetida três vezes.

Estou-me ligeiramente nas tintas. Tudo tem remédio e o que não tem remediado está. Agora o objectivo é fechar Outubro, que está aberto escancarado. E fechar-me a mim, que estou pior ainda e só na quinta-feira tenho médico.

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As minhas viagens de inspecção turística dos hospitais do país continua. O último foi o de Évora. Se alguém conhece um Tripadvisor para hospitais é favor dizer. Sei lá, Sickadvisor, por exemplo.

Aborreço-me, chateio-me, espumo ainda mais porque isto nada tem a ver com nada se não a minha negligência.

O hospital foi porreiro. Em menos de duas horas tinha uma receita para duzentos e cinquenta medicamentos e uma sugestão: "vá à faca". É frequente os médicos pensarem que a minha negligência comigo próprio tem a ver com o medo. Não tem. É simplesmente uma lacuna do meu egocentrismo, associada a uma total ausência de hipocondria.

Talvez no fundo seja simplesmente mais doente e menos narcísico do que sempre pensei.

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O Soggy Dollar está quase destruído, vi uma fotografia. Sorte o Painkiller ser património imaterial da humanidade...

5.9.17

Diário de Bordos - Comboio Lisboa - Évora, Portugal, 05-09-2017

Começo pelo fim, que foi o princípio do dia de hoje: dar graças ao senhor revisor da CP que me autorizou a bicicleta no comboio, desincentivou a compra de um suplemento primeira classe por causa da dita bicicleta e me disse para a trazer para o bar (infelizmente fechado; mas se estivesse aberto não a poderia ter comigo aqui), neste comboio cujas rodas são ovais, a julgar pelos solavancos
[o revisor diz-me que "vamos a duzentos quilómetros por hora", quando faço a observação. É bom ver pessoas com brio profissional, apesar de me parecerem demasiados quilómetros para tão poucas horas].

A Peugeotte [Le Mans, vejo agora] aguenta-se, apoiada nos tamboretes de bar; eu lá vou falhando regularmente a pontaria dos dedos nas teclas. Mas portamo-nos todos bem: ela, eu, as minhas diferentes dores e os meus sacos. Fazemos um conjunto coerente, parece que vamos a caminho de um livro de Beckett. "Miguel ressuscita"... Humm, demasiado optimista para título do Samuel, mas "Miguel tropeça e cai" não é verdade. Faltaria "e levanta-se, feliz da vida".

Enfim, mais ou menos. Não me queixo, essa é que é a verdade: aspiro a uma vida mais calma, é tudo. Desde que continue a incluir Painkillers no Soggy Dollar, pintxos na 5ª Puñeta (fica em Palma e chama-se mesmo assim), mar e vento e sol e velas no mar (numa embarcação em bom estado), tapas em la Coruña, rum punches no Lagoonies em St. Martin, livros em todo o lado, poesia no Povo às segundas-feiras e jazz no Tati aos domingos.

(Por falar em Tati: fui lá jantar, recentemente. É tão impossível comer mal no café Tati como ler uma frase má escrita pelo Garcia Marquez. Há pessoas assim, não é? Mesmo que quisessem não seriam capazes de fazer o que fazem mal feito).

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A patetice e o patético são dois postes de uma baliza que andam quase sempre juntos; nem sempre, claro: há muitos patetas que não são patéticos. Vice-versa. Ainda não percebi bem é se quando andam juntos se atenuam ou se pelo contrário se potenciam.

Não sei. Mas sei que a palermice tem uma forma estranha de lidar com as asneiras, a própria e a alheia: aquela não existe e esta é ubíqua. Ouvir um palerma falar da palermice é como ouvir um português falar dos portugueses: parece que é de Marte (ou Vénus, respectivamente).

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O Verão passou depressa, queixa-se um cartoon que vi hoje no Facebook. Também acho. Em Dezembro será pior ainda e eu estarei a caminho de St. Maarten, talvez. Estou inquieto com o Irma: é forte e vai passar mesmo por cima. Espero que os meus amigos lá atravessem esta prova e saiam ilesos.

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Embato de novo com o ritmo de trabalho português, com a falta de respeito pelos elos fracos da corrente e subserviência perante os mais fortes. "Portugal é um país de merdosos", disse um dia José Miguel Júdice. Não conheço a produção intelectual do homem mas esta é uma grande verdade.

Decidi porém que não me queixo: é mal-educado queixarmo-nos de um país que não é o nosso. Quem não está bem muda-se e eu não me mudo. Nem mudo.

2.9.17

Dores e flechas

A aljava das dores está cheia; mas o arco da esperança funciona. Não sei bem como é o mecanismo: tira uma dor como se fosse uma flecha e lança-a para longe? Ou pega numa dor, atira-a ao ar e trespassa-a com uma flecha? Não sei.

Sei que de um lado tenho um saco de dores e do outro uma forma de o esvaziar. Ou pelo menos aligeirar e é isso que me interessa: um índio pequenino quase nu que dispara flechas certeiras e cada uma dessas flechas leva ou trespassa uma dor.

Patologias e sociedade

Não deixa de ser paradoxal que a agorafobia seja uma patologia socialmente aceite.

Pelo menos espero que sim.

1.9.17

Diário de Bordos - Lisboa, 01-09-2017

Noite de tango no Irreal. O som é sofrível, há muitos casais que dançam para lá de bem, a atmosfera fantástica. O tango deve ter nascido assim: mais atento ao intangível do que à técnica.

Lembro-me - é inevitável - da tasca em San Telmo onde tive o privilégio de ouvir uma lição de tango que durou uma tarde e imagino que, exceptuando o tamanho, as noites de sextas e sábados de tango ali deviam ser como estas: escuras, quentes e bonitas.

Talvez aqui não haja casamentos improvisados. Não haverá de certeza. Já ninguém se casa, de qualquer forma.

Lembro-me das palavras de Rachel, professora de tango: "o tango é uma dança em que o homem manda, a mulher segue e os dois sentem".

Como será o mundo das pessoas que lutam pelo fim dos estereótipos de género, pelo fim da desigualdade, da violência, do capitalismo, da força, da injustiça, das touradas, da iniquidade, de tudo o que acham errado (E algumas coisas são, sem dúvida)?

Um mundo triste, ainda mais violento do que este, mais desigual, mais injusto. Não é acabando com as imperfeições que se alcança a perfeição. É fazendo-as anular-se.

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Amanhã vou confrontar-me com a mais horrível,  a mais injusta, a mais impossível das injustiças: a morte prematura de uma pessoa que não merecia morrer, uma mulher que a morte não merece, era bonita de mais, aérea, lunar, leve como o sorriso que nunca a largava.

A morte está-se nas tintas para a injustiça; e a vida também. Há uma dor que se vai juntar ao já largo alforje delas; e nós vamos continuar a viver e a carregá-lo. Não há mais nada a fazer se não esperar que o tempo o aligeire, no que for possível.