30.8.17

Silêncio

A morte de alguém que nos é próximo tem esta característica estúpida que é meter-se nas frinchas todas, não há fenda que lhe escape, uma falha, um interstício. Um gajo está constipado, não tem dinheiro porque alguém em quem confiava lhe roeu a corda, tem mil coisas em que pensar e pelo menos metade dessas para fazer e aquela estúpida morte não pára de lhe saltar à frente e de lhe mostrar quão importantes são a constipação, o dinheiro, o futuro imediato e o outro, mais longínquo: nada. Zero.

Morreu uma pessoa que não devia morrer porque era o lado bom da vida, o lado sorridente, leve, optimista, bonito da vida e um gajo pergunta-se porquê ela e não duzentas outras cuja vida faz muito menos sentido e diz porra! porra! porra!, assim mesmo três vezes porque não há muito mais que possa dizer, a impotência dispensa palavras, o nada cala tudo, cala o tempo, cala a vida, cala a esperança, cala a raiva.

E não deixa nada se não um buraco de incompreensão, um buraco de silêncio. 

27.8.17

Ordem, amor

Vamos então falar das coisas sérias. Leonard Cohen, um sofá e uma manta. Um jantar e um ecossistema. Um amor e isto tudo misturado. Vamos pôr ordem nisto.

Pode pôr-se ordem no amor?

Não.

Incompreensibilidades caninas

Um gajo vai almoçar magnificamente a um restaurante chamado Chaxoila. Apesar do nome o restaurante é muito para cima do bom e um gajo arrefinfa-lhe naquelas coisas todas que os restaurantes para lá do bom têm: vinho, aguardente, gin tónico. Depois o mesmo gajo vem para casa e arrefinfa-lhe no computador, coisas de trabalho (o mar não sabe o que é um domingo, culpa sem dúvida da falta de igrejas).

Um dia arrasador, está fácil de ver. Um gajo deita-se no sofá para recuperar e o cão não pára de o chatear porque quer sair.

Alguém me explica a cinofilia? 

Praxis, coincidência

Não sei o que é o amor. Nunca me interessou muito, verdade seja dita: prefiro viver o que ignoro a saber o que não vivo. Hoje porém tive uma pequena luz: amor e paz devem andar juntos. Ou amor e harmonia, mas harmonia é uma palavra mais vaga e vasta do que paz.

Não sei. Talvez seja só coincidência.

25.8.17

A semântica da paisagem

Portugal é Lisboa e o resto é paisagem, dizia-se antigamente. Hoje todos sabemos que é mentira.

Poder-se-ia quando muito dizer que o português é falado em Lisboa; no resto do país fala-se uma língua parecida.

Venho comer um prego a um café da avenida. Sai-me um bife com ovo a cavalo (nem de propósito), salada, arroz e batatas fritas (tudo no mesmo prato, em camadas).

Um senhor traz-me aquele monumento à arquitectura gastronómica e eu começo por pedir-lhe me tire o arroz; e à senhora que traz a coisa isenta do dito me dê um prato para a salada (não gosto de misturar quentes e frios no mesmo recipiente. E muito menos de misturar salada com comida).

O "prego" mai-lo ovo e as batatas enchem o prato até às bordas, sem segundas intenções. Pergunto à senhora,  quando chego ao fim, o que devo pedir quando quiser a mesma coisa em mais pequeno.

- Pediu um prego, não foi?
- Sim.
- Então não tem nada mais pequeno.
- Não tem bitoques?
- Temos, mas é a mesma coisa sem arroz. 

Arroz de Graça

Ontem comi um arroz de Moira tocado pela Graça. Quero dizer: quem o fez estava tocado pela Graça (isto é para ser lido sem segundas intenções: nem a mulher do cozinheiro se chama Graça nem o senhor estava embriagado).

Uma vez um amigo que me conhecia bem disse-me que para mim um bife com batatas fritas e ovo a cavalo é um prato exótico; tinha razão. Enquanto houver arrozes destes vai continuar a ter.

24.8.17

Monumental

Perto da Guarda. Uma parede vertical de fumo, monumento post-moderno à nossa classe política e ao povo que a aceita.

Aperitivo

Há muito tempo que queria fazer esta viagem (mas sem auto-estrada. O tempo manda mais do que eu). Esta fica de aperitivo.

Passámos por um sítio onde parámos para esticar as pernas e as patas, beber uma cerveja e eventualmente comer qualquer coisa.

Pergunto ao senhor da tasca se tem uma aguardente caseira (é o meu remédio favorito para as constipações e não o vendem na farmácia).

- Não! É proibido!

O homem é convicto. Olho de novo para ele: tem cara  (e corpo) de contrabandista, bêbedo e arruaceiro. Só não parece ladrão (e deve dar porrada na mulher). C. diz-me que cheira mal, coisa que graças à constipação não posso confirmar.

É a ASAE que tem muita força ou nós somos um povo de cobardolas sujos?

Chuvas

Atravessamos vastas zonas queimadas. Parece que estamos no Outono. Era bom que viessem as chuvas, para limpar esta merda toda.

Não me refiro às cinzas.

Pensamento mágico

Faço uma longa viagem pelo interior de Portugal. Apanhamos um bocadinho de auto-estrada e vejo aqueles enormes painéis como preço da gasolina nas estacoes de serviço que aí vêm.

Não é a primeira vez que os vejo, claro; nem que o penso: os números são os mesmos. Só muda a marca das bombas.

O pensamento mágico em Portugal dispensa exemplos. São demasiados. Mas se não dispensadas este podia ser um deles.


23.8.17

Diário de Bordos - Évora, Alentejo, Portugal, 23-08-2017

O parque animal da casa é constituído por dois cães, um gato, dois periquitos e por mim, que sou uma espécie de irmão mais velho e distante (excepto dos periquitos, com quem interajo pouco). Para quem não gosta muito de animais de companhia (basto-me a mim próprio nas duas vertentes) não está mal.

Levo os cães a passear de manhã e deixo a gata deitar-se na minha barriga quando estou no sofá. É muito jovem e mal a sinto, excepto quando morde, o que não acontece sempre. Isto é: acontece cada vez menos. As gatas também aprendem que há uma relação entre uma mordidela e aquilo que para ela deve ser um tremor de terra de grau vinte na escala Richter dos gatos.

De resto a vida em Évora vai bem. Ainda não deixei de estar doente desde que cheguei, coisa que primeiro se deveu à expulsão do veneno que trouxe da última embarcação onde trabalhei - uma ruína flutuante e fraudulenta que de positivo só tinha a beleza - e depois a outras causas mais prosaicas e por conseguinte menos interessantes.

Agora estou constipado. Íssimo, para ser mais preciso. É uma contradição estar constipado num sítio que só não é deserto por não ter areia nem camelos - pelo menos ainda não os vi. Até agora as pessoas que tenho conhecido são adoráveis  (admitidamente fazem partem do ecossistema da minha bonita namorada. De estranhar seriam não o serem) -.

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Encontrei um local para os projectos da Ler por Aí. Já não era sem tempo. Daqui a mês e meio teremos o primeiro jantar da Peregrinação, em francês. Ler por Aí, ler aqui, ler em Évora. Fernon, tu ments? Mintô.

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Amanhã aquilo a que se poderia chamar "agregado familiar" (jardim zoológico incluído) vai para Vila Real. Fica em Trás-os-Montes, para quem não sabe. É uma cidade feia mas hospitaleira - pelo menos o ecossistema da jovem senhora que me faz conhecer estes sítios todos recebeu-me maravilhosamente.

Ontem foi a vez de conhecer Alcácer do Sal, onde pela primeira vez fiquei mais do que o tempo de um café e um olhar para o rio Sado.

Aconselho vivamente o restaurante O Ninho, nas margens do dito e perto da ponte pedonal. Tanto as migas com coentros como o arroz de lingueirão são soberbos.

Sugiro também que se percam pelas ruazinhas das traseiras: Alcácer é muito mais do que aquela sublime e onírica vista da ponte.

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E fui à praia. É tão raro que merece nota. Como estávamos com os cães entrámos por um lugar chamado Brejos de Carregueiro. Andámos um quilómetro pelos arrozais e dez pelas dunas até chegarmos ao mar. Ao todo dois quilómetros e meio que se fazem num instante porque o trajecto é bonito e a praia quase deserta.

Ou seja: apaixonei-me por uma senhora bonita e como prémio conheço Portugal. A próxima vez que disser a alguém que não tenho sorte pode citar-me este parágrafo. 

20.8.17

Raquel (fragmento)

- Amo-te.
- Oh homem, cala-te que me fazes perder a tusa.

Raquel era uma judia pequenina, bonita e loira, de olhos azuis que fazia uns broches memoráveis e fodia sofregamente, desde que eu não lhe falasse em amor ou qualquer outro sentimento.

Desenvolvera uma teoria para as felações baseada no filme Garganta Funda: "para uma mulher te fazer um bico como deve ser tem de imaginar um clitóris na boca", dizia. "Isso da garganta é exagero de pornógrafo. Na boca chega perfeitamente. E depois executar a coisa em função da localização desse clitóris imaginário. Assim tem a vantagem adicional de se vir ela também, não serem só vocês".

Raquel era economista. Vivia com o marido, um homem calmo e manso e com um filho adolescente num dos bairros chiques da capital. Era um daqueles casais em que cada um atraiu o outro por ser o seu oposto. Com o correr dos anos as oposições desgastaram-se e nada as veio substituir.

Hoje veio dormir a minha casa. Diz ao marido que tem uma reunião no Porto e vai de véspera.
- Não tens medo que o teu marido um dia telefone para o Porto? - Raquel trabalhava num dos grandes bancos nacionais.
- Ele não o fará nunca, não vá alguém dizer-lhe que não estou lá.
- Porque é que não te separas dele de uma vez por todas?
- Lembras-te daquele periquito muito bonito que vimos no outro dia na mercearia do senhor Zé? Não achas que o devias comprar? - Nunca fui com ela a lado nenhum: quando nos víamos vinha ter a minha casa e nunca saímos juntos. Um dia perguntei-lhe se queria jantar a um restaurante comigo e respondeu-me "Que pensas do jogo do Benfica de hoje?"

19.8.17

Pão com medíocres

A mediocridade deleita-se no trabalho de equipa. É como barrar manteiga quente numa fatia de pão: fica tudo da mesma altura.

18.8.17

Com a ajuda do Diabo

"Ne vous élevez pas sans que Dieu vous élève", diz Teresa d'Ávila (numa tradução francesa do Libro de la Vida de Jean Canavaggio, editada pela Gallimard na colecção Folio Classique). Dado o estado de raiva em que me encontro eu acrescento "Ne descendez pas sans que le Diable vous aide".

À bruta

Senhor Doutor Juiz, eu não gosto nada de andar à pancada, juro-lhe. Mas quando ando bato para doer, não para fazer festinhas à bruta. 

A arte do monólogo

É impossível discutir com quem não contesta os nossos argumentos mas sim o nosso direito de os emitir ou a nossa razão por atacado, sem entrar em pormenores. 

16.8.17

Escrever, sono

Apetece-me escrever, é mais do que apetecer, preciso, preciso de escrever o dia de ontem: passado na cama a queimar nojo e cansaço, o cansaço todo destas últimas quatro semanas e o nojo também, queimá-los deitado na cama a dormir como um atleta queima calorias a correr; escrever o reencontro com as ideias antigas que se transformaram em projectos recentes e futuros novos; escrever o nojo que tenho desta mistura de cobardia, maldade e estupidez, lido melhor com a maldade inteligente, a sacanice rasteira e rafeira é-me demasiado malcheirosa para que a possa manusear facilmente.

De maneira hoje passei o dia na biblioteca pública de Évora e depois fui beber uma caipirinha ao Páteo e daí vim jantar e nem a merda rafeira me estragou o dia, que vale o nojo? Nada, não vale sequer o  cansaço que provoca esquecê-lo. Espero pouco das pessoas, há muito que espero nada, não há mau cheiro que me fique nas narinas porque não lhes chega sequer.

E contar como hoje fui a um senhor monhé que repara telefones e em menos de um almoço no Cantinho da Beatriz (mas por muito mais caro) ele pôs-me o telefone a funcionar, uma protecção nova para o vidro "porque a outra está partida" e ainda ganhei uma capa para o telefone, tudo isto por menos de três vezes o preço dos almoços da C. e meu.

Continuo a ler a Hildegarde von Bingen. Já vou na quarta visão. A terceira era uma seca, saltei-a toda. Só falava de ventos e de vento estou eu farto e tinha também alguns argumentos lógicos incompreensíveis como por exemplo "o Sol ilumina as coisas altas, da cabeça até aos calcanhares; a Lua as coisas baixas, das sobrancelhas até aos tornozelos" (se não for sobrancelhas é a testa ou coisa que o valha) e eu percebo menos do que intuo o que a senhora quer dizer e passei para a quarta visão que tem a ver com estrelas e brasas.

A santa descreve as visões com o rigor de um pintor hiper-realista, mas o conteúdo tende mais para o surreal, mistura interessante e estimulante excepto quando fala de ventos, claro.

Preciso de escrever isto tudo e também o amor, a forma estranha e solavancada que ele tem de sedimentar, como se estivesse a subir uma escada e não uma rampa. Ontem foi feriado e claro que passar o dia na cama a dormir com a ajuda ocasional de uma miúda gira é mais fácil do que passá-lo sozinho, até o sono anda mais depressa e depois não sei como lá vai mais um degrau ou dois.

O bom é que a escada não tem fim.

A verdade está mais ou menos por aqui, à superfície, como se eu andasse por uma mina a céu aberto, é preciso encontrar o filão e só depois se fazem aqueles grandes círculos concêntricos pelos quais se desce sem nunca deixar de ver o céu. Encontrar uma palavra começada por V: Vértice. Vórtice. Voz. Vir. Vala. A vila devora-se a si própria.

Pensar na noite, na via láctea, nos milhares de constelações das quais desconheço o nome: não valem metade do que valem a meia dúzia que me são familiares, como Orion ou os Gémeos.

É isso: pensa na noite, no sono que te espera e protegerá, na inquietude: como atravessar uma noite a vau? Como nadar na corrente do tempo?

Como compreender a cabeça pequena da mesquinhez, as linhas tortuosas e ocas da estupidez, o buraco negro da maldade, que tudo absorve e um dia se dá a ver, patética e nua?

Prefiro isto: as veias irregulares de um pavimento sólido e híbrido, terra e pedras aquecidas pelo Sol. Não há lugar para serpentes, a menos que estejam sustentadas pela Lua. Serpentes inferiores.

Deixa-te levar pela corrente do sono: ela vai desaguar ao corpo que amas, ao corpo que te espera deitado numa pedra da calçada, a essa pele que o Sol antes de ti acariciou.

Pensa num templo do qual és guardião e hóspede. Pensa na luz que o ilumina. Pensa na luz.

Agora dorme: o sono é teu aliado. 

15.8.17

Definição

A perfeição é um conjunto de imperfeições que se anulam.

Acreditem se quiserem

Ontem ao jantar tive uma amigável e animada discussão política com um jovem historiador.

O senhor era de esquerda e disse algumas coisas com as quais eu não concordei. Eu não sou de esquerda e - oh espanto - ele não concordava com nada do que eu respondia.

Mas a certa altura da conversa ele disse uma coisa que nos pôs aos dois de acordo: mais valia parar. "Keynes, o pai do neo-liberalismo" disse. Pedi-lhe para repetir, para ter a certeza de ter ouvido bem. Ele reiterou convictamente e confirmou esta estranha opinião: Keynes é o "inventor" (o termo é meu; a ideia não) do neo-liberalismo.

Acreditem se quiserem. É historiador e dá aulas não sei onde.

14.8.17

Há coisas que não se devem guardar nas gavetas

Já aqui contei esta história, mas num contexto e por razões diferentes.

Uma vez a tripulação de um bacalhoeiro amotinou-se contra um capitão particularmente odioso. Pegou nele e pô-lo borda fora. Mas depois hesitou - há uma velhíssima e profundíssima aversão nos homens de mar a deitar pessoas vivas ao mar (o facto de os piratas não respeitarem esta tradição é uma, se bem não a única das razões do meu ódio por eles e por toda a romantização que deles se faz hoje) - e houve ali um compasso de espera. O capitão estava a metro meio de uma água onde sobreviveria dois minutos, talvez três, os homens queriam largá-lo e não conseguiam.

Até que lhes disse: "Ou fora ou dentro, seus filhos da puta, que isto não é lugar para um homem".

Os homens puseram-no dentro, levaram um arraial de pancada do qual alguns restos ainda se devem ouvir hoje nas paragens dos Grandes Bancos e o capitão ficou conhecido, desde esse dia, por Capitão Fora-ou-dentro.

É sempre bom tirar esta história da gaveta da memória onde se acantonou e pô-la a uso.

Adenda: será contudo útil esclarecer que está indecisão à qual tenho ultimamente aludido tem raízes nobres. Não sou um gajo particularmente indeciso - há até quem me tenha chamado de impulsivo, podres (são muitos) de razão -.

13.8.17

Indecisão

Uma má decisão é melhor do que nenhuma decisão. Nunca é de mais ter isto presente quando se nada na indecisão.

Rezas e mezas

É sempre assim: dou por mim a rezar ao deus dos aviões para que o meu esteja atrasado, exactamente com a mesma intensidade com que o vitupero quando está.

Adenda: o senhor ouviu-me. Estou na porta de embarque e tenho muita gente à frente. Aconteceu-me uma coisa que não recordo já tenha acontecido: filtros de segurança totalmente vazios. Zero. Chegar e passar e voltar atrás porque passei o portal a correr e passar outra vez e ecco! Abençoado atraso.

Um dia em Londres telefonei do metro  para o check-in a dizer que estava a caminho, que por favor não o fechassem. Mas isso são coisas que já não sei fazer. E provavelmente ninguém sabe. 

Diário de Bordos - Milano, Itália, 13-08-2017 / II

A ideia era esta: um restaurante barato e simpático (por esta ordem); bom seria um bónus; perto da estação onde vou apanhar o autocarro para o aeroporto; frequentado por locais.

O restaurante Le Chalet corresponde inteiramente a todos os desiderata e vem com o bónus. A decoração tem a ver com o nome; a lista não. O serviço é asiático, não sei de onde. Aliás, até agora só fui servido por senhoras de olhos estreitos e cabelos pretos (ou senhores, mais raramente), com a notável excepção do café Biffi nas Galerias: o empregado era um italiano da idade das pedras que nos rodeavam e tinha a mesma classe.

Que curta foi a passagem por Itália e que pena tenho de não navegar nas Maddalena. Vais voltar, diz o armador. Não acredito, digo eu. Mais uma coisa que fica para a próxima.

Entretanto vou sabendo do que se passa em Charlottesville - pode ser que um dia a malta do politicamente correcto consiga estabelecer relações de causa a efeito, como por exemplo entre o acto sexual e o nascimento de uma criança, apesar do lapso de tempo que separa os dois acontecimentos -.

O almoço termina â hora de ir para o aeroporto, com um Colonel que merece promoção e uma nódoa na T-shirt. Há coisas que não mudam. O mundo reentra nos eixos, as árvores reencaixam no azul do céu, a física das coisas restabelece o seu domínio: o que tem de ser tem muita força; o resto não interessa.

(Não é verdade. Termina um pouco depois da hora de ir para o aeroporto. Pode ser que o avião espere).

Símbolos, reedições e valsas

Falemos de símbolos, daquela sublime valsa do Gattopardo com a herdeira da burguesia. A mais bela rendição da história do cinema e provavelmente da dos símbolos também. Porque penso nessa valsa agora, nesta Milão tão longe da Sicília, com um saco ao ombro que ainda há pouco era leve?

Quis ir ver o Duomo por dentro mas a fila era enorme. Fica para a próxima vez, para a próxima valsa.

Diário de Bordos - Milano, Itália, 13-08-2017

A escolha é simples: entre cinco horas no aeroporto de Milão e três e meia na cidade (e o restante nos autocarros de ida e de volta) escolho ir ver o Duomo e as Galerias Vittorio Emanuelli, onde há muitos anos comi os primeiros gelados italianos feitos em Itália (gelados italianos há-os em todo o lado, claro).

Levei um bilhete de desembarque propre en ordre: nos meus confrontos com a estupidez saio sempre a perder. Não quero com isto dizer que seja inteligente; quero dizer que não sei lidar com a estupidez. A mesquinhez, a falta de coluna vertebral, a falta de lealdade são-me infinitamente mais suportáveis: há muitos anos que espero pouco das pessoas. A justiça ou injustiça da vida são-me indiferentes: perdi a fé numa vida depois desta há ainda mais tempo. O mundo é injusto: eis uma verdade irrefutável, que não se pode mudar excepto na cabeça dos beatos e dos que se equivocaram de planeta. Já a estupidez é diferente: não sei, não saberei nunca lidar com ela. Agride-me e não sei defender-me.

Excepto indo visitar o Duomo de Milano, comer numa Trattoria qualquer ali perto - se bem a minha memória de Milão em Agosto seja de uma vasta cidade fantasma. Alguma coisa encontrarei aberta, antes de voltar para Madrid, em cujo aeroporto me esperam mais não sei quantas horas de espera -.

E regresso a Évora, à mulher que amo, à esperança de um dia encontrar forma de embarcar em amador, simples amador, ir para o mar porque preciso dele e não porque preciso de dinheiro.

........
Milão é a vasta cidade fantasma de que me lembro. E eu pergunto-me se não serei um vasto fantasma que se passeia dentro de mim.

10.8.17

Diário de Bordos - Cannigioni, Sardenha, Itália, 10-08-2017

A comparação é injusta, eu sei. Mas a última vez que isto me aconteceu foi em Moustique faz para ai uns cinco anos: saí de bordo a pensar "que se foda o bote".

Não sei se conhecem Moustique: é uma ilha linda onde músicos como Eric Clapton e Mike Jagger tinham ou têm casas. Estou a inventar os nomes mas não o nível. Tem um bar que é para mim (e mais dez milhões de pessoas) um dos melhores do mundo. Diz a lenda que os Clapton e Jagger desse tempo faziam ali por vezes jams legendárias - o que de resto é adequado à lenda. Que seria de uma lenda sem jams legendárias?)

Uma vez tive um grupo particularmente complicado de clientes. Normalmente Moustique era o meu único momento de descompressão: os clientes iam de excursão ver a casa do Jagger e da Rainha de Inglaterra e quejandos e eu ficava no Basil's a beber Piñas Coladas  (assim mesmo, no plural múltiplo).

Um dia uma delas voltou antecipadamente do passeio, era gorda, feia e estúpida e pediu-me para a levar a bordo. Para além de beber Piñas Coladas eu estava a escrever disparates - as duas coisas estão frequentemente juntas - e respondi-lhe com um simples e lacónico "Não".

Não. Hoje não estou a bordo. Comi as melhores lasagne da minha vida, à qual se seguiu uma sublime costeleta de vitela à Milanesa que só não é a melhor porque não me lembro das anteriores, bebo um excelente vinho local e quero que o bote se foda, se me for permitido falar assim.

Comprei presentes para a minha namorada - ser skipper de uma embarcação de charter não nos transforma imediatamente em selvagens - vim jantar sozinho e feliz apesar da distância que me separa da dita namorada e se alguém agora me pedir alguma coisa a resposta é simples: não.

Não porque sim; há melhor razão para um não?

5.8.17

Analogias de escala

Quando uma coisa está para aquilo que devia ser como uma linha Märklin para um sistema ferroviário nacional.