23.5.17

Diário de Bordos - Aguadulce & Almeria, Andaluzia, Espanha, 23-05-2017

A verdade é que não tenho nada que fazer em Almeria. Ou pelo menos nada que não possa fazer em Aguadulce, a nove vírgula seis quilómetros (diz o Google Maps. Eu acredito).

Dois pontos: sentar-me num café, beber Licor de Hierbas, escrever, observar as pessoas, estar um bocadinho sozinho. É isso que faço agora mesmo em Aguadulce porque resolvi perder o primeiro autocarro que passou (não me apeteceu emborcar o licor e o café e correr). Verdade seja dita que Aguadulce é um buraco e o café não tem ninguém a quem observar. Mas tem vento - o mesmo que me fez parar aqui - e a paragem fica a dez metros. "Correr" era um eufemismo, uma metonímia, uma hipérbole.

Observar também. Penso nas mamas da senhora da praia e tenho a visão ocupada para o resto do dia. Repare-se que o problema não é só estético. Aquelas mamas eram um monumento, verdade. Mas eram também um mistério e sou mais atraído por estes do que por aqueles.

Seria a senhora mãe das duas crianças? Se sim, a evolução está de parabéns, a genética também e a senhora, claro, que ganhou o primeiro prémio da lotaria DNA. Se não era mãe, seria a baby sitter? Se era mãe, aquilo seria uma escultura particularmente conseguida de silicone? Se sim o médico-cirurgião-escultor está de parabéns. Se não, voltamos à hipótese DNA natural. Podíamos elaborar em torno daquelas mamas quase um bom par de meses, um por cada uma. Ou ir falar com ela, claro. Apresentar-me e dizer-lhe "Há qualquer coisa nas suas mamas que me intriga e se há coisa à qual eu não resisto é um mistério - um par deles - pendurados no corpo de uma senhora como uma ponte do Calatrava (demagogia) ou as ogivas de uma catedral gótica (verdade)".

Bom, deixemo-nos de louvores, mistérios e questões. Vou a Almeria para não fazer nada que não possa fazer em Aguadulce, com duas certezas: a) Almeria é mais bonito; e b) vou gostar do trajecto.

Estas duas proposições foram escolhidas para contrariar aquele velho adágio que definia a navegação à vela como sendo o meio mais caro, lento e incómodo de ir de um sítio onde se está bem para outro onde não se tem nada que fazer. A verdade é que não estou bem em Aguadulce - parei aqui por causa do maldito Levante - e penso que talvez encontre em Almeria um sítio onde esteja melhor, sem mamas provocadoras (ou evocadoras?) ao léu. O autocarro para Almeria é rápido, frequente, barato e a julgar pelas aparências confortável. O C. R., que aqui me trouxe desde Guadaloupe pode ser isso e o seu contrário e eu opto pelo contrário.

Aguadulce é um buraco de férias atraente como todos os buracos de férias com a vantagem de estar vazio; Almeria é uma cidade andaluza bonita e imponente (tanto quanto me lembro). Prefiro as memórias antigas às recentes, as dúvidas às certezas, o imprevisto ao planeado. O que me provoca uma dúvida existencial: porque estou tão chateado por ter de parar aqui pelo menos dois e provavelmente mais dias?

Não sei e se soubesse não dizia.

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Gostaria um dia talvez quem sabe de encontrar um trabalho diferente.

A questão sendo, claro, se eu suportarei um trabalho no qual a expressão "se tudo correr conforme o planeado" não soe a anedota ou pelo menos não suscite um sorriso trocista, uma expressão dubitativa ou o desejo imediato de chamar uns senhores vestidos de branco.

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Um dia há muitos anos fui a uma caçada ao javali. O exercício (pelo menos no que me diz respeito, a mim e ao vizinho) consistiu em subir para uma árvore às cinco da tarde (estávamos na Savóia no inverno. Era noite) com uma espingarda e uma garrafa de aguardente local.

No dia seguinte, quando acordei comecei por assentar dois factos indiscutíveis: 1 - ainda estava em cima da árvore; e 2 - vivo. Não estava, contrariamente ao que julgara pouco depois de para ali subir, enregelado.

Desci e acrescentei uma terceira observação: ao lado das minhas pegadas de e para a árvore vizinha (ele tinha também uma garrafa de aguardente - diferente - e aquilo era a dividir por todos) havia umas de uma familia inteira de javalis.

Gosto desta história para ilustrar a minha forma favorita de ser turista: ir para um café e esperar que a cidade passe por mim, em vez de ser eu a calcorrear-lhe as ruas, quantas vezes geladas, inóspitas, escuras e só na aparência desertas.

A dificuldade reside na escolha de aguardentes - tem de ser uma que nos aconchegue mas não faça dormir -. Não sei se o Licor de Hierbas satisfaz o segundo desses requisitos e vou experimentar outra coisa.

Amanhã conto.

PS - A escolha do observatório é fundamental. A geladaria La Coquette é manifestamente insatisfatória. Tudo indica que não conseguiria sequer adormecer, se aqui ficasse. Só turistas e velhos (como eu serei em breve), o que é assustador.

No mínimo.

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