15.2.17

Diário de Bordos - Genève, Suíça, 15-02-2017

Em Genève acontece tudo. A vida cultural desta cidade é espantosa, para uma cidade que no fundo é pequena.

Mas não acontece nada. Isto é: como seria viver outra vez nesta palidez murcha, répue de bien-être, onde tudo é bonito a começar pelas mulheres e tudo banal à força de ser bonito, bem arranjado, limpo, sem borbulhas na cara ou mendigos na rua? (Vi dois desde que cheguei. Dois).

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Ontem G. lembrou-me de uma miúda que, diz ela, "comi" na loja, quando comprava camisas. Detesto o termo "comer" para esse uso. Não sou canibal e na verdade acabo sempre por ser eu o comido. Era loira e tinha uma loja de roupa. Não me lembro de todo de a ter "comido" mas lembro-me das camisas que comprei. Uma era amarela, de feltro (?) com uns desenhos abstratos a preto. Durou pouco tempo, a camisa. Lembro-me disto porque passo no eléctrico à frente do prédio de uma miúda que me seduziu porque tinha a colecção completa das receitas da Elle. Não serviu de nada, ela apanhou-me uma noite depois do coito: falei-lhe nas receitas em vez de lhe dizer quanto a amava, ou coisa no género. Também durou pouco tempo, o idílio: não chegou a um mês. E também pensei na I., que morava em Bey quando a conheci mas depois mudou para Genève e a G. não conheceu. Também durou pouco tempo, mas um bocadinho mais.

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Os miúdos sentam-se ao meu lado no eléctrico que me traz de França. Ela tem cabelos pretos densos como certos passados e um decote que me faz sonhar mais do que muitos futuros. Deve ter pouco mais de vinte anos. O rapaz também, mas ao contrário dela não tem nada que o distinga do resto da humanidade.

Em Rives ela diz-lhe:
- Le Caveau de Bacchus - (é uma loja de vinhos do Rond Point). - Sabes o porquê de Bacchus?
- Não.
- Bacchus é o Deus grego do vinho.

Mudou de lugar; olho-a enquanto fala animadamente com o indistinto. Quanto tempo suportaria os cabelos que lhe cobrem os seios que o decote descobre?

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Como é que se pode resistir a comprar um livro que começa por "J'ai la mémoire portuaire"? Não se pode. Chama-se La Triomphante (foi comprado na Livresse, que é um dos quartéis-generais das fufas de Genève e continua a ser um dos meus sítios favoritos. Aceitam maricas, mulheres e homens. É um café muito bonito e tem o melhor nome de sempre). A autora é Teresa Cremisi. Ainda não o li, claro, comprei-o há pouco e mal o folheei.

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Hoje à tarde tive de ir a França, em missão falhada. Bebi um pastis por metade do preço, a cinquenta metros da fronteira (que já não existe. Atravessei-a para lá de autocarro, na volta a pé. A malta que acredita no valor intrínseco das coisas teria uma certa dificuldade em explicar como é que um raio de uma bebida anizada duplica de preço assim desta forma tão artificial.

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Quase retratos:

Uma mulher vestida de puta vestida de mulher que não é puta. Em que ficamos? Onde paramos?

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Fui ao IKEA com S. comprar uma mesa. Tenho uma certa dificuldade em estar naquele tipo de lojas mas aguentei-me quase até ao fim. Numa das dobras dos intermináveis corredores havia a reconstituição de uma sala de estar, com uma enorme televisão apagada (claro. Devia ser de papel, ou cartão).

No sofá estava um casal de senhores da minha idade, muito juntos, a olhar para o aparelho apagado como se estivessem em casa. Chateia-me quem me queira impedir de usar termos como maricas, panascas e afins; mas chateia-me ainda mais quem não aceite aqueles senhores, tão bonitos. Mais do que o casal que tira as medidas a um sofá-cama com a determinação de uma Panzerdivison a avançar no deserto maghrebino. Há qualquer coisa de decidido no olhar da jovem mulher que me traz à memória um desenho de Quino. Tive-o anos colado na parede: um casal na praia a correr para a água com o semblante fechado de quem vai trabalhar e está farto do emprego.

Nunca acabei Les mots et les choses.

De qualquer forma preferiria Les mots et les personnes.

Ou Les mots et la vie. Ou  Les mots et les jours.

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S. vai buscar umas plantas a casa de um colega. Estaciona o carro no passeio quinze minutos, talvez vinte. Descemos. 120 francos de multa.

"Saíram-me caras, as plantas", comenta. "Que se lixe. Há muito tempo que não apanho uma multa". Era o único carro mal estacionado em toda a parte do quarteirão que percorremos à procura de lugar. Vinte minutos.

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