30.11.16

Diário de Bordos - West Palm Beach, Flórida, EUA, 30-11-2016

Hoje pus, outra primeira vez, uma bicicleta no suporte de bicicletas do autocarro. Não é uma experiência por aí além, é de uma simplicidade assustadora. Experiência, essa sim, é andar nos autocarros americanos (enfim, americanos não. Em S. Francisco não eram assim). A primeira coisa que se vê é a clivagem racial: 95% dos passageiros são negros. A segunda é da ordem da saúde mental: tanto dos noventa e cinco como dos cinco restantes uma grande parte ou é doente mental ou tem problemas de droga, bebida ou sei lá, de relacionamento com o mundo exterior. O resto refugia-se nos telefones portáteis, abençoados sejam.

Eu olho, gosto de olhar. Hoje entrou um branco com a camisola de uma marina que fica entre a minha e a cidade. É uma marina reservada a mega-iates, mega-cara, aposto que o homem - cabelos encaracolados, tímido, olhos castanhos grandes, bonito - chegou aqui há pouco tempo e ainda não comprou um carro ou porque está ilegal ou porque ainda não recebeu o primeiro salário. Também gostei da condutora do autocarro, tão simpática, esperou que atravessasse a rua e deixou-me pagar só um dólar em vez dos dois habituais porque eu não tinha troco. Quando me vim embora disse-lhe "gostaria que os seus colegas fossem todos como você" e ela respondeu "obrigado, sir" e sorriu.

Não gosto de West Palm Beach, não sei se algum dia gostarei - espero que não, seria sinal de que estaria num lugar ainda pior - mas gosto destes momentos de empatia, de humanidade.

Que bom é andar de autocarro.

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O ping-pong com os seguros continua. Esta tarde mandei um puxanço ao qual eles não vão conseguir responder. Quem me dera fosse definitivo. Esperar é uma tortura, com ou sem fogão.

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Hoje não fui ao Catch, vim ao Sugar Palm, de onde escrevo. É mais barato e mais feio e a comida não é tão boa, mas na verdade tudo isso importa pouco. A única coisa que importa agora é pôr aquele barco em condições.

Gosto de refits, de trazer à vida barcos que parecem mortos.

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Comecei a trabalhar nas fotografias. Faltam-me dezenas delas, incompreensivelmente. Pode ser que um dia eu perceba porquê. Isto é: porque é que entre mim e a fotografia há esta ponte partida.

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"Em todos os casais há um que ama e outro que se deixa amar", dizia não sei quem. Às vezes pergunto-me se nessa dicotomia não serei dos que nasceu para amar e não sabe ser amado.

É possível, embora não desejável. Sou.

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Sonho com a simetria como um cego com a luz.

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Isto dito, sou o que sou. Detesto o que sou mas não saberia não o ser, mesmo que quisesse. Não quero: prefiro os diabos que conheço.

E Deus sabe que aos meus conheço-os bem, tão bem como se os tivesse feito.

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De uma coisa não tenho dúvidas: estou sozinho há demasiado tempo. São oito da noite e bocejo como se fossem quatro da manhã.

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Uma coisa mágica nas casas de banho dos restaurantes americanos é: nunca falta papel para as mãos. Não sei como é que eles fazem isto. Em Portugal quando há papel para as mãos num enrolador um gajo faz uma festa e chama o rei de Espanha ou o Papa (o que estiver mais à mão de semear). Aqui nunca falta.

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