15.4.16

Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 15-04-2016 / II

As coisas, tenho-o dito e redito são como são e não como deviam ser ou quereríamos nós que elas fossem. Que me perdoem os revolucionários, activistas, optimistas e todos aqueles que acham que o mundo devia ser diferente.

Têm razão, é óbvio: o mundo devia ser diferente e que ele hoje é melhor do que era há cem anos é prova irrefutável de que quem tem razão são eles, esses a quem agora peço me desculpem por laborar neste erro: as coisas são o que são.  Para mim são. Podia se quisesse elencar aqui uma interminável lista de provas (circunstanciais, é certo) do que afirmo.

Dispenso. O dia de hoje é suficiente e não há revolução ou optimismo que me desconvença.

Sentir-me grato por estar em Shelter Bay, por exemplo. Quem diria? Ninguém e eu menos ainda. Comer no restaurante da marina em vez de comer a bordo. Estar exausto e não conseguir dormir, apesar dos dois execráveis rum punch (Katel, Tanya, Ona, où êtes-vous?) e cervejas e vinho branco que bebi, como se acreditasse que bebendo dormiria.

Sabia perfeitamente que não. Primeiro porque não bebi o suficiente e depois porque o que tenho não se dissolve em álcool. A irrefutabilidade de as coisas serem como são e não como eu queria que elas fossem - apesar de hoje elas terem sido como eu queria e não como seriam se fossem como são - não se apaga com uma cerveja Balboa, um vinho branco caríssimo para o que é ou dois rum punch baratos e maus.

O erro - se fosse honesto diria semi-erro - que cometi à saída de St. Maarten - a saber, uma mistura de fundos e informação - não teve as consequências dramáticas, trágicas que poderia ter tido. Não atravesso o Canal amanhã, prova de que Deus existe ou - mais honestamente - de que as coisas por vezes são melhores do que seriam se fossem como costumam ser; e acho que vou conseguir dormir depois de jantar - este restaurante era horrível; suponho que não tenha mudado; depois de um mau hamburguer e uma cerveja mais ou menos pouco há a fazer, sobretudo se o computador portátil tiver a bateria quase a acabar e o telefone idem -.

Ou seja. Está tudo a correr bem, demasiado bem. Não sei como desenvencilhar-me desta situação. Preciso de dinheiro, mas isso pode esperar até amanhã; de descansar, mas sei que mais tarde ou mais cedo vou conseguir dormir. Vou atravessar o Canal mas amanhã não será a véspera desse dia. Hoje terei descanso.

Pelo menos parcial, porque apesar de tudo as coisas não deixam de ser como são.

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Estamos em Abril e Shelter Bay está cheia. Hoje até vi miúdas com menos de sessenta e oito anos. Muitas e giras. Tinham todas a mesma T-shirt, o que me faz pensar que estavam no mesmo barco e que quem quer que seja que as tenha recrutado tem bom gosto. Nunca vi mais de três garotas jovens nesta marina simultaneamente e mesmo essas eram do tempo da minha saudosa Nike, que valia por duas.

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A cerveja está quase a acabar. O hamburguer era horrível. As coisas são como são, mas isso nem sempre significa que são más. Penso em Espinosa: somos nós que as tornamos boas ou más, consoante.

Estou-me nas tintas. Não o bastante para dormir assim que chegar a bordo mas pelo menos que chegue para pensar que o sono e o descanso não estão longe.

Devia ter ficado mais dois dias em Sint Maarten, essa é que é essa e o resto conversa. Não fiquei. Que se lixe. As coisas são como são. Eu não. Sou o que estou "e é tudo o que sou". Hoje, por exemplo, sou um homem cansado, com problemas que me sobrevoam como urubus e apesar de tudo consegue encontrar harmonia nisto tudo.

Questão de entropia, aposto. Ou de resignação, aposto mais ainda.

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Um dia começarei uma nova carreira: escritor, fotógrafo e barman. Três novas carreiras, como um chapéu espanhol.

No jodas. O meu universo próximo consiste em dormir, acordar amanhã,  não ter rigorosamente nada que fazer se não descongelar o frigorífico, continuar a digerir a raiva que tenho ao G. - está cada dia mais fácil - e pensar que qualquer dia estou numa praia perto de Lisboa a tentar convencer uma jovem senhora de que sou um homem decente.

Sou. Não foi fácil porque as coisas etc. mas sou.

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Um homem decente dorme, não escreve disparates.

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Equilíbrio delicado e difícil, não é? Entre o que as coisas são, o que aceitamos que sejam e o que fazemos para que não sejam.

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