4.2.16

Diário de Bordos - Palma de Mallorca, Baleares, Espanha, 04-02-2016/ Ao largo da Sicília, Mar Mediterrâneo, 24 a 27-01-2016

Palma é uma cidade feita para se percorrer de amor e de bicicleta. Tenho os dois, felizmente; ando (não é o verbo correcto. Deslizo) por estas ruas estranhamente vazias de fantasmas, feliz e leve. Revejo todas as ruas que tão bem conheço, os bares e cafés e restaurantes, a livraria Babel, onde oiço Chet Baker, bebo um Hierbas seco e ofereci a M. uma edição ilustrada e linda do Ítaca de Cavafis (foi ela quem o descobriu). Ontem fomos ao Antiquari, o outro bar que eu quero ter algures em Portugal; e jantámos no Ca na Chinchilla; e andamos de bicicleta pelo Paseo Marítimo.

Palma é uma cidade feita para amar e ser amado, de todas as maneiras. Andar de bicicleta é uma das formas de amar uma cidade e de por ela ser amado.

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A navegar no Golfo de Corinto. A noite está gélida mas linda, limpa, clara com esta Lua quase cheia. O vento vai e vem: motor e vela alternam-se. Uma hora um, outra o outro. Quando não há vento a temperatura sobe. A costa é uma longa fila de luzes: quilómetros de cidade ou, mais provavelmente, cidades.

Amanhã estarei no mar alto. Prefiro. Navegar assim tão perto da costa faz-me pensar que saí para um pequeno passeio de domingo ou uma prova de mar. Estou em terra há quase dois meses: uma foma triste de eternidade. É tempo de ver azul.

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A passagem do Canal de Corinto é um momento quase indescritível: paredes altíssimas, verticais, cheias de árvores que apesar do pouco vento abanam e parecem fazer-nos uma vénia. A água tem uma cor bonita, quase transparente. O canal é muito estreito, um corredor de casa antiga. Com este já passei pelos quatro ou cinco mais importantes: Suez, Panamá, Kiel; mais o Bósforo e Gibraltar, Dover, Malacca e Singapura, do qual ainda me lembro perfeitamente apesar de ter sido há tanto tempo.

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Entrei de quarto há meia hora. Puto de vento. Um armador norueguês disse-me um dia “Não se deve dizer estou com frio, mas sim estou insuficientemente vestido”. Segui-lhe o preceito: três pares de meias (dos quais dois admitidamente finos), ceroulas e calças, cinco camadas de roupa no torso, dois gorros e luvas. Mesmo assim tenho os pés gelados, as pernas frias e o torso assim assim.

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Força 4, bolina folgada. O S. B. inclina-se como aqueles patinadores de velocidade que põem uma mão atrás das costas e quase se deitam para irem mais depressa e desembesta por aí fora - seis, sete nós -. A brisa está irregular mas mesmo assim raramente descemos dos cinco e meio.

É um destes desenhos modernos, casco quinado com o [maître bau] quase na popa.

A temperatura subiu. Hoje tive calor, debaixo das minhas cinco colchas. E agora, de quarto, aguento-me bem sem luvas. Nas Canárias já não nos lembraremos de como foi esta saída.

[Ajuda na tradução seria bem vinda, Mais não fosse terei de voltar a Portugal para reaprender a falar]

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Pela popa está a Calábria; a bombordo, tão perto que quase posso ler os nomes das ruas a Sicília; à proa as Eólicas, tão ventosas que deram o nome ao Deus do vento (ou dele o tomaram); a estibordo o Stromboli. O cenário não é mau.

Vou seguir a costa siciliana até Palermo e aí decido se terei de ir à Sardenha meter gasóleo ou se vou directamente para Espanha: Almeria ou Cartagena. Gosto das duas por razões diferentes. Talvez escolha Almeria: a última vez que lá estive foi muito de raspão. Desta também será, mas dois raspões fazem um toque, não fazem?

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O dia está a acabar. O frio voltou. Hoje em Reggio andei pendurado no mastro em tronco nu e pensei "Finalmente um país civilizado". Depois fomos todos almoçar a uma Trattoria à qual Saverio nos levou. Estava óptimo e comemos de mais.Tivemos uma pequena antevisão de como vai ser nas Canárias: calor e boa comida na jamoneria cujo nome esqueci. O dono é um senhor gordíssimo que sabe a história de todos e cada um dos presuntos que vende: de onde vêm, o nome do porco, o que este comeu e assim por diante.

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Comprei um queijo, pão e alho ao Saverio. Ele ofereceu-nos uma garrafa de grappa e algumas cervejas. Da outra vez que aqui estive não fui muito à bola com o homem. Desta fiquei fã.

Um dia terei de falar dele. É uma figura incontornável para quem faz escala em Reggio di Calabria. Uma personagem que se vê demasiado ao espelho, Mas é simpático, eficaz, vende um queijo parmeggiano divino e faz um vinho idem. Deste não comprei: já tenho duas garrafas a bordo que não posso beber enquanto não estiver pelo menos uma noite em terra.

Está como para os aviadores: nada de álcool oito horas antes da largada.

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Mas tudo isto tem um preço demasiado alto. Acabam de me convidar para ler uma poesia na festa de aniversário de um dos meus bares favoritos em Lisboa e nesse dia estarei muito provavelmente a largar das Canárias.

Um homem tem duas pernas, mas eu ando só numa.

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Um dos tripulantes tem um plano de televisão, net e telefone que lhe dá direito a trinta e cinco dias de net gratuita em cada país europeu onde vá.

Até há pouco estive online. Agora o sinal acabou. Lamento a mágica solidão marítima dos outros tempos e compreendo a sua impossibilidade hoje. Todavia gosto desta ideia de poder escrever e publicar no blog a navegar.

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Poder dizer em “tempo real” (abomino esta expressão) a beleza da costa pela qual passo: andar entre Scila e Caribdis sem ponta de vento é obra. O mar parece um lago e o S. B. arrefinfa-lhe bem. É frugal nos consumos, confortável, a milhas da qualidade do S. M mas aceitável.

Há pessoas que preferem barcos baratos a barcos bons e de certa forma têm razão: para a utilização que deles fazem é ter dinheiro parado numa marina.

Pessoalmente prefiro os bons, mas para mim é fácil: não tenho dinheiro para nenhum deles. Não poder por não poder antes gostar do que é bom, como por exemplo um X.

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Fiz rumo a Cagliari antes do que previra. Mais uma escala para bancas. Não são propriamente as escalas que me chateiam – são curtas de mais para isso – mas aquilo que as provoca: falta de vento. Não fosse a temperature e julgar-me-ia no Verão, que diabo!

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Acabamos de ser abordados pela Guardia Finanza. Muito delicados; pediram-me os papéis da embarcação e fizeram-me acordar o S., que estava a dormir depois do seu quarto. Só para o verem, explica-me o chefe do bando, sempre delicado e professional.

Não encontro o certificado de seguro. Deve ter ficado em Atenas.

- Em águas italianas é preciso o certificado.
- Eu sei. Tenho os seguros em dia – oh se tenho. Foram uma das razões do atraso para sair de Atenas – só que devem estar no computador e aqui não tenho net.
- De qualquer forma estamos em águas internacionais. Não faz mal. Para onde vai?
- Para Gibraltar, mas talvez precise de parar em Cagliari se precisar de combustível.
- Ah, então vai para Cagliari.
- Não. Vou para Gibraltar. Só páro em Cagliari se precisar de combustível.
- E como sabe se vai precisar de combustível?

Expludo mas fica tudo cá dentro. Muitos anos de prática a lidar com atrasados mentais.

- Se houver vento não preciso de gasóleo. Se não houver, preciso – falo devagar, como se falasse a um miúdo de seis anos. O homem sente-se mal. Ao menos isso.
- Ok, boa viagem. Mas olhe que em Cagliari precisa do certificado de seguros.

Mete o certificado no cu, inútil de merda, parasita, sanguessuga desocupada. Puta que te pariu mai-los seguros.

Penso isto tudo ou mais e faço rumo directamente a Cagliari não vá o imbecil reaparecer dqui a meia dúzia de milhas. Ainda não recuperei o dinheiro da multa da Jamaica – não o recuperarei nunca, provavelmente -. Não me apetece alimentar esta cáfila internacional de ladrões.

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Acabo de ler Hotel, de Paulo Varela Gomes. A melhor coisa escrita em português que me caiu nas mãos em muitos anos. Duas ou três pequenas falhas de revisão num mar de qualidade, criatividade, personagens bem urdidas, uma história magnificamente contada, ironia subtil, cultura, humor, português bem escrito.

Termino o livro com pena. Felizmente M. tem bastantes no seu computador e vou encontrar alguma coisa de jeito.

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Chateia-me parar em Gibraltar mas é pouco provável que consiga evitá-lo. Paciência. Vou comer ao restaurante judeu e comprar livros na livraria. Já não há mais nada que fazer em Gib, transformada num centro commercial para turistas. Os bares sórdidos cheios de soldados desapareceram, a novidade da Coca-Cola e do Crunchie e dos banhos públicos também.

Durante alguns anos ainda gostei de lá voltar, mas desta não me apetece mesmo. Que se lixe. O que não tem remédio remediado está.

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M. é giro. Faz tudo por séries: visita cidades antigas (um dia apanhou um avião para Istambul e regressou à sua Gales natal passando por todas as cidades antigas do caminho), lê os prémio Nobel (agora está no Saramago. Leu-os todos, mesmo os que achou difíceis e chatos) e assim por diante. Faz religiosamente tudo o que eu lhe digo para fazer, mas não percebe a razão por que eu lhe digo. S. é mais vivo, excelente pessoa, bem-educado. É o inevitável vegetariano – desta vez para lutar contra o sofrimento dos animais -. Adoro o rapaz mas esta porra dos vegetarianos já começa a enjoar-me. Ando há anos a aperfeiçoar um repertório de receitas para serem feitas numa só panela e com isto tenho de deixar de misturar a carne com os legumes.

Enfim, podia ser pior. São ambos bons tripulantes, fiáveis, com conversa e sentido de humor. A isto tudo S. acrescenta uma excelente colecção de música.

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Se vestir-se apresenta problemas apaixonantes, despir-se não é deles inteiramente desprovido. A razão sendo que um gajo sai de quarto por exemplo às três da manhã, como agora, não completamente enregelado mas lá perto e tudo o que quer é despir-se e meter-se na cama (dantes beliche. Agora seria mais do que uma injustiça uma inexatidão). Como em tudo o que respeita ao leito há que conter-se. Despir-se a granel e sem atender à devida ordem tem duas consequências, ambas desagradáveis: primeira (por ordem decrescente de importância) as roupas não ficam ordenadas para quando for preciso vestir-se daqui a aproximadamente cinco horas e segunda o frio fica desigualmente distribuído pelo corpo: pés gelados e torso apenas frio, por exemplo. Há que respeitar regras, procedimentos, ter calma e ir tirando a roupa de modo a manter o equilíbrio térmico de todas as zonas do corpo.

Mesmo assim tão agradável é como forçoso reconhecer que um gajo se despe mais depressa do que se veste, coisa que se verifica também noutras ocasiões relativas à cama.

Como se pode ver não há actividade menos monótona do que a pilotagem de uma embarcação de recreio quando não há vento. Os temas em que pensar são inúmeros e o tempo que se lhes pode dedicar permite um aprofundamento que nenhuma outra actividade - com a possível excepção da condução de uma bicicleta numa estrada sem trânsito - permite.


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Chegámos finalmente à Marina perto de Cagliari onde vamos fazer bancas. A viagem foi chata: cinquenta e oito horas de motor em menos de três dias. (Quem, eu incluído comentava "ah, o Med no inverno etc. e tal" está servido. Em seis dias de navegação tivemos um de vela. Bolina, mas vela).

Felizmente há coisas importantes com que ocupar o espírito, para além de ver navios (pouquíssimos) ou estar atento a possíveis problemas do motor (nenhuns. Inch'Allah). Eu por exemplo procuro a resposta a uma pergunta que faço cada vez que tenho de vestir as quatorze peças de roupa com que ando vestido quotidianamente (não incluo os gorros e as luvas porque estão na mesa do poço e de qualquer forma agora só os ponho ocasionalmente). A pergunta é: por que devo pôr as meias na mesma ordem em cada pé?

É uma questão séria, na qual os meus abnegados e cultos leitores reconhecerão alentos beckettianos e que nos leva para as vastas estepes da estética, simetria, educação, pressão social, consciência de si e ocupação dos tempos livres.

Um gajo usa três pares de meias porque se não tem frio nos pés. É óbvio que se no pé esquerdo estiver primeiro a branca, depois a azul e por fim a preta e no direito a ordem for a inversa esse objectivo - não ter frio nos pés - é tão atingido (não é, nem nada que se pareça. Mas isso são bolinhas de outro terço) como é quando nos dois pés a ordem das meias é a mesma.

Apesar disso faço um esforço, três ou quatro vezes por dia, para calçar as meias pela mesma ordem.

As razões estéticas podem eliminar-se imediatamente: ando todo o dia de botas; a pressão social idem: a bordo não há grandes preocupações com o que cada um leva vestido e como; e assim por diante.

Claro que nos vem imediatamente à memória a história de Selznick com as cuecas de Vivian Leigh em Tudo o Vento Levou: "mas para quê mandar fazer cuecas de seda como as que se usavam no séc. XIX?" pergunta a actriz. "Ninguém sabe o que eu uso por baixo das saias". "Tu sabes", responde-lhe o grande Selznick, que acabou a vender os direitos do filme quando já não lhe restava nada porque seguiu à risca o preceito do pai: "de viver com o que tem qualquer idiota é capaz. Difícil é viver acima do que se pode".

Vêem o que quero dizer? Começa-se com um problema de ordem das peúgas e acaba-se com David Selznick, Vivian Leigh, as pedras no bolso de uma personagem de Beckett, o frio no mar e - sobretudo - a falta de vontade de dar duzentos euros por um par de botas de couro. Isto é, mesmo que os tivesse, duzentos euros é uma pipa de massa para dar por um par de botas.

Quando o debate entra por estes comezinhos problemas de dinheiro lembro-me do pai de Selznick, respondo que não me chamo David e não sou produtor de filmes (com grande pena minha, acrescento) e penso noutra coisa.

E assim já passou uma boa meia-hora. Ou mais. Não há monotonia no mar. Há sempre coisas em que pensar.

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Parei em Reggio para fazer bancas, ou, de uma maneira mais compreensível, meter gasóleo. Em Atenas o litro de diesel custou um euro e quatro cêntimos. Em Reggio um e quarenta e nove. Cento e quinze litros (o S. B. é um bote frugal: dois litros e meio à hora) custam cento e setenta e tal euros. Faço uma observação bem-humorada e nada agressiva ao senhor da bomba e ele responde-me na mesma moeda: "estamos aqui ilegais e..." Perco o resto da explicação e pergunto-me se lhe devo perguntar ou não.

Deixei ficar. Talvez tenha percebido mal e ele me tenha dito "estamos legais e..." Mas prefiro a primeira hipótese: o combustível é caro porque é ilegal atrai-me mais do que a realidade. O combustível é caro porque os políticos são mafiosos que se equivocaram.

Enfim, na Calábria não se chama Máfia. Nhangreta, ou coisa que o valha.

Estive em Almería pela primeira vez há muitos anos. Ainda não havia aquelas estufas que envenenam a paisagem. Lembro-me das terras vermelhas e de um magnífico jantar de tapas com a tripulação. Pouco tempo antes tinha estado em Cartagena, mas não vi nada da cidade. Ficou-me para sempre a imagem de uma tripulação de submarinistas ingleses a perguntarem-me no cais "onde é que estamos?" e a excitação que se seguiu quando respondi "Cartagena". No dia seguinte os jornais falavam de destruição da cidade por hordas de marinheiros bêbados.

Tive uma vez uma namorada que quis morrer em Cartagena. Faltou-lhe coragem, felizmente. Atravessei a cidade toda a correr; uma avenida de peões grande e larga. Quando cheguei a bordo era falso alarme, mais um.

A rapariga vivia da e para a palavra. "Quero matar-me" e morria; "amo-te" e amava-me; "desculpa" e desculpava-se. Não se apercebia da ausência de correspondência entre as palavras, o que delas ela fazia e a realidade. Mas em Cartagena eu ainda não sabia isso e corri afogueado a cidade toda, eu que não sou capaz de correr mais de cinco metros seguidos.

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