4.7.15

A espantosa vida quotidiana

Foi assim que aprendi a distinguir as tijelas boas para o micro-ondas das más: partindo-as, queimando os dedos, estragando o micro-ondas. Descobri igualmente o momento certo para tirar a loiça do escorredouro: antes do porridge e dos ovos estrelados. Depois não é a mesma coisa; há uma mudança indefinível mas perceptível. Continuo a preferir lavar a loiça à mão: não é uma descoberta recente. E a dizer-te bom dia devagar, como se estivesse a acolher alguém que não vejo há muito tempo e me surpreendesse um pouco. E a olhar para a janela com espanto, ver a confusão de luz e sombras e formas e esperanças que Lisboa é de manhã cedo e ficar espantado com o meu espanto, como se não estivesse lá todos os dias, como se fosse novo todos os dias. Não é. É o mesmo: o espanto de estar aqui e tu aí; o espanto de estarmos vivos ambos, como se tivéssemos sobrevivido incólumes; o espanto de te saber feliz; o de nada ter mudado para mim: continuo a gostar de ritos, das coisas arrumadas, da ordem nos pratos e nos sentimentos; continuo  a perder paciência e cabelos ao mesmo ritmo; continuo a ser eu, cada manhã mais perplexo com o meu espanto. E a aprender, todos os dias.

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