30.6.15

Morte, vida

Dias complicados. Um véu cobre as coisas, a vida. Espesso, pesado, opressor. Impede-te de respirar, de ver, sentir. Viver. A morte é parte da vida, e o cortejo que com ela vem: dor, solidão.

Força: a morte é parte da vida;  não esta parte daquela.

27.6.15

Reedição - De vez em quando apercebia breves lampejos da imagem dela, rápidos como o bater das asas de um colibri em plena tempestade

Estava no meio de um campo, nu como o silêncio. Pouco a pouco esse silêncio foi-se povoando de palavras - era um silêncio comum, partilhado, mas ele não sabia por quem. As palavras entrechocavam-se, embatiam umas nas outras como partículas num LHC; mas apenas libertavam quatidades ínfimas de energia. Essa energia fazia-o mover-se no campo sem árvores, povoado por espantalhos inertes. Só quando o vago rumor das palavras começou a tornar-se audível a vida chegou e uma alegre harmonia inundou a paisagem.

De vez em quando apercebia breves lampejos da imagem dela, rápidos como o bater das asas de um colibri em plena tempestade. "Há dois tipos de silêncio", pensou. "Aquele que é provocado pela ausência de sons, e o que, pelo contrário, resulta da mistura de todos os sons de todas as vidas. Prefiro este último". Era um conceito que lhe tinha ficado do aturado estudo das cores, a que dedicara grande parte da sua vida.

Feliz por esta descoberta recente deixou-se levar pelas diferentes visões: o colibri num dia de tempestade; um túnel circular em que as palavras giravam a velocidades vertiginosas; um exército de espantalhos vivos e sorridentes; uma esfera armilar de ruídos, que o envolve e isola dos outros ruídos todos; o olhar de um ciclone adormecido, atónito primeiro, e depois interrogativo, dubitativo, quase terno - para terminar numa aceitação total, passiva, incondicional da nudez de um silêncio que o perseguia há anos.

"Era um ciclone feminino. Há ciclones masculinos e ciclones femininos. Não sabia". Mais uma descoberta. Cansado, retirou-se; foi rezar os alfabetos que conhecia, como se fossem terços. Mas todas as letras, todos os caracteres de todas as línguas o conduziam ao mesmo sítio, ao lugar de onde partira: uma vida, um campo de silêncio. Tu. Assim se chamava esse lugar, fonte de todas as palavras, de todas as vidas, de todos os silêncios.

"Não vale sequer a pena mencionar os encontros fugazes em escadas de metro de sentidos opostos", ocorreu-lhe subitamente. "Algures há uma força capaz de fazer as duas escadas tomarem uma direcção comum, diferente das que tinham antes. Mas não sei como se chama, essa força. Provavelmente nem nome tem".

Não tinha nome, claro: o que não existe não se chama, não precisa de nome. Nascemos com as palavras, e elas morrem connosco. O que permanece é o silêncio. Tu. Um silêncio feminino.

Reedição - Palavras, silêncio

As palavras vêm ao pôr-do-sol como corvos: o vinho do almoço, a lembrança da última noite que passámos juntos, o mar de Bequia, um rum bebido algures entre as Grenadines e Grenada, com a praia à vista. Palavras, nada mais do que palavras: um "pôr-do-sol", por exemplo, são três delas, ligadas por hífens; "rum" é uma palavra só (já "noite que passámos juntos" são milhares: as que se dizem e as que não). Uma noite no mar das Caraíbas, numa ilha grega, na Irlanda, num planalto africano, num corpo amado: misturas de ar, cordas vocais e células. Nada mais.

Nas ruas passeiam-se milhares de solidões piores do que as nossas - isto é: mais "solidões", mais solitárias, mais "sem ti"-. Contigo uma solidão não passa de aparência: moras no silêncio como moras em mim.

"Corvo" também é uma palavra: negra, alada, grasnante - mas palavra -. Não sei que fazer com elas, as palavras: grasnam como corvos ao pôr-do-sol, carregadas de hífens e de tempo e de memória, como se a memória fosse mais do que uma palavra. E não é: "memória" é uma palavra, ponto - como aquelas que eu usava para te dizer "amo-te" (palavra, só palavra); "quero-te"; "futuro"; etc...-

Somos feitos de palavras; são elas que nos dizem, e não - como ingenuamente pensamos - nós que as dizemos; somos um sopro entre cordas vocais - e essa coisa da alma não passa de uma ilusão auditiva: "alma" -.

"Tocar-te"; "amo-te"; "a tua pele"; "navegar-te porque és um mar, o mar de «amar»"; "amar-te porque és um mar, o mar de «oceano»"; "amar-te porque és o vento, o vento de «futuro»"; "amar-te porque és o silêncio": palavras, nada mais do que palavras. Como "sentimento": tetrassílabo, grave, substantivo. Ar. Palavra.

Vinho, por exemplo, é uma palavra: tinta, encorpada, adstringente, taninada, equilibrada. Fátima é outra: loira, sorridente, esguia, sensual. Mar: azul, infinita, bela, interminável, envolvente. Amor: tu. Palavras, tudo. Só palavras.

E silêncio, quando te ris e me amas.

25.6.15

Lisboa subjectiva

(Reedição e actualização)

Há doses maciças de serotonina nos seguintes locais e acções:
  • Bar O Pirata, nos Restauradores;
  • Bar Procópio, nas Amoreiras (é o melhor bar do mundo, o que prova que Lisboa é a melhor cidade do mundo);
  • Beber um gambrinus no Gambrinus (e comer uma empada de perdiz);
  • Biblioteca da Academia das Ciências, na rua homónima;
  • British Bar, no Cais do Sodré;
  • Café Tati;
  • Casa Independente, no Intendente, quando está vazia. 
  • Claustro da Sé;
  • Claustro do Mosteiro dos Jerónimos;
  • Comprar flores na O Nome da Rosa, no Princípe Real;
  • Descer a rua do Alecrim de manhã, ou subi-la à noite;
  • Descer a Rua do Jasmim de manhã cedo, quando a Ponte parece estar a ligar os dois lados da rua e os automóveis são pontos de luz cor-de-laranja, brinquedos de um jovem e enérgico deus;
  • Eléctrico 28 (e reconhecer os carteiristas);
  • Elevador da Bica;
  • Escadinhas do Duque;
  • Esplanadas à beira-rio entre Santos e o Cais do Sodré;
  • Fado Vadio na Adega do Ribatejo, Bairro Alto;
  • Ginginha Sem Rival, na rua das Portas de Santo Antão;
  • Hot Club, na Praça da Alegria;
  • Instituto do Vinho do Porto, na rua S. Pedro de Alcântara;
  • Jardins da Fundação Gulbenkian;
  • Largo do Carmo;
  • Lisboa vista de Cacilhas;
  • Livraria Galileu (é em Cascais, mas é como se fosse em Lisboa);
  • Livraria Ler Devagar, Lx Factory;
  • Lulas à Dona Maria no Beira Rio, Santos;
  • Margens do Tejo entre Alcântara e Belém (na enchente);
  • Miradouro de Santa Catarina;
  • Miradouro de Santa Luzia;
  • Museu Nacional de Arte Antiga e respectivo jardim, na rua das Janelas Verdes;
  • Padaria Doce Real, no Príncipe Real;
  • Passear no Paredão, entre S. João do Estoril e Cascais (ditto);
  • Pastelaria Bénard, Chiado;
  • Pastelaria Ribeiro, em Cascais, ao almoço (ditto);
  • Praça das Flores, a mais bonita praça de Lisboa, a mais internacional, civilizada e lisboeta de todas as praças da cidade, sobretudo ao domingo;
  • Restaurante Armazém da Cachaça, em Santos;
  • Restaurante Bar Chapitô, na Costa do Castelo;
  • Restaurante Cantinho do Aziz, na Mouraria;
  • Restaurante da Sociedade de Geografia de Lisboa;
  • Restaurante Merendinha do Arco, o único sítio do mundo onde consigo comer torresmos;
  • Restaurante O Trivial, Princípe Real;
  • Restaurante Painel de Alcântara, na rua do Arco a Alcântara;
  • Restaurante Sabores de Goa, na rua do Zaire;
  • Restaurante Soajeiro, em Santos (para quem gosta de espetadas à Madeirense);
  • Restaurante Stop do Bairro, em campo de Ourique;
  • Restaurante Tambarina, na Rua do Poço dos Negros, 94. 
  • Restaurante Tascardoso, Princípe Real;
  • Rocha do Conde de Óbidos, sempre;
  • Subir ou descer a Avenida da Liberdade;
  • Todas as ruas de alguns bairros de Lisboa, ou algumas ruas de todos os bairros de Lisboa;

Diário de Bordos - Lisboa, 25-06-2015

Lisboa não se dá a ver, não se oferece. É preciso descobri-la; ou, melhor ainda, redescobri-la. Amante velha a cuja cama retornamos mais por memória do que por desejo.

Reedição - Silêncios

É meia-noite e meia e provavelmente a vigésima vez que chego a uma cidade com a esperança de recomeçar a vida. Aos quarenta e três anos é, reconheçamos, tarde. Nunca se reparte do zero, evidentemente, excepto financeiramente: todos nós acumulamos uma bagagem à qual os americanos dão o nome, redutor, de “emocional” e um conjunto, mais ou menos rico – mas muito mais importante do que a dita bagagem – de silêncios, que levamos connosco onde quer que vamos. É por isso que o James Baldwin tem aquelas linhas fabulosas sobre o mundo,  "sempre mais pequeno do que o viajante que nele viaja"; e é por isso que nos tornamos, com a idade, cada vez menos pacientes, mas cada vez mais tolerantes.

Há vários tipos de silêncio e várias receitas. Os meus são feitos de uma mistura - que varia, naturalmente, com o interlocutor - de medo, arrogância e esperança. Há outros ingredientes, claro, como o respeito, a liberdade, a indiferença, o embaraço, a cumplicidade. Cada pessoa deve escolher o seu silêncio – e os ingredientes que o compõem –, mas nunca se deve misturá-los, porque cada silêncio é diferente dos outros, e não são miscíveis: misturá-los é uma fonte garantida de misérias ou de chatices. Sobretudo, os silêncios não devem ter mentiras à mistura, porque mentimos a nós mesmos – e isso acaba mal, invariavelmente –. Há silêncios sólidos, e outros que o são menos; há silêncios que nos encurralam, e silêncios que nos libertam (enfim, espero).

Há silêncios de vários níveis: a primeira vez que fui a Barcelona fiquei em casa de amigos que conheci durante as vindimas em França. Ele era basco, pequeno e atarracado, falava espanhol e francês. Ela era uma alemã interminável, com uns seios enormes que eu por vezes via, nus, sobre a cidade, como duas luas abençoadas, e falava alemão e inglês. Compreendiam-se porque eram ambos estudantes na escola de mímica e mimavam todas as conversas, mesmo as mais triviais. Era agradável estar com eles, mas a magia perdia-se um pouco porque eu tinha que falar - não sabia, como eles, mimar o silêncio.

II
Os silêncios mudam, como o tempo ou o mar, rei de todos os silêncios. Hoje conto os tostões em Londres e bebo cerveja Courage, e tento reanimar uma libido moribunda. A libido está para a saúde como a construção para a economia. Os próximos anos vão ser uma travessia do deserto, mais uma. Para que uma relação funcione é preciso que os silêncios de cada um dos parceiros sejam compatíveis. E eu preciso de apanhar os bocados de mim que deixei espalhados por todo o lado, que as feridas se fechem e que esta impressão de não servir senão para beber whiskies (beber cerveja é uma adversidade, mais uma) me largue antes de poder sonhar com outros terrenos, outros corpos.

Uma vez conheci uma mulher pela qual me apaixonei. Um dia fui esperá-la ao aeroporto e vi todas as mulheres da minha vida, todos os aeroportos. E vi, como antes de morrer, todas as mulheres que esperei em todos os aeroportos, e apercebi-me de que ela se enganava de silêncio, como eu. Amava-a demasiado para lhe infligir o campo de batalha no qual a minha vida se tinha transformado. Amava-a muito; ainda a amo, de uma certa maneira, como amo todos os silêncios inexplorados, incompletos, frustrados. Mas ela detesta-me, odeia-me, e tem razão: outro silêncio mal interpretado, outro silêncio mortal, outro silêncio do qual portarei o estigma até ao fim. Há silêncios invioláveis, impossíveis de partilhar, e os meus são-no cada vez mais, angustiantes.

III

Escrevia estas linhas em Londres, e nessa altura não media a amplitude da devastação. Hoje, nestes comboios quotidianos (que em breve acabarão, eles também), ainda ferido, ainda só, tento “quebrar o silêncio”, recompô-lo numa memória de computador, na minha memória. Mas é difícil: quando se teve por única companhia, durante tanto tempo, um dado silêncio é difícil mudar: não se pode mudar de silêncio como se muda de camisa. Como não se pode mudar de dor, nem a dor.

Alguns silêncios têm cores. Um dos meus silêncios favoritos é negro, negro como os cabelos de uma rapariga por quem me apaixonei há uns anos, numa praia de Moçambique. Estávamos deitados na areia, a olhar o céu e a falar – ela de Lanzarote, onde tinha nascido, de Londres, onde vivia, do trabalho, com o qual não estava contente. E eu falava-lhe das raízes, que teimam em crescer, e das quais é tão difícil fugir, às quais é tão difícil voltar; e de como é imperioso fechar as portas que deixámos abertas por muito que os anos tenham passado. O desejo subia em nós como a maré, ou como um copo que se deixa debaixo de uma torneira que pinga, em silêncio. Eu olhava-a, e via a mancha negra dos cabelos dela no branco da areia, e falava, falava, porque falar é o melhor silêncio, por vezes. Hoje está a chover, e a chuva é espessa e negra e brilhante como os cabelos dela na areia. Eu não sabia que estava apaixonado, e de qualquer maneira não queria estar apaixonado, porque não queria sofrer mais, nem fazer sofrer. No fim, como sempre, os silêncios levaram a melhor ao desejo: disse-lhe boa noite, acompanhei-a ao quarto do hotel, e fui deitar-me sozinho, dorido.

Agora é tarde, demasiado tarde. Já não estou apaixonado por ela porque o amor é como a chuva: por vezes deixa-nos molhados e frios, por vezes deixa-nos como a erva nos planaltos do Zaire, leves, brilhantes e abençoados. Os silêncios, como as chuvas e os amores, podem ser muito diferentes, mesmo se se assemelham imenso. Com essa rapariga falava espanhol, e uma língua que partilhamos com alguém é como uma casa. Cada casa tem cantos que nunca visitamos, silêncios. No “Leopardo”, esse milagre, o Príncipe diz: “uma casa da qual conhecemos todas as divisões não merece ser habitada”. Falávamos espanhol, mas eu não sei calar-me em espanhol – e só devemos utilizar uma língua quando podemos utilizar os seus silêncios. Já não a amo, como a chuva que parou e deixou as ruas molhadas, mas brilhantes; e gostaria que ela fosse feliz como uma paisagem africana depois da chuva.

Que fazer, para calar os gritos ensurdecedores dos meus silêncios? Escrever, talvez.



Londres, Neuchâtel, 2001

19.6.15

Mãe

Foi neste corpo agora quase desfeito que fui feito. Foi esta pele a minha primeira outra pele, estas mãos as minhas primeiras outras mãos, esta vontade a minha primeira outra vontade.

Podes morrer, Mãe; mas o que de ti em mim ficou fica.

16.6.15

Palmar Tent Lodge

I haven't slept in a tent since I was 17 years old. Don't misunderstand me: this does not mean I have been slumbering in luxury. Far from it. I've slept in almost any place you can imagine: wooden boats, rotten wrecks, luxury yachts, big and small, racers or cruisers; I've slept in ex- (and sometimes actual) girlfriend's couches, in hotels between nil and five stars, luxury lodges in South and dismal "hotels" (brackets more than justified) in Central Africa; I slept in railways, airports (I particularly suggest you avoid Miami Internaional, should you spend a night between flights and paychecks), jails (only twice, for very short periods and noble reasons), boardinghouses, crewhouses, whorehouses (without the whores, I quickly precise). For the last forty years I have slept in practically any place you can think of, bar tents.

So spending two nights in Palmar was kind of mixed novelty for me: I knew the place like if I had lived there (in fact I did, but don't tell anyone: the moments I spent at Palmar count amongst some of the best in my life) but I did not remember what sleeping in a tent was like.

"The sea has many voices" TS Eliot wrote. They change with the place you hear them from. One of the advantages of Palmar is that you hear the sea, nearby and, even nearer but harmoniously, balanced, somehow in tune you hear also the many sounds of the rain forest.

In the morning (I wake up very early) the light enters your "room" not from a window, but from the "walls". The entire room is illuminated at the same time, the same rythm.

........
Palmar Tent Lodge has a strange filter at each entrance: people can pass, but problems are barred. If per chance one of the problems manages to sneak in - because it is too big, or too ingrained into you - it immediately turns into a solution.

........
In case you do not like swimming or strolling on a desert beach early in the morning, when the sun rises and colours change quickly, if you do not appreciate a splendid breakfast immediately afterwards, if you do not like to hear the sea and the rain forest interact in some kind of misterious dialogue - don't go to Palmar.

If you do, don't wait too long.


Diário de Bordos - Bocas del Toro, Panamá, 16-06-2015 / II

Procuro um sítio para dormir. Acabo de passar duas noites no Palmar: um hostel parece-me uma queda demasiado abrupta na realidade. Vou ver um hotel a vinte dólares. A recepção cheira a mijo, mas felizmente nos quartos esse cheiro é substituído por outro, a petróleo de candeeiro. Não percebo de onde vem: não vi um único num raio de cinquenta metros.

Resigno-me e telefono para um número que T. me deu ontem. Disse-me que M. alugava quartos "e pagas o que quiseres".

M. é uma espanhola com uma voz de quem já bebeu muito whisky. Ao telefone começa por me dizer que não "aluga quartos". Digo-lhe que trabalhei para T. e foi ele quem me deu o número. "Ah, ok. Onde estás?". "À frente do supermercado Isla Cólon". Explica-me que me vem buscar, com "um pólo encarnado e um guarda-chuva".

É daquelas personalidades que cativam imediatamente, intrigam, me fazem pensar nas "mulheres misteriosas" do The Sense of an Ending. Pergunto-lhe há quanto tempo vive em Bocas. "Quatro meses e meio". As respostas são sempre curtas, precisas, incisivas. "E por que raio vieste viver para aqui?" (a tradução não é literal). "E porque não?".

Fala muito rápido, tal como anda. Ou há ou já houve muita coca naquelas sinapses."E o que fazes?" "Leio mãos, cartas, faço limpezas".Não sei em que ponto da conversa me diz que não tem um quarto para alugar: tem "um sofá, um computador e um chuveiro quente". "Dispenso o computador e o chuveiro quente. Frio está bem". "Tem água quente. Se quiseres usas, se não não usas".

No caminho falamos de Portugal, país que adora. "O Porto e desde o Porto até um bocadinho ao norte de Lisboa", precisa. "Lisboa também está bem, mas é uma capital" (M. é de Madrid, o que talvez ajude a explicar orque não gosta de capitais. Não sei).

Vi o sofá, o duche e o computador que dispenso. Disse-lhe que ia chegar tarde porque hoje há música ao vivo no Bookstore e a miúda que lá trabalha é de uma beleza estonteante (tem dezoito anos, coitada). E amanhã saio cedo (mas não muito: a casa é a dois minutos do aeroporto). Chegámos aos números. Diz-me "um six pack custa quatro dólares e oitenta. Parece-me um preço justo para o sofá". Concordo, dou-lhe cinco dólares e voltamos juntos para a cidade. Tem um (ou uma, não percebi) cliente para ler as mãos e outros para cartas. Fico ainda a saber que tem dois ou três diplomas universitários, faz traduções e interpretações, trabalha para advogados. "Faço o que aparece".

Há poucas pessoas por quem eu sinta um asco maior do que o que tenho por T. Acaba de se atenuar um bocadinho, o asco.

........
Bookstore: não é o meu ambiente. oitenta por cento de gajas boas e sozinhas e vinte de gajos com cara de parvo fazem-me sentir inábil, preguiçoso ou estúpido. Ou os três ao mesmo tempo, não se excluem.

Ou então sou eu que tenho uma visão selectiva. Não seria impossível.

Diário de Bordos - Bocas del Toro, Panamá, 14 a 16-06-2015

Pergunto-me de novo se é uma vida e de novo respondo "Não. É a vida. A única. A que tenho, sei e posso viver. Não vale a pena mudá-la".

À primeira quem quer cai; à segunda cai quem quer. Caí a segunda e, não por coincidência, em Bocas. As razões são as mesmas e uma delas nunca mudará: não me interesso o suficiente por dinheiro para tomar precauções.

Regresso a Bocas com o W. e acabo de receber metade do que pensava e devia; e mesmo isto depois de muita discussão, ameaças e gritos. Há tempos perguntava-me se T. é só forreta, ou se o é patologicamente. Agora sei. Não é só patológico: é também desonesto.

Não vale a pena elaborar.

.........
"Tiveste um bom dia?", pergunta-me Gerardo, do Palmar. "Não sei", respondo e fico-me por ali. O dia começou bem: um banho às seis da manhã na praia deserta, o dia a nascer, beleza por todos os poros.  Depois do pequeno-almoço percorri a praia de uma ponta à outra. Já o sol ia mais alto, claro; mas a beleza era a mesma. Outras cores, ou outros tons nas mesmas cores.

No Palmar não há telefone nem net. Venho para Bocas e recebo uma notícia. Esperada, mas devastadora. Depois da qual não há nem boas nem más notícias, não há nada se não uma necessidade imperiosa de voltar para Lisboa o mais depressa possível, de mudar os planos que eram, eles também, consequência de uma mudança de planos.

Não vale a pena elaborar.

........
Bebi The Sense of an Ending, de Julian Barnes de um trago só. Penso nos Satanic Verses, no The Sea, The Sea, no There But For The, que recentemente li; em todos os livros excepcionais que até hoje fizeram o meu mundo mudar e eu com ele e penso que é uma das coisas que devo à vida: livros de tirar a respiração, de reler mal se acabam de ler, de nos fazer amar as palavras e esquecer a merda que elas por vezes trazem.

........
"The sea has many voices", diz TS Eliot. Mudam consoante o lugar de onde as ouvimos. Estas duas últimas noites ouvi-o das tendas do Palmar, onde pela primeira vez durmo.

O Palmar Tent Lodge tem um estranho filtro à entrada: deixa entrar pessoas mas não os problemas. Estes ficam à porta. E se por acaso um deles consegue esqueirar-se lá para dentro deixa de ser um problema e transforma-se imediatamente numa solução.

À noite ouvem-se uma das vozes do mar e as inúmeras da selva. Só há um outro lugar no mundo que tem em mim este efeito: a península de Burton, no Lago Tanganyka. Felizmente a Isla Bastimentos é mais acessível.

........
Cheguei a Bocas del Toro âs duas e meia da manhã. Até uma hora antes tive uma daquelas noites que explicam porque gostamos de navegar e porque é tão bom fazê-lo sozinho: zero nós de vento, céu completamente limpo, estrelas e planetas tão próximos que pareciam luzes de uma cidade invertida que eu sobrevoava por baixo. Que eu subvoava...

Acabei a manobra de fundear às três e meia e fui dormir.

........
Estou numa espécie de corrida que não tem vitória possível. A puta ganha sempre. É uma dor que a humanidade sente desde que deixou de ser constituída por macacos e começou a ser formada por homens. Mas não tem remédio: nãao há aprendizagem nem experiência que valham.

Não há ninguém que ela poupe. E nunca estamos tão sós como quando é a nossa vez.

(Isto dito agradeço à Sofia a ajuda, o trabalho, o esforço, a dedicação, o carinho).

........
Não sei se ganho se perco nas transacções com a vida; sei que há uma conta na qual ela me está devedora: sempre fui mais bem amado do que amei.

É altura de acertarmos contas, vida.

11.6.15

Estupidez indefinitiva

A parte mais agradável da estupidez é quando um gajo se descobre ou se confirma estúpido.

Olhar para trás e ver a infinita quantidade de vezes que foi estúpido e pensar "foi a última" sabendo pertinentemente que não foi. Não poder sequer alegar que mudou de estupidezes como mudou de estilo de roupa - não mudou nem um nem outro -.

Ser estúpido é um daqueles prazeres que só se conhece quando se perde. Felizmente a perda nunca é definitiva.

Ornette

Morreu o Ornette Coleman. Sou avesso a homenagens póstumas e a heróis. Mas reconheço que ele me proporcionou alguma da melhor música que jamais ouvi.




Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 11-06-2015

Hoje é a minha última noite em San Andrés, se tudo correr bem. Enfim, não espero que corra tudo bem; peço apenas que não corra tudo muito mal. Normalmente mal já chega para não ter de voltar. Afinal são cento e noventa e três milhas: quarenta e oito horas a quatro nós, menos seis a quatro e meio e mais sete a três e meio. Dois dias passam depressa, e se o vento se mantiver só vou precisar do motor um deles.

É espantoso como há pessoas que preferem barcos a motor. Nada mais seguro do que um mastro e uma vela. Desde que haja vento, claro. Coisa notoriamente ausente da costa atlântica do Panamá.

"On s'en fout. De toute façon on n'est pas d'ici. Demain on s'en va".

........
No Beer Station a má música foi substituída por futebol. Dos dois prefiro aquela. Este é uma demonstração dos abismos de idiotia aos quais se pode chegar - com a melhor das intenções, reconheço. Mas idiotia na mesma - . O jogo é entre o Chile e o Ecuador.

Resisti um bom bocado. Agora oiço Milton Nascimento: o Milagre dos Peixes. É um dos melhores discos de música brasileira que conheço. E se não, é pelo menos um dos que gosto mais. Apreciações que nem sempre coincidem, eu sei. Mas reivindico na mesma.

Poderia ouvir My Spanish Heart, de Chick Corea. Não anda lá muito longe. Ou, num registo diferente, a música da Ana Cordeiro Reis, tão linda, majestática, profunda.

Na verdade preferia que o vento amanhã caísse. Há pouco quando saí de bordo andava outra vez nos vinte e cinco nós. No lugar em que estou com quinze é difícil sair. Com vinte um daqueles impossíveis que tentamos porque as circunstàncias o exigem. Com vinte e cinco nem sonhar.

Me traes un mojito sin azúcar, porfa?

........
Acabei por não dar a volta à ilha, coisa que vou creditar aos meus defeitos. E não ir comer à cooperativa de pescadores. E um monte de outras coisas, um monte de outros defeitos.

........
Vou para o mar numa embarcação na qual hesitaria em atravessar o Tejo. Mas há pelo menos uma coisa boa: vou sozinho. Não ter de me preocupar com mais ninguém é uma paz de espírito.

Tal como poder andar vestido da maneira que quero, claro.

Amor, tempo

Tira o amor do armário do tempo. Despe-o de passados, livra-o de futuros. Deixa-o correr pelos dias como azeite na tempestade.

(Uma pequena nota: antigamente os marinheiros deitavam azeite no mar durante as tempestades para acalmar as vagas).

10.6.15

Escolhas fodidas

- Vamos fazer assim: primeiro amas-me tu e fodo-te eu. Depois trocamos: amo-te eu e fodes-me tu. Vemos qual é melhor e só então escolhemos.
- Define "melhor".

Rum vazio

Quando se é tomado por uma irreprimível vontade de beber um rum o rum  Medellín não é o primeiro que nos faz correr.

Há muitos parâmetros : a distância - é preciso um moto-táxi?- o preço, o barulho, a quantidade de televisores -e concomitantemente de pessoas - etc.

Curiosamente o rum Medellín ganha em quase todos os critérios. E isto apesar de ser uma merda de um rum. Doce, enjoativo, com a tusa de um eunuco bêbedo.

Pelo menos deixa-me sair de bordo a um custo reduzido. Quando o Lupita está vazio, coisa que infelizmente não é frequente e hoje felizmente é.

9.6.15

O princípio do affaire

A quantidade de coisas que pode correr bem é de longe inferior à das que podem correr mal. Mas estas são mais difíceis de perder.

Ilusões, injustiças

É relativamente injusto que se possa atrasar um relógio mas não o tempo.

Rigor, ausência

Há que ser rigoroso. Em tudo: no excesso e na falta dele; no vigor - que seria do vigor sem rigor?  - no caminho e nas margens que, como quase alguém dizia, o oprimem.

Sobretudo nas margens: é preciso delinear rigorosamente os olhos que te olham, os braços que te acolhem, os ventres pelos quais avanças como uma nota de música que fugiu da pauta.

Há que ser rigoroso: saber dos caminhos os èsses. Nunca, por exemplo, deixar uma garrafa de vinho a meio. Pode perder-se no balanço. Nunca deixar por amar um corpo não vá a cabeça perder-se.

Amar rigorosamente: começar no meio e acabar nas pontas sem nunca passar para fora. Traçar o contorno da pele e imaginar que o desejo se alimenta ali: naquela linha que a língua, as mãos, os olhos traçaram, rigorosamente.

Não sei se prefiro o rigor ou o excesso.

Uma ausência não tem pele, mas tem rigor. Haverá ausências excessivas?

(Para a Sofia, com ternura).

O mar, o mar.

Mais um dia que acaba melhor do que começou; mais um passo para a largada.

O mar, o mar.


Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 09-06-2015

Domingo foi domingo: o dia a seguir ao sábado. Pichirilo apareceu com uma ressaca monumental e mandei-o para casa. Ontem foi feriado. Hoje vai chover. Acho que estou pronto para dar aulas de gestão de frustração; ou melhor, de raiva.

Está quase. Falta pouco. Estou quase fora daqui.

Como sempre quase é uma palavra que engana muito.

........
Ontem fui entrevistado pela televisão local. C., a mulher do dono do café onde vou às vezes ao meio-dia comer um kibe e à tarde beber uma cerveja é jornalista e vai fazer um programa sobre as dificuldades laborais na ilha.

As quais são consequência da proibição da trazer pessoal de fora para trabalhar. "Pessoas" incluindo colombianos: o governo não quer que a população aumente e proíbe que se contrate mão-de-obra no continente.

Quem aqui está não tem concorrência. Claro que não são apenas os navegadores de passagem que sofrem. Quem cá vive passa por muito pior. Os donos das empresas estão fartos e querem mais flexibilidade no OCRE (é o nome do documento que dá direito a residir em San Andrés. C. diz que é mais difícil de obter do que uma green card).

Depois - para outra emissão do mesmo programa, que terá o turismo (outro tema do debate político da ilha) - fez-me duas ou très perguntas sobre turismo náutico.

Localizada onde está - entre os EUA e o Panamá - e com as condições meteorológicas que tem - vento, ausência de ciclones - esta ilha poderia ser um pólo de turismo náutico importante nas Caraíbas. Não é, pela razão habitual: ignorância. Mas sobre isto parece que o governo já está a agir. Contratou uma empresa para lhes fazer uma consultoria.

Nunca deixa de me fascinar, quão longe o mar pode estar da cabeça das pessoas, mesmo numa ilha.

........
Faz hoje um mês que cheguei aqui.

8.6.15

Memórias vagas, vagabundas, aduladoras

"Animula, vagula, blandula
Hospes comesque corpori

..."


Alminha vagabunda, aduladora,
hóspede e companheira do meu corpo...

Di-lo-ei por ti

O que não foi dito por Bartók.




PS - Ainda me lembro de quando não gostava disto. E ainda há quem pense que a juventude, etc. ...

Jardins, selvas (pistas)

Mesmo para mim - não sei, não quero saber e detesto quem sabe caçar em jardins zoológicos - aquilo era um terreno de caça tentador. Os alísios, o mar, a gentileza dos - e sobretudo das - autóctones, a quantidade de bares, cada um melhor do que o seguinte, a música excelente em todos eles... Havia tantas mulheres lindas que uma feia era uma benção, um repouso para os olhos.

Todos os dias me perguntava o que faltava no argumento. Um dia encontrei: era eu. Sentia-me como aquela personagem do Woody Allen que salta do écran e vai viver a vida.

Faço ao contrário: todas as noites volto para o meu filme. Os jardins zoológicos metamorfoseiam-se num ápice.

Antes preso na selva do que livre no jardim.

"Je pleurai à l'idée que la vie fût si simple, et serait si facile si nous étions nous-mêmes assez simples pour l'accepter."

"Qui serait assez insensé pour mourir sans avoir fait au moins le tour de sa prison?"

(Margueritte Yourcenar)


7.6.15

Bartók e os rosários

A tempestade não vem. É por isso que não gosto de rizar antes de elas chegarem: às vezes falham, mandam-nos passear. "Não és homem para mim".

Bartók fala disso, claro. Fala de tudo (e o que ele não disse deixou para o Taylor, mas são contas de outro rosário).

Bar Bartók

Há montes de Bartlebies por esse mundo fora, mas não conheço nenhum Bartók.

Coisa que me intriga, por coisas como esta.

Reedição, ou das grandes vantagens de se ter um blog há uma porrada de anos

Afrodisíaco


Se eu quisesse escrever escrevia. Mas não quero. Preferi não ir jantar ao libanês porque estava cheio e não tinha lugar para  mim, e não ir ao Pavilhão Chinês beber Alexanders e não ir a lado nenhum e vir para casa ouvir uma sonata do Bartók e pensar se os restaurantes que não têm lugar para nós não são um bocadinho como corpos que não têm lugar para nós, um bocadinho só, claro, porque ao restaurante pode sempre voltar-se ou reservar-se ou arriscar de novo e a um corpo não, não se pode. De qualquer forma a questão é saber o que desse corpo queremos, porque os corpos não vêm com menus tipo "quero as mamas mas sem coxas, por favor" ou "quero o ventre. Acompanha com quê?"; ou "ainda não sei  que vou beber. Hesito entre saliva e fluido vaginal". E essa é que é a grande chatice porque dos corpos quero cada vez menos, acho que estou a transformar-me numa espécie de asceta estilita místico-apaneleirado alcandorado numa coluna de desgosto, vejam lá a desgraça.

Enfim, tudo isto para dizer que hoje acabei por vir para casa e quando cá cheguei tinha a Laura à espera; já nem me lembrava de alguma vez lhe ter dado as chaves de casa, mas dei, é óbvio; e hoje venho para casa a pensar em Bartok, vento e dinheiro, que são as únicas coisas em que penso nos sábados à noite quando no dia seguinte tenho regatas e vejo a miúda nua na cama a dizer-me "até que enfim. Estava com medo que não viesses sozinho". Como se ela não soubesse que o risco de não vir sozinho é praticamente zero, nunca trago mulher nenhuma para minha casa, não quero que elas fiquem com falsas expectativas - a casa é enorme, mas eu não tenho um chavo e as gajas ainda se põem a pensar que sou rico e depois tenho que as desiludir e dizer-lhes "querida, não tenho um chavo" e vê-las ir embora desiludidas -.

De maneira não estava nada à espera da Laura na minha cama. Tudo nela é bom, a começar pelo nome. Quero-a toda, crua, mal passada ou passada de todo, às vezes acontece - vai comprar hasch a Sta. Catarina e fuma aquilo tudo até mal se ter de pé -. Hoje não.

Fui para a cama e ela começou a chorar, muito devagarinho, muito ao de leve, muito de passagem. "Aposto que está a correr mal com o teu gajo" disse-lhe; e ela respondeu "acabei com aquilo. Não fazia sentido". "Então porque é que estás a chorar, se não fazia sentido?" "Porque não é fácil". "Não é, eu sei"; mas não me apetecia fazer-lhe amor. Só acariciá-la, mais nada, e ouvi-la chorar. A maioria das mulheres fica mais bonita quando chora, mais densa, mais consistente; não sei como dizer. Enfim, quando chora por determinadas razões, nem todos os choros servem para isso.

De modo estávamos ali os dois na cama, eu calado e ela a chorar sem fazer barulho, sem sequer tremer, nada, imóvel. Eu usava as lágrimas dela para lhe acariciar as mamas, traçava círculos muito pequenos junto dos mamilos com os dedos humedecidos pelas lágrimas e não dizia nada.

"Não é fácil", disse-me ao fim de um bom momento disto. E depois: "come-me". "Acompanhada por quê?", perguntei-lhe; "pelo Rui?" e ela respondeu "idiota. Fode-me" e pronto, ficámos por aí, no que respeita a diálogo, ou a palavras. Laura é a única mulher que conheço que sabe o efeito profundamente afrodisíaco do silêncio, ou de certos silêncios.

Música, estupidez

É peciso reconhecer que a transição de Dvořak para Bream & Williams não foi um sucesso de audiência. Penso em Bartók e chego finalmente à conclusão de que é o leitor de bordo que me está a foder os CD. Por sorte foram as Danças.

Apercebi-me disto ontem, mas esperei até hoje para confirmar. Acho que mereço. Toda a estupidez deve ser punida.

O fim da tempestade, quando chegar

Nada substitui uma pila numa cona, duas mãos em duas mamas, duas vozes numa só.

Nem o fim de uma tempestade.

Tudo. Nada

A Nona de Dvořak está fodida, também. Cada vez me pergunto mais se vale a pena levar os discos para Lisboa. Ponho uma colectânea do Bream e do Williams. É mais ou menos isto que "mixed feelings" quer dizer, não é?

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 07-06-2015 / II

Estou neste horrível Beer Station. Não. Estou nesta horrível música do Beer Station. À minha frente vejo a tempestade aproximar-se. O mar está verde azul e cinzento; o céu cinzento apenas, mas em todos os tons, do muito escuro ao quase branco. Não é um simples squall. É uma perturbação que vai durar pelo menos dois dias, suponho.

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Não terei vento para ir, diz o GFS. Acredito: ou não há vento ou é contra. Não acredito: quarta-feira é daqui a muito tempo.

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A música foi substituída por um jogo de futebol. O Beer Station vai ser substituído por uma estação chamada W., que me acolhe como se eu lá vivesse: boa música, boa comida e uma ausência total de televisão.

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O cinzento da tempestade faz ressair o branco das vagas que ao longe quebram no recife. Já estou no mar: a paisagem interessa-me menos do que o que vai trazer. E fico contente por estar em terra. Mas é impossível fugir a tanta beleza, tanta força.

Se estivesse real e não apenas mentalmente no mar começaria a verificar as peias do que levo no convés e do que está no interior; os rizos; iria vestir-me; comer qualquer coisa rápida para estar preparado; verificar todas as vigias e escotilhas.

Isto feito sentar-me-ia à espera. Pouco antes de chegar iria rizar. Pegaria no leme: não gosto de receber um excesso de vento com o piloto. E não, não me perguntaria "o que faço aqui?". Sei perfeitamente o que faço ali e há coisas mais importantes nas quais pensar e às quais estar atento.

Uma tempestade que chega ao fim do dia tem esta qualidade: mistura-se com a noite e deixa-nos sem saber se o escuro é o da noite ou seu e de onde virá e quão forte será o vento. Não gosto de rizar antes, mas às vezes faço-o.

Estou no cockpit. Sei onde estão a lanterna e as manivelas dos molinetes. Todos os cabos estão claros: escotas, adriças; tudo peado; estou comido e vestido; vigias e escotilhas fechadas. Podes vir, puta. Sou homem para ti e muitas mais como tu.

Sou nada.

Sou tudo: trago em mim dez mil anos de tempestades. Estive aqui milhões de vezes. Sou os marinheiros todos que me precederam e ensinaram e os que virão depois de mim. Podes vir, puta. Somos, fomos e seremos homens para ti e muitas mais como tu.

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Estou em terra. Desta escapei.

Oiça um bom conselho... Atum e Tapenade

Para quem, como eu já passou a fase da apoplexia quando imagina que vai comer atum enlatado e fica mais perto da catatonia:

Uma salada de atum com milho e azeitonas envolvida em tapenade (montes dela). Ainda por cima tinha ficado um bocadinho salgada de mais. Foi um ar que lhe deu.

Um ar e um vinho, claro.

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 07-06-2015

Em modo largada, finalmente. Modo mar: mudei de planeta.

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Pichirilo apareceu às dez e meia, em vez das nove combinadas. Vinha com uma ressaca tal que lhe dei duas aspirinas e o mandei embora. Nem falar conseguia.

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Começo a fazer-me à ideia de que não saio antes de quarta-feira. É uma ideia da qual gosto: pelo menos tenho uma data. Quando cheguei pensei que ia passar aqui pelo menos um mês.

Um mês e dois ou três dias...

6.6.15

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 06-05-2015

Um dia quase: tudo está quase pronto; e longo, cansativo e produtivo. Andam muitas vezes juntos os quatro, verdade seja dita.

Foi um bom dia. Fez-me pensar naquela velha piada do miúdo que diz à mãe "Quando for grande quero ser marinheiro". A senhora responde "vais ter que escolher, meu filho". Eu reconheço que há uma grande infantilidade em gostar desta vida, construída à base de inesperados, improváveis e maravilhas. Mas há também uma grande dose de bom senso: qualquer marinheiro sabe que em dez dias nove são maus e um é bom. E esse dia não se troca por nada neste mundo porque nada neste mundo se lhe aproxima sequer.

Isto é bom senso, não é infantilidade.

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Claro que - como sempre - há que pôr um bemol: tinha reservado a segunda-feira para fazer as últimas compras e hoje soube que é feriado. Não quero largar muito tarde - posso ter de voltar para trás e não quero entrar aqui à noite se tal for o caso - e portanto o tão festejado ETD terça-feira está um pouco menos seguro.

Mas manda o bom senso que fique contente na mesma: afinal quarta-feira ainda é dois dias antes do ETD que eu tinha em mente como referência (e que sabia não seria cumprido).

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Ir para o mar numa embarcação na qual não se tem confiança é cansativo: a confiança circula num sistema de vasos comunicantes e quanto menos a temos num barco mais precisamos dela em nós.

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Hoje o Presidente da Colômbia esteve na ilha. Não sei se é por isso, mas a atmosfera está eléctrica, insuportável, agressiva. Ou talvez seja por haver fim-de-semana grande. Não sei.

Mas sei que estou contente por ter trazido as aspirinas. Ao contrário do habitual os mojitos e o DV não chegam para me isolar.

Diário de Bordos - Isla san Andrés, Colômbia, 05-06-2015 / II

A maioria dos generosos e tolerantes leitores deste blogue pensa - provavelmente e decerto cheia de razão - que isto não é uma vida. Um gajo que não tem casa, não tem trabalho - e ainda menos salário - fixos, que nem sobre o passado pode ter certezas (quanto mais sobre o presente ou o futuro) não tem uma vida.

Talvez. Para mim não é uma, é a vida. Ignoro como será quando tiver de a mudar, mas não será amanhã e deixo esse problema para depois de amanhã.

Hoje começou indescritivelmente mal. Uma espécie de nó górdio cum circo cum frustração e desespero. A tarde acaba radiosa e límpida, como se alguém tivesse pegado numa varinha de condão e pensado que tudo deve ter um fim, seja pesadelo, sonho ou obstinação.

Não conto todos os pormenores agora: vou saboreá-los e reflectir sobre eles um a um. Aquilo que parecia não ter fim afinal tem.

Na ausência de grandes surpresas largo de San Andrés terça ou quarta-feiras.

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Invejo as pessoas que têm dias previsíveis e objectivos complicados. Eu tenho o oposto: dias imprevisíveis e objectivos simples.

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Depois de jantar vou ao café beber um mojito: preciso de mudar de sítio, de bebida, de dia. San Andrés tem uma noite desinteressante, banal. Talvez todas o sejam. Mas um dia que começou tão mal e tão bem acabou merece uma boa dose de banalidade.

5.6.15

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 05-06-2015

Uma piada antiga conta a história de um gajo que às três da manhã acorda com o telefone a tocar.
- Desculpe-me telefonar a esta hora, mas é muito urgente. O Charlie está, por favor?
- Aqui não mora nenhum Charlie!!!!!

Uma hora depois o telefone toca outra vez.
- Peço-lhe uma vez mais desculpa, mas é verdadeiramente urgente. O Charlie já chegou?
- Seu filho da puta, já lhe disse que aqui não mora nenhum Charlie. Não volte a telefonar-me. Isto não são horas de ligar a ninguém, seu cabrão!!!!!

Meia hora depois o telefone, outra vez. Uma voz jovial diz:
- Bom dia. Aqui é o Charlie. Alguém telefonou para mim?

Sinto-me como o senhor que recebeu estes telefonemas todos. As peças que deviam ter saído da Alemanha há dois dias ainda lá estão. Ainda não saíram do fornecedor, sequer. Foi com esta notícia que hoje acordei.

Não há Charlie na casa, mas deve haver um Charlot à solta na UPS. Ou muitos, não sei.

Os psicoterapeutas, psicanalistas e psico-coisos deviam considerar seriamente a Mount Gay-terapia. Ou Abuelo-terapia. Ou Flor de Caña. Ou seja o que for, desde que feito com açúcar destilado.

A próxima vez que alguém me propuser um trabalho com um salário reduzido vou lembrar-me disto. A menos, claro, que as terapias acima funcionem.

4.6.15

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 04-06-2015

O trabalho em San Andrés é relativamente mau e absolutamente caro. Alguém dizer que vem hoje amanhã às oito tem o mesmo valor operacional do que estar calado - para ele; para mim não, porque tenho de esperar pela pessoa, depois telefonar-lhe a perguntar se vem e marcar (isto caso ele responda ao telefone) outro dia e outra hora -.

É preciso ter um bocadinho de paciência e muita persistência; ou ao contrário.

Mas enfim: já cheira a Lisboa. Hoje de manhã acordei com umas sardinhas assadas a pingar no pão e tinto a pingar com elas. Logo à tarde vou ao senhor Leal comer um queque integral e beber um café. À noite vou ao Procópio beb... Chega. Melhor sair daqui primeiro.

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Esta viagem no W. é uma sublime lição: o armador vai gastar uma fortuna ou lá perto para ter o barco no sítio de onde há mais de um mês larguei. Manutenção, manutenção, manutenção. Escrever cem vezes "Se pensa que a manutenção é cara experimente reparar".

E o senhor é experiente, o problema não está aí. Está em que excesso de poupança e barcos não combinam bem.

Futebol

Um poder se deve reconhecer ao futebol: consegue transformar inteligência em indigência mental mais depressa do que qualquer outra coisa - volante, mulheres ou álcool incluídos -.

Soltas e ligeiras

Em caso de dúvida, Bach é uma das respostas. Comecei com os concertos para violino tocados por Menuhin. Agora vou no Rostropovich. Mais dois passos e estou no Gould. Passei por Jarrett, mas o disco está fodido. Metade dos discos está fodida. Não sei o que fazer. Se ao menos eles caíssem à água, como os telefones e os computadores. Infelizmente é ao contrário: a água cai neles.

Bach é uma montanha representada numa carta por curvas de nível. Um gajo senta-se na curva que quer e vê o que quer. Hoje quero ver tudo, de maneira sentei-me no fundo e vou subindo devagarinho. Devemos olhar para a tristeza de cima, não de baixo. (Fundo é uma maneira de dizer, claro. Menuhin está um bocadinho longe do fundo).

Rostropovich é um gajo porreiro: está a tocar há quinze minutos e ainda não se avariou. Toca esta merda destes concertos para violoncelo como o Gould toca as peças para cravo: torna-os impossíveis de ser ouvidos quando tocados por outro gajo qualquer.

Uma vez alguém disse que este blog não é pedante. É melhor parar, se não vai perceber que se enganou.

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Acabei de ler um livro de um autor de quem nunca tinha ouvido falar. Chama-se Thomas McGuane (o autor. O livro é The Bushwacked Piano). É a história de um gajo de boas famílias que decide deixar de o ser (de boas famílias, não gajo) e fazer, literalmente, o seu caminho. Parece um fogo de artifício, ou um rio cheio de remoinhos.

Fez-me pensar, a contrario, num filme americano que vi chamado Two Lane Blacktop, de Monte Helmann: o filme dá a impressão de que nada acontece e acontecem montes de coisas; o livro parece uma farândola com personagens delirantes (entre as quais uma espécie de construtor que não tem um braço e uma perna, felizmente do mesmo lado; e um criador de morcegos na Florida - o construtor faz torres para apanhar morcegos como defesa contra os mosquitos) e no fundo as situações são sempre as mesmas.

Está lindamente escrito e é isso que conta: lê-se num ápice. Não é preciso uma grande insónia. Duas pequenas chegam.

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O Rostropovich também deu de si. Acho que vou oferecer os discos a um ferro velho. Passo para Gesualdo: é uma forma de estar no fundo, mas não no fundo em termos de altitude. No fundo em termos de distância. De profundidade.

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Um gajo passa de raspão pela beleza do que poderia ter sido e não foi e apercebe-se da beleza do que foi e não será. Uma sorte: esteve em duas belezas em vez de uma.

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Gesualdo e Caravaggio. Não sei se alguém fez um filme. Se não, eu ofereço-me. Gosto de sequências felizes. (Pequeno conselho eroto-melómano: não tentem levar uma miúda para a cama e ouvir o Gesualdo. Não funciona, por muito surdas que sejam a pila ou a miúda).

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A única razão pela qual escrever não é a melhor maneira de passar o tempo é que a escrita também diz não.

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Pergunto-me o que ouvir depois de Gesualdo: mais Gesualdo? Marenzio? Escolho Monserrat Figueras: Lux Feminae. Post tenebras lux.

Não encontro o disco. Há nãos contra os quais não vale a pena lutar. Marenzio. Pelo menos aligeira a noite.

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Gosto de ser pedante: é uma das poucas coisas que se pode ser sozinho.

3.6.15

TAPem os olhos se quiserem, mas não nos tomem por parvos

Uma pergunta às pessoas que pensam que a TAP é um instrumento da soberania nacional: os países que não têm companhias aéreas de bandeira não são soberanos?

Outra: onde pára a soberania? Transportes marítimos contam? Transportes ferroviários? Rodoviários? Aluguer de bicicletas e patins em linha?

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 03-06-2015

O boomerang deu a volta e começa a ganhar embalagem. Tenho datas: dia onze ao fim do dia chegam as peças para o leme. Dia doze largo. Dia quatorze chego a Bocas. Dia dezassete chego a Panamá. Dia dezanove, se a TAP não estiver em greve, apanho um avião para Lisboa.

Seria bom que tudo se passasse assim. É preciso ter-se um plano para se poder não o seguir. E é preciso ser-se incuravelmente optimista para acreditar que vale a pena fazer planos, respeitáveis ou não.

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Começo nos meus dias com tinto. Em itálico: é café.

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Uma pequena luz ao fundo do túnel, pequena que seja, e os dias têm outra cor.

2.6.15

Mundos, poemas

Há um poema de Reinaldo Ferreira que fala de um "ponto exterior ao mundo / para onde tendem as catedrais".

Hoje no notário estava uma senhora que me fez pensar nesse poema, livremente reformulado como "aquele corpo exterior ao mundo / para onde um dia tenderão / todos os corpos femininos / com ou sem evolução".

As colombianas são bonitas - são provavelmente as mulheres mais bonitas do mundo (a Venezuela não conta. Seria injusto pôr mulheres de outros planetas a concorrer com as do nosso) - e uma colombiana bonita e bem feita é uma coisa do outro mundo, exterior ao mundo. Quase uma venezuelana, talvez. Mas de certeza um poema.

[Deve ter sido a primeira vez na vida que achei escasso e insuficiente o tempo passado num notário].

Etapas para autenticar uma assinatura

1 - Vou ao Notário de San Andrés. É o único da ilha mas tem pouca gente. Pergunto ao senhor de que preciso para reconhecer a assinatura. Nada: traz o documento, assina-o, paga e nós certificamos. Digo-lhe que é para o Brasil. Ah, nesse caso tem de ser apostillado. Muito bem. E os senhores tratam disso também? Não. Apostillar só em Bogotá. Então como posso fazer? Tenho aqui o nome de uma pessao que trata disso.

2 - De qualquer forma a primeira etapa  é assinar o documento, que não está impresso. Vou à loja do lado, que faz fotocópias e impressões. Fácil: Vá ali ao computador, baixa o documento e imprime-o.

3 - O computador é da marca Slow Caracol, mas chego à página do Gmail. Tenho o duplo acesso activado e preciso de esperar pelo código.

4 - O SMS demora a chegar. Desisto. No mesmo preciso momento chega a mensagem. Reabro a página.

5 - O código já não é o mesmo. Peço novo e espero, desta vez. Decido contar a experiência em tempo real, enquanto as diferentes etapas se fazem esperar, como celebridades em Cannes.

6 - O SMS chega, abro o Gmail, encontro o documento a imprimir. Demora séculos.

Fim da primeira parte. Quarenta miunutos.

Adenda: a palhaçada continua. Não tem fim. Abandono a descrição: o dia amanheceu bonito, não vale a pena estragá-lo ou transformá-lo numa feira de absurdo.

A primeira fase está completa: a assinatura está reconhecida. Quase uma hora e meia.

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 02-06-2015

Amanheceu lindamente: céu azul, quinze nós de vento, pau de bujarrona praticamente pronto e os alemães que finalmente responderam. É espantoso como trazer duzentos gramas de material da Alemanha para a Colômbia é tão complicado, tão lento e laborioso.

Nem a dor de cabeça monstruosa; nem o Jairo, que afinal se lembrou de que não pode transportar passageiros de manhã e portanto anulou a volta à ilha conseguem estragar tão bons auspícios.

Não me lembro quem me falou dos Magnetic Fields. Creio que foi a E. em San Francisco. Música ligeira, canções bonitas bem cantadas; e duas aspirinas. Pode ser que a dor de cabeça ceda.

[Não é Fields, é Zeros]:



(A entrevista é uma seca).
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O boomerang já deu a volta.

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Da série Fragmentos:

"...O desejo não desejado é repelente..."

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A burocracia brasileira, esse monstro que faz a portuguesa passar por uma organização germânica e Kafka por um everest de racionalidade persegue-me até aqui. Precisa de uma assinatura notariada.

Os meus amigos brasileiros que me perdoem, mas enquanto se concentrarem nas consequências e não atacarem as causas o Brasil continuará a ser um país do futuro.

Para os que já têm um presente, claro; para os outros, nem presente nem futuro.

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Estive quase a comprar um bilhete de avião para Lisboa prevendo estar no Panamá lá para dia 15, mas contive-me.

Não é a parte do conter-me que é estranha: é a ideia ter-me sequer passado pela mente.  Duas semanas são uma eternidade, um abismo.

Quase provérbios

Quando a esmola é grande o pobre desconfia. Se não desconfia não é pobre; é parvo.