2.5.15

Diário de Bordos - Isla Bastimentos, Bocas del Toro, Panamá, 02-05-2015

O tema devia ser a largada, claro. Quando largo? Segunda às sete da manhã. Deixou de ser um tema: está à vista.

Antes escrever sobre aquilo que não se vê. É para isso que escrevemos: para podermos falar daquilo que nos faz escrever.

Passe a auto-citação ou (mais provavelmente) a auto-paráfrase.

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Esqueci-me de que havia um combate de boxe e vim jantar ao ex-Kayukos, agora Island qualquer coisa Club.

As porções são enormes, mas já aprendi a deixar no prato. Ainda há quem diga que a infância passa depressa... foi preciso chegar aos cinquenta e muitos para ser capaz de deixar comida no prato.

Verdade seja dita não é excepcional. Se fosse talvez não deixasse. Contas de outro rosário, maria do.

O restaurante agora é gerido por quatro panamianos que querem imitar os americanos de antes. A história é habitual; espantoso é conseguirem fazer melhor. Isto é: seria muito difícil, quase impossível, fazerem pior. Mas há sempre este preconceito contra as cópias... Mais uma coisa da infância, decerto.

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Há pouco entraram três ou quatro das crianças austríacas. São seis, três rapazes e três raparigas. A mais velha tem vinte e um anos, o mais novo talvez onze. Vivem sozinhos num cata com nome de herói grego (é apropriado. São todos lindos como deuses). No dia seguinte a ter chegado aqui vi a mãe despedir-se de dois deles com uma dor que me fez sofrer. Na panga disse-lhe "passei a vida a despedir-me dos meus filhos. Sei o que estás a sentir". Não sabia.

Os miúdos estão sozinhos. O pai está na Áustria a trabalhar, a mãe não sei para onde foi. Cada um deles nasceu num país diferente, mas todos têm nomes franceses; Soleil, Lune, Marée e por aí adiante. Não fazem escola nenhuma: passam os dias a surfar e as noites a jogar snooker no ex-Kayukos (hoje não. Preferem ver o combate de boxe). São surpreendentemente bem-educados. Dois dos meus putos tentaram fazer-se às miúdas (é por isso que sei tantas coisas sobre eles) mas não devem ter tido sorte.

Ou azar, vá lá saber-se.

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Odeio boxe. Na verdade odeio porrada, qualquer que seja a forma. Já me calharam algumas na rifa. Deve ser das poucas áreas da vida em que ganhei mais do que perdi.

Uma ironia, não é? Ganhei porque dei mais do que me deram; a mim que passo a vida a perder porque dou mais do que recebo.

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O ambiente está calmo, para uma noite de boxe. O som das televisões está a um nível aceitável e ninguém grita. Comi nachos, bebo vinho tinto e penso na largada. Hoje apareceu um mistério com a água doce.

Ando a tentar encontrar todas as explicações que me permitam largar na segunda. As outras são eliminadas imediatamente. De qualquer forma daqui até à Jamaica (o sabor da semana no que respeita à primeira escala) são seis ou sete dias. Há água que chegue nos garrafões.

Tenho de sair daqui. Começo a gostar demasiado disto e qualquer dia a mais só vai estragar.

(Deve ser a coisas destas que escrever sobre as coisas que não se vêem se refere).

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Devia ir a Cuba, eu sei. Mas não lá tenho provisões e comprar comida em Bocas até aos Açores custaria uma fortuna. Não participo na caixa de bordo (é uma estreia) e custa-me impor esta despesa aos putos.

Haiti foi eliminado assim que comecei a pesquisar. Há duas semanas houve um assalto violento. Seis ou sete gajos armados contra um casal de setenta e sessenta anos. Os senhores deram-lhes tudo - electrónica, peças sobressalentes, dinghy - e mesmo assim foram amarrados e batidos violentamente.

É por estas e outras semelhantes que não sou absolutamente contra a pena de morte. E muito menos rápida.

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Sim. Penso que há casos em que a pena de morte é justificada. O do noruguês que matou não sei quantos putos, por exemplo. Quando não há dúvidas sobre o autor e o crime é particularmente nojento. Bater num casal indefeso de setenta anos é asqueroso, claro. Mas aposto que nunca se vai saber sem sombra de dúvida quem foram os filhos da puta.

Enfim, não vou parar em Haiti. Depois, só as Turks ou as Bahamas. Todas demasiado caras. Antes, Cuba ou Jamaica.

Nunca li um autor Jamaicano. É um critério importante, tanto como o preço das provisões ou a direcção do vento.

Ou seja: vou sair das Caraíbas pela Windward Passage. A última vez que nelas entrei vindo de Norte foi pela Mona Passage. Já não faltam muitas para as ter feito todas.

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O ex-Kayukos está cheio e eu vazio. Isto é, a esvaziar-me da terra e a encher-me de mar. Amanhã a troca vai estar completa, apesar de não ir longe: vamos para em Almirante fazer bancas (o combustível é muito mais barato do que em Bocas) e mantimentos (idem). Mas largamos logo a seguir; se tudo correr bem segunda à noite estou no mar, sem um grão de terra em mim.

Nem nos sapatos.

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