22.4.15

Lua, não-amor

A lua está deitada, muito longe. Parece uma rede, pequenina, só com uma franja iluminada na parte de baixo. A Lua deitada e eu de pé, imagina tu, minha querida, que raro não é?

Parece uma rede e eu pergunto-me se és tu quem nela se deita hoje, ou eu.

Somos ambos selenitas. "Oprimidos pelas figuras da tragédia". (Infelizmente acrescentamos-lhe sempre o drama, sem o qual não saberíamos viver).

O drama e a noite, esta escuridão que parece uma tela do Hopper: dois neons ali saídos do nada; uma panga que entra, só se lhe vê o encarnado e o ruído; e a distância, que no fundo foi o que sempre nos uniu: não-estarmos é a nossa forma de estar. De nos amarmos, ou nos gostarmos.

A literatura é basta em declarações de amor; alguém deveria começar a escrever uma de não-amor.

Não te amo. Sem ti esta não-noite hopperiana não passa de uma não-noite com algumas luzes e o ruído de uma panga que a corta como um bisturi corta a pele de um bêbedo crasso, caído numa rua e atropelado por vinte automóveis que o não-viram.

Não te amo. Não-penso na tua não-pele como se não estivesse em mim, pele da minha pele. Não te toco, não te afago, acaricio, olho. Nada disso: estamos unidos pelo maior não-amor da história da humanidade (é preciso dramatizar um bocadinho, se não fica demasiado pitoresco).

Não te amo. Nunca nos amaremos no mar, como se nos amássemos e o mar a nós; (é intrometido, mete-se por tudo quanto é fresta: dás-lhe uma unha e leva-te a vida).

A panga vai-se embora, a lua continua deitada, decerto à espera que alguém a aborde e eu de pé só penso em deitar-me. Está muito longe e tu também. Que sorte não nos amarmos.

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