4.1.15

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 04-01-2015

Só não posso ficar doente. De resto posso tudo. Apanhar a chikungunya agora seria uma catástrofe.

Enchi-me de repelente. E acredito, claro (apesar de saber que é mentira) que lhe estou imune porque já tive paludismo. Já quase morri dele. Isto devia imunizar-me contra uma série de coisas, incluindo crenças absurdas.

Que se fodam as crenças. São todas absurdas, de qualquer forma. Se apanhar chikungunya sobreviverei, como sobrevivi a tudo o que me aconteceu nestes anos todos.

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O condutor do bus que apanhei hoje de regresso a casa é obeso. Os braços mal chegam ao volante ou às mudanças. Conduz muito inclinado para trás e mesmo assim o volante entra-lhe pela barriga dentro. É feio: de perfil (sentei-me à frente, como sempre faço quando o lugar está vazio) parece uma estátua da Ilha da Páscoa com os lábios mais grossos e o nariz mais achatado.

Fala alto, grita mas num tom contínuo, liso, como se estivesse a fazer um discurso e não a dialogar; há uma discussão entre ele e uma ou duas passageiras. Percebo quase nada do que dizem: falam em papiamento, e apesar das origens portuguesas (papo) da língua só percebo as palavras inglesas. É uma questão de dinheiro e trajectos: a (ou as) senhoras queriam que ele as levasse a um sítio ao qual não é suposto ir e não lhe pagaram o suficiente, na opinião dele. Na delas sim.

Acabou por levá-las, apesar de visível - e audivelmente - insatisfeito (e de elas lhe terem dado mais dinheiro).

Aproveitei a deixa para lhe pedir que se desviasse e me viesse deixar à Crew House. Estou exausto, meio febril, tive outro um dia de loucos - trinta nós de vento e cabos nos hélices à saída do pontão de fuel logo pela manhã, seguida pelo habitual caos à tarde - está a chover e frio. Os quinhentos metros a pé são de repente dispensáveis, violentos, uma montanha.

Começou por me dizer que não. "E onde deixo estas pessoas?" perguntou num grito, como se eu estivesse do outro lado de uma rua com quatro faixas de rodagem e não a meio metro dele.

Não respondi. Pouco depois das senhoras desceu o único passageiro que estava na carrinha. Tirei cinquenta cêntimos da carteira e disse-lhe que agora estávamos sozinhos e me podia levar. Mais um grito, no final do qual percebi "one dollar". Dei-lhe o dólar, ele respondeu-me "now we are talking" e veio deixar-me à porta.

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Tive muita sorte com a história dos cabos nos hélices. Ainda estou para perceber de onde vieram. Passei a razar dois barcos fundeados e larguei ferro a tempo de ficar a dois metros de um recife. Depois tive de safar os cabos e mudar um dos hélices. Duas horas de trabalho que contam por quatro ou cinco.

O médico tinha razão: a carcaça é simpática.

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Na sexta-feira trabalhei para o C. Pouco e mal. O ano começou com notícias péssimas. J. diz que está tudo bem, mas eu não estou satisfeito. Disse-lhe que não lhe cobrava as horas. Não me importo de trabalhar pouco; mal chateia-me. A verdade é que estava com a cabeça alhures.

Não existe trabalho manual, por mais que por vezes pareça.

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St. Maarten é um não-lugar. Deve ser por isso que começo a gostar tanto de aqui estar.

Parte francesa, parte holandesa, parte marítima, parte laguna, dólares, euros, aventureiros, empreendedores, regras e ausência delas. Tudo cabe aqui. Mesmo um casal de brasileiros que está num barco e pensa que está em casa.

Fui ajudá-los a atracar. Bow thruster e stern thruster num 54'.  São boa gente, mas não são marinheiros.

À noite embebedei-me. Não com o que bebi, que foi relativamente pouco - e na sua maioria pago pelo armador do 54, aqui fica o meu obrigado - mas pelas merdas todas que se estavam a acumular há algum tempo e que no primeiro dia do ano atingiram o pico.

Não percebo nada das vantagens ou desvantagens farmacêuticas do álcool; como diluente de merdas não conheço melhor.

Enfim, conheço: o mar. Mas agora estou em terra, não estou no mar.

O que gosto da burocracia não é descritível nem recorrendo a todos os vernáculos de todas as línguas, papiamento incluido, qualquer que seja o nível em que seja expresso.

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A população residente da Little Crew House é reduzida - Allah uAqbar: estou de novo sozinho no quarto, depois da breve aparição de uma alemã simpatiquíssima, caladíssima e não muito bonita - e composta por uma mistura de pessoas que têm em comum apenas o facto de serem pessoas. Homens, mais precisamente. Há um inglês cujo nome esqueci que se passeia em cuecas como se estivesse de smoking, Fala com um horroroso sotaque cockney e  só percebo o que ele me diz à terceira vez. Agora já quase não me fala. Deve pensar que sou burro. Tem razão, é certo, mas não é por não perceber o que me diz. É por razões mais complexas e infelizmente menos fáceis de contornar.

Francesco é um italiano do sul. Cinco minutos depois de ter falado pela primeira vez com ele fiquei a saber como calar cães que ladram demasiado (há dois no ferro-velho ao lado da hostel. É com balões cheios de água). Fiquei a saber uma quantidade incalculável de coisas, na verdade; mas lamentavelmente esqueci-me de todas (excepto dos balões para cães). Foi no dia em que estava grosso. É pena. Aposto que tudo o que ele me ensinou é interessantíssmo.

Mark é um jovem australiano que entre outras coisas é chef, presumo que de cozinha. Costuma elogiar o cheiro da comida que faço, mas de resto falamos pouco: é jovem e bonito e prefere poupar as suas palavras para senhoras jovens e bonitas.

Provavelmente nunca aprenderá que a palavra-chave da expressão sexo oposto é oposto e não sexo. (Como alguém deve ter dito antes de mim).

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