31.7.13

Cheiro, tristeza

A tristeza cheira mal; tem um cheiro pior que o de catinga, pior do que o de chulé, o de mau hálito, o de quem não toma banho há meses. Pega-se a nós e cheira-se a milhas. A única coisa que o limpa são as palavras.

É para isso que servem: lavar o cheiro da tristeza.

Palavras, formigas

São como as formigas, as palavras. Quando encontram um carreiro é difícil fazê-las mudar.

28.7.13

Don Gaston dixit

"Dinheiro em mãos de pobre, pobre dinheiro"


(Continua)

27.7.13

Aviso

Se existisse uma ASAE do coração eu seria declarado impróprio para consumo.

Tristeza, fusos horários

Mais do que a distância são os fusos horários que dissolvem a tristeza, a diluem numa espécie de sopa sem cor e sem gosto, sem cheiro e sem textura.

Insimultaneidades

Uma velha máxima dos políticos diz Prometam-lhes dinheiro e datas, mas nunca ao mesmo tempo.

Eu tenho agora o emprego com o qual ando a sonhar há anos, mas estou como os políticos: nunca duas coisas ao mesmo tempo.

Redifusão - Fidelidades

Nem sempre fui fiel, e é um tema que me interessa. Na realidade, nunca fui infiel, isso posso garantir - mas não sei se se pode não ser infiel e não ser fiel, simultaneamente.

Daqui.

Adenda: agora sei a resposta.

Sabáticos, estáticos

As palavras fogem de um fim de tarde de sábado pé ante pé como fogem da tristeza, não querem nada com ele ou com ela, não querem nada as palavras com quem lhes lembre de onde vêm. Devagarinho não vão acordar o cão que dorme e dele vir um chorrilho mais um de disparates sabáticos, estáticos.

Redifusão - Sem ti

Não sou escritor, ainda bem; seria uma chatice sem fim ter que escrever para viver, inventar palavras, emoções, fingir que se sente isso tudo e mais aquilo, aparecer nos jornais, preocupar-se com as críticas, ir aos cafés literários e aos desfiles de moda, falar com e para a "cena cultural", ter ideias, imaginar coisas, escrever. Nada disso. Escrevo porque me apetece, porque os teus seios são bonitos e estão longe, ou estão perto, porque te amo e te quero amar ainda mais, porque me esqueço disso tudo, porque sim. 

Escrevo porque gosto de onde estou ou porque não gosto, para não gostar de onde estou, escrevo porque onde estou me indifere completamente, porque quero estar no mar e não estou; escrevo para te dizer que te amo, porque beber faz mal ao fígado, porque tenho mau feitio e gosto dele, do feitio; escrevo porque quero, me apetece, me gusta, me gustas, tu e tu e tu, só tu.

Preciso de cortar o cabelo, de emagrecer, de me ir embora, de ti, de ir ao cinema, de ir ao teatro, de ir navegar, de fazer um viagem grande, dois meses no mar, três sem parar, vamos para as ilhas do Pacífico? Para o Mediterrâneo, essa merda de caldeirão? Para o Índico (hoje li que Sri Lanka vai fazer a primeira marina do oceano Índico, vê lá tu, qualquer dia até na Antártica há marinas e parques de estacionamento para pinguins). Podemos ir para onde quisermos, o mundo é nosso, basta que tenha mar e vento, o resto levamos nós - tu o sol eu as vagas, tu as palavras eu as vírgulas, tu o futuro eu o nada.

Em São Luís a água do mar é castanha, há muitos rios, a profundidade é pequena e o mar está cheio de areia e da lama que os rios trazem. Preciso de mar azul, transparente, turquesa, preciso de ti, marquesa, preciso de rimar mar com vida, o mar convida; e nós vamos para onde ele quiser. Que se foda o futuro, mulher, que se foda o destino, deixa-os a foder um com o outro, olha que par, o destino e o futuro. Je suis contre le destin, tout contre; et contre le temps. Je m'en fous du passé, du présent, de l'avenir. Fuck them all, SINE QUA NON ahoy, sine niente, ya ni parruski govario, talvez um dia possamos ir a Nakhodka para eu te ensinar a beber vodka como quem bebe aguinha; ou a diferença entre vodka e fodka, tão pequena.

Os meus cabelos caem como se achassem a minha cabeça indigna deles; já era tempo. Ainda se todas as barbeiras fossem como a Helga, ou Elsa, ou coisa que o valha, tão bonita que até eu de lá saí bonito; mas não são. Os meus cabelos são tão fracos que nem os piolhos lá querem estar.

Pouco me importam os piolhos. Prefiro a tua mão, as duas, as mamas que por vezes me esfregavas assim como se fosse por acaso enquanto eu apertava os sapatos e a cabeça ficava mesmo ao nível delas, lembras-te? Tu ainda nua, eu já vestido, sentado na cadeira do hall e tu ao meu lado, mamas na tola e eu a dizer-te "tenho de me ir embora" "pois tens" "então deixa-me ir" "vai" e eu mandava os sapatos para o raio que os partissem e voltava para a cama às vezes nem lá chegávamos era só desapertar a gravata e tirar o cinto e lá desaguavam os oceanos todos no tapete ou no sofá da sala ou onde calhasse. "Devíamos misturar os livros", dizias depois como se nada fosse contigo.

Nada nunca foi contigo até conheceres o mar, não é? Só agora percebes que o mar se está a marimbar no futuro e ainda mais no passado, o mar pega no tempo e dissolve-o, dá-lhe a volta, enrola-o como eu enrolava a mão nas tuas coxas e te olhava nos olhos para ver o resultado, não olhava para as coxas. O mar é assim pega em nós todos e olha para outro lado qualquer.

Era bom acariciar-te as coxas, repara, as virilhas, o polegar um bocadinho esticado para o meio, os olhos nos teus para ver se estava a ir bem.

É para te dizer estas coisas que escrevo, não para escrever. Escrever é uma seca, como um país sem mar, ou o mar sem vento. Já escrever-te é o contrário, é bom, posso falar-te da queda dos meus cabelos, parece que tenho uma catarata do Niagara seca na cabeça, dos piolhos que não tenho, das tuas coxas, do mundo todo onde elas vão passar e abrir-se para mim como o mar se abre para as proas dos navios.

"Il n'y a jamais assez de mer pour les visages aigus des bateaux" dizia le Clézio. "Il n'y a jamais assez de toi pour moi"; é menos bonito mas mais verdadeiro, não é? É. És. Um dia amar-nos-emos na primeira marina do Índico como nos amávamos no sofá da sala, porque o mar é nosso sofá, ou a nossa sala, como preferires, é-me igual, não percebo nada de metáforas nem de analogias, eufemismos, literatura, não percebo nada de nada se não de ti e do amor por ti.

São Luís cheira a mijo e seria uma cidade apaixonante, aposto que seria, se tivesse tempo e paciência para me apaixonar; não tenho. Nem quero ter, é isso o pior, não quero ter tempo para nada de que tu não faças parte. Porque sem ti não há tempo, não há nada, nem o vento parece vento nem o mar.

Escrever é ligeiramente menos egoísta do que amar e só tem uma vantagem sobre o amor: pode ser feito sem ti.

26.7.13

Injustiças, sorte e luz

Ando a percorrer este blog à procura de um post que jurava ter escrito e tudo indica que não. Ponho várias palavras na caixa de pesquisa. Chega a vez de Luz e dou com o Mesa de Luz. É uma injustiça ter-me esquecido de o incluir no reader, uma sorte tê-lo reencontrado e uma luz.

Redifusão - Luz

A luz escorre por ti; descubro que a luz sou eu. Nos dedos o sol a tua pele o rio no membro e nos teus seios a ponte, como se fôssemos um. No jardim apareces-me, magnífica mentira, sorridente como os dias sem amanhã, sem ontem. És leve e sem bagagem - nem as nuvens, coitadas. Somos feitos de ontens, mas fazemos amanhãs. Hoje é uma ilusão de óptica, bengala de cegos nos passeios do tempo. Hoje és tu, e eu; amanhã seremos, serenos.

Redifusão - Gramática, orografia

É uma planície, vasta. Alta? Seja: um planalto. Arde, brandamente. O fogo ateia-se pouco a pouco, palmo a palmo. As labaredas mal se vêem; o vento que as empurra é subterrâneo, como os rios, o sol. Há palavras espalhadas: ventre; verbos; seios: sílabas; pronomes: um nome, o teu. Tempos verbais: passados imperfeitos, futuros condicionais. Há substantivos: desejo; amor; dúvidas.

Olhos miram as labaredas, e as montanhas para lá delas. Mãos ateiam-nas nos corpos. Rios estancam sedes. Outras palavras vêm à mente: exacto; inevitável. Sim. Arde.

Daqui.

Auto-retrato

Já tudo me passou pelas mãos, e eu pelas mãos de tudo.

(Com autorização da destinatária.)

25.7.13

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 25/07/2013

É preciso começar por dizer, em abono da verdade, que de Marlboro os cigarros têm muito pouco; o exterior, por assim dizer: saem de um maço que é encarnado e diz Marlboro, no papel perto do filtro diz outra vez Marlboro. Mas são tudo menos Marlboro.

Nos dias normais não compro nenhum; nos ligeiramente menos normais compro dois; nos outros compro quatro ou cinco. Devia ser obrigatório vender cigarros à unidade. Fuma-se menos e só quando se tem realmente necessidade de fumar; interage-se com uma camada interessante da população local (estou quase a tornar-me quase-amigo da senhora que me vende os únicos verdadeiros Marlboro, ou pelo menos os que mais deles se aproximam); e faz-se exercício, coisa não despicienda, cada vez que se quer fumar. (A senhora tem outra vantagem: é a única - pelo menos até à data - que me deixa tirar os cigarros do maço. Os outros dão-mos pegando-lhes pelo filtro. Claro é que eles não puseram os dedos em nenhum sítio menos conveniente desde a última vez que lavaram as mãos com água  e sabão; que as bactérias não sobrevivem muito tempo fora do seu habitat; e que é preciso criar anticorpos. Apesar disso tudo gosto mais quando a senhora abre o maço e o estende para mim).

........
Estou de regresso ao Artie e por conseguinte muito mais longe dos meus passeios na Cinta Costera. Mas hoje estava para os lados orientais da cidade e resolvi voltar a pé.

A certa altura vi dois polícias interpelar um casal jovem e pensei "lá vão estes gajos chatear aqueles desgarçados por causa de uma esfregazita" (acontece muitas vezes, a moralidade e as boas maneiras são defendidas activamente). A esfregazita afinal era um arraial de pancada que o gajo estava a dar à miúda; ela passou por mim pouco deplois com a face ensanguentada, cheia de golpes. O gajo arreaou-lhe a sério.

Lembrei-me da conferência do Edgar Morin que ouvi em Lisboa: "nous voyons avec notre cerveau" (no caso dele o erro de percepção tinha sido provocado por um acidente entre uma bicicleta e um automóvel, do qual ele estava pronto a jurar que a culpa tinha sido do automobilista. Quando se aproximou ouviu o ciclista dizer "peço imensa desculpa, fui eu o culpado"). Vemos com o nosso cérebro. E sentimos e pensamos e amamos e somos amados com o nosso cérebro. E lembramo-nos, sofremos e goazamos e vivemos e tocamos e somos tocados.

Pensamos que precisamos de corpos, mas na verdade são mentes que nos faltam.

........
Há um termo em francês do qual gosto muito: bringuebalant. Em inglês diz-se refit in Panamá. Enfim, lá vai andando. Pouco a pouco as peças do puzzle aproximam-se umas das outras - estão muito longe de estar encaixadas, mas estão também muito longe do caos de há uma semana ou duas -. Começo a entrever o fim, o que já não é pouco; e me traz à mente uma outra palavra francesa: soulagement. Em português poder-se-ia traduzir por inconsciência. Enfim, em pessimimês.

........
Ontem fui finalmente comer ao café Coca-Cola, uma espécie de monumento local, pelo menos nos meios digamos populares do Casco Antiguo (Marx chamar-lhes-ia lumpen, e na Índia seriam designados por davit ou coisa que o valha), e nos meios, igualmente apaixonantes, dos backpackers (mochileiros? Porque me soa tão mal? Provavelmente por falta de hábito).

A comida é boa, barata, o serviço não tão mau como me tinham dito. Mas globalmente o sítio fica a milhas de qualquer tasca portuguesa, de um boubou antilhês, de qualquer Lizarran em Palma de Maiorca. A Europa pode estar a morrer, mas ainda é, e será o centro do mundo durante muito tempo (os boubou têm tanto de francês como de antilhês).

Aliterações campesinas

Foi-se a palavra; ceifou-se, coitada, a si própria; abafada sem dúvida,
cortada cerce pela foice que com tanta inabilidade maneja.

Ocupação

Estás muito ocupada? Eu não.
Esperar no hotel onde todos os dias venho tomar o pequeno almoço
que passe o engarrafamento nas ruas não é uma ocupação séria a sério, pois não?
Mesmo que se façam apresentações de projectos, ou
se pense no que se tem de fazer, ou
se imagine como seria a vida se o ar condicionado não estivesse tão frio ou
o transporte instântaneo já tivesse sido inventado ou
não tivéssemos as abençoadas palavras para nos vingarmos,
paredes para pintar,
barcos de vela para reparar e encher e comprar e Panamianos com quem lidar e
facebooks intempestivos, procurar um electricista,
controloar o carpinteiro, comprar material, percorrer esta cidade
que não foi feita para ser percorrida, dizer ao veleiro que não, não tenho dacron, enviar o mail
ao shipchandler, tentar não perder o norte e pensar nas dores de cabeça literais
e metafóricas nas quais isto tudo se banha como em banha
da cobra.

 Estás muito ocupada? Eu não.

 (Para a Marina Tadeu, mãe, poeta e empatia londrina)

23.7.13

A-des-amar

É tão fácil amar e difícil desamar.

Poesia

Os Serviços de Expediente da escola Superior Agrária de Santarém enviaram-me um e-mail com uma oferta formativa, 2ª fase, Mestrados.

Recreio, pele

Em ti começo o dia a brincar. O nosso recreio é o mundo.
A tua pele uma carta geodésica, falha sísmica, tremor de terra matinal.

O nosso recreio é o mundo. É nele que brinco em ti
de manhã, colinas, olhos, uma orelha aqui outra
ali, a mão, pedaços de vento como safiras ou esmeraldas ou
aquelas pedras com nomes exóticos como tanzanite, ou banais como
quartzo. Estalactites.

Já estive na Tanzânia como estive em ti: de passagem, como o vento
ou esta água que agora vejo desfilar à proa como de manhã
te vejo desfilar. De passagem.

Já estive em ti. És o meu recreio o meu mundo a minha falha o meu sismo.

Já estive em ti. És a minha pele.

21.7.13

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 21-07-2013

Não sou dado a patriotismos - parafraseando, um país é uma embarcação no meio do mar - e de sapatos percebo muito pouco. Apesar disso verifico (quando raio de carga de água constatar deixará de ser um galicismo? Ao fim de quantos anos ganha uma pobre palavra imigrante direito de cidadania? É tão útil, constatar) que os sapatos Land Rover recente e muito rapidamente comprados na Cidade do Panamá são infinitamente menos resistentes do que os sapatos Foreva que uma senhora amante de histórias de detectives me ofereceu há alguns anos em Lisboa.

Os Foreva duraram-me dois anos, ou mais, de uso quase quotidiano; quase, é certo.  Ao fim desses anos todos estavam quase como novos. Quase. Estes têm um mês se tanto e já estão com um aspecto um bocadinho a cair para o usado. Daqui a seis meses estarão, aposto, inutilizáveis. Onde poderei comprar sapatos Foreva no Panamá? Ou encontrar uma senhora para insistir comigo que os meus sapatos estão velhos (acusação infundada que foi frequentemente feita aos meus queridos Foreva)?

........
Algumas bebidas não têm plural. Whisky, por exemplo. Uma pessoa bebe whisky, não bebe whiskies. Com o rum passa-se a mesma coisa, descobri hoje. Um gajo bebe mojito, ti'punch, ou rum tout court. Mas não mojitos, ti'punches (que horror) ou runs on the rocks - ou nas rocas, como aqui dizem, seria terrível se não fosse cómico -.

........
A cidade do Panamá é apaixonante, intrigante mas não convincente. Estou ansioso por me ver daqui para fora. Tanto mais que me espera o Canal, de braços abertos parece-me cada vez que o vejo (são muitas as vezes que o vejo, estou numa bóia à saída dele).

........
Não falo do refit; não gosto de maçar as pessoas com pesadelos.

........
"A pátria é um acampamento no deserto", diz o provérbio árabe citado por Cioran que ali em cima parafraseio. Para mim, pátria é uma embarcação no mar, o porto que me acolhe, o corpo que me apazigua. Estes são poucos, cada vez menos: entro na monogamia pela agamia. Talvez o jejum seja uma etapa necessária. Nunca pensei é que fosse tão fácil, tão leve, quase agradável. Quase.

........
Um gajo sabe que está a beber de mais quando o segundo Mojito no Rana Dorada custa a passar.

Amar, a mão

A mão é uma forma do verbo amar.

A mar

O som dos sentidos sentados num teatro à beira-mar os dois
enquanto o mar nos vem dizer que não é masculino,
é feminino: a mar.

A mamos a quatro mãos a mar que perante nós; a mar que nos trouxe aqui
à beira-a mar. A mar que nos levou e nos trouxe os sentidos sentados deitados
numa praia ao fim do dia.

A mar que nos levou foi a que te trouxe, a que me levou nos trouxe.

A mar é cega, não se lhe pode mentir. Não se pode mentir a quatro mãos.

Letras, vida

Todas as letras do alfabeto apontam para ti porque tu és os alfabetos todos; todas as peles porque és as peles todas; todos os olhos, porque sem ti nada é visível; todas as cores, todos os rios, os mares, os sons. És as letras da vida, a vida das letras.

20.7.13

Erros, senhores

Errar é coisa de senhor; e quanto maior o senhor maior o erro.

É a literatura, estúpido

Imaginemos alguém que de Portugal só tivesse lido Eça de Queirós e vai fazer uma viagem a Lisboa.

Imaginemos que essa pessoa fala português e percebe o que se passa. Reencontraria facilmente no Portugal de hoje aquele que conhece, o do século XIX.

Tal como ainda hoje percebemos a América por causa de Tocqueville ou eu sei onde estou por causa de Garcia Marquez.

Tristezas, viagens.

A tristeza é tão portátil como a felicidade; ligeiramente mais pesada, só.

19.7.13

Panamá

Quando quero comer pouco tenho de ir a um restaurante caro. Que saudades tenho das tapas de Palma.

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 19-07-2013

Hoje é um dia importante nesta viagem, nesta vida: foi dado o primeiro passo para a travessia do Canal do Panamá.

Ao meio dia e meia hora, quase uma da tarde, um senhor veio a bordo "medir" a embarcação. Não mediu nada excepto a distância da roda de leme ao painel da popa, coisa que até hoje nunca tinha visto e nunca mais, decerto, verei. Mas preencheu montes de papéis, deu-me muitos mais a assinar - se fosse um futebolista ou um cantor célebre nunca mais trabalharia, tantos foram os autógrafos - e aqui estamos: o comboio deixou a estação. Se tudo correr bem daqui a nove ou dez dias atravesso de novo o Canal, desta vez de Sul para Norte, do Pacífico para o Atlântico.

A viagem que me trouxe aqui foi linda, dramática, maravilhosa, terrível, assustadora, determinante. Todas as viagens deviam ser assim (ligeiramente mais felizes, quando muito). Nunca vi tanta vida marinha - golfinhos, baleias, tartarugas, mantas, focas (repetir quase ad nauseam); nunca pensei que o mar não conseguisse curar as maleitas todas, e não conseguiu. Mas foi lindo. Tive uma tripulação maravilhosa, tive vento - muito, pouco, nada - horas de motor, dias maravilhosos, mágicos, desde San Francisco até à chegada ao Panamá.

Agora - após um mês e meio de refit que correu pior do que tudo o que eu tinha imaginado e normalmente bem para as pessoas que conhecem o país - estou de partida. Vou de um oceano para outro, de uma metrópole para um lugar praticamente deserto.

A cidade do Panamá é uma mulher muito feia e horrivelmente atraente que ora cheira mal dos sovacos ora se maquilha como se estivesse a descer os Champs-Elysées na Carrosse Royale. Nunca sabemos se temos de ir ao supermercado comprar desodorizante ou à loja de perfumes comprar Fahrenheit.

"Atravesse o Canal do Panamá e seja feliz!" Podia elaborar este tema a noite toda: "Infeliz? O Canal trata disso"; "Se acha que do outro lado o espera um mundo melhor, experimente o Canal". Canso-me depressa. Começo a pensar naquilo de que um dia lembrarei da minha passagem pela cidade do Panamá, sinal seguro de que estou em modo partida.


16.7.13

Sentimentos, cronologia

"Os sentimentos não têm cronologia".

Zoraida, a senhora que me vende os belíssimos colares e brincos que um dia oferecerei a quem eles, os colares e brincos quiserem ser oferecidos.

Como aqui contigo

É noite, cheira  a peixe frito, o local onde estou é muito bonito, La Finca del Mar, o barman é francês, chama-se Michael, da "Champagne-Ardennes", se há uma coisa com a qual os franceses são rigorosos é com as origens geográficas, podia ser Champagne, ou Ardennes ou Leste da França ou Nordeste, nada disso. Champagne-Ardennes. Também lhe ensinei a técnica delicada e subtil do ti'punch; não fora o vento (a ausência de vento) a tristeza (a ausência de felicidade) e sentir-me-ia na Martinique.

Já fui muito infeliz na Martinique, não vão os leitores pensar que na Martinique só se pode ser feliz, longe disso; mas é um sítio tão bom para ser feliz que nos esquecemos de quão infelizes lá fomos. E agora, no Casco Antiguo da Cidade do Panamá num restaurante chamado Finca del Mar cujo barman francês viveu em Cuba doze anos bebo um ti'punch e penso que me falta o vento. Tudo se pode substituir, tudo; menos o vento.

Gostava de ter um chapéu como o dos empregados; o Michael garantiu-me que o ceviche é feito como no Peru, o peixe fica sólido, rijo, isto quase podia levar aspas, a citação é quase verbatim, quase, no Panamá acaba sempre demasiado cozido.

Tanto assim é que lhe pergunto se tem um charuto "não", diz ele "mas vou conseguir-lhe um" e pede-o ao senhor da mesa ao lado, por coincidência também francês, deve ser um dos donos.

Gozo o meu charuto a fundo, apesar das desculpas do vizinho da mesa ao lado, "é panamiano, não é cubano"; acho simpático, é curioso como os franceses conseguem este equilíbrio permanente entre ser detestáveis e adoráveis.

Entrou vento, fraco, uma térmica, nada de especial, mas refresca como o charuto panamiano.

Intuitivamente penso em L., claro, penso sempre em L. seja ou não intuitivo.

A minha casa tem duas divisões, a solidão e a tristeza, mas são tantas as vezes que consigo lá ser feliz, nas duas. À vez ou ao mesmo tempo.

Como aqui contigo, como serei em breve, como serei em breve, para sempre.

Inspiração, expiração

Inspiração é um falso alarme. O que conta é a expiração.

Anti-Casanova

Raras são as mulheres que merecem o trabalho que nos dão para as seduzir. E muitas as que valem a dor que nos causam quando as perdemos.

Situações

Ela estava entre mim e a vida; eu entre ela e a morte.

15.7.13

Poesia

Os portugueses são relativamente bons a escrever poesia (apesar de não tão bons como normalmente se crê, na minha opinião modesta) mas horrorosos a recitá-la.

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 15-07-2013

Os meus passeios (é provocação) pelo Panamá continuam. Hoje fui à ilha de Contadora a - pelo que me disseram - ilha mais desenvolvida (se bem não a maior) das Islas las Perlas.

Fui de ferry, Artie ainda está nas mãos dos diferentes fornecedores. (Digo diferentes, mas é um esforço: são todos iguais. Mentirosos, careiros, incompetentes. Enfim, exagero, como de costume. Mas a verdade é que é frustrante, irritante sentirmo-nos enganados todos os dias e nada poder fazer.)

As ilhas - a ilha - é muito bonita. Água clara, transparente - há quanto tempo não vejo areia no fundo do mar? - muitas árvores, ruas cuidadas. Pouco admira: é o refúgio dos ricos do Panamá.

Não há melhor maneira de avaliar um país do que pelo gosto dos seus ricos. Não são os pobres que fazem um país. Esses são feitos por ele. Os ricos são o seu cartão de visita, o seu lado apreciável (ao contrário de comentável, ou escandalizável). E Contadora diz-me mais sobre o Panamá do que vinte passeios pela cidade. Mau gosto, ostentação, kitsch, kitsch, ostentação, mau gosto. Contadora é isto, rodeado de uma incrível beleza - incrível porque sobrevive, porque se vê, respira e sente.

As outras ilhas devem ser fantásticas, porque "menos desenvolvidas". Há cento e sessenta, das quais cinco ou seis habitadas. Tenho pena de não poder cruzeirar um bocadinho por aqueles lados.

........
"O Panamá é um misto de cultura americana e de cultura centro-americana", diz-me Soraya, a quem acabo de comprar uns brincos não sei bem porquê (porque são bonitos, e um dia oferecê-los-ei). "Talvez. Mas dos maus aspectos de cada uma delas" respondo. "Se queres ver essa mistura com os lados bons, vai a Puerto Rico". Mas Soraya não está interessada em conselhos viajístico-culturais. Quer vender a sua bijuteria, ponto. Agradece-me com um vigoroso aperto de mão e vai-se embora.

Tenho um par de brincos bonitos para oferecer.

........
Havia um concerto de violino no Teatro do Coleguo de San Augustin. Não consegui ir: quando cheguei de Contadora tive de ir encher os tanques de água e a coisa escapou.

Foi o primeiro sinal de que há vida em Panamá para além do Casco Antiguo.

Palavras, silêncio

- Palavras. Estou farta de palavras.
- Mas sem palavras não há amor, minha querida. Já pensaste nisso? Há muitas coisas, mas não há amor.

Jantava num restaurante chamado Antigamente, na zona velha de São Luís do Maranhão. À minha esquerda um velho gordo e careca chorava; à minha direita um casal discutia as funções da palavra no amor.

Apetecia-me dizer ao velho para não chorar (para que serve, dizer a alguém que precisa de chorar para não o fazer?) e ao casal que ele tinha razão: sem palavras não há amor.

As palavras são a fundação da casa onde vivemos. Das casas, todas: o amor, a amizade, a atracção física (sabem o que é fazer amor com alguém que não partilha uma língua connosco?) Seja do que for.

O silêncio é a ausência de palavras. Não existiria, se elas não existissem.

Línguas, casa

O inglês é a língua mais habitável do mundo.

14.7.13

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 14-07-2013

É preciso imaginar uma estrada muito bonita, estreita mas arranjada, lisa, com as linhas bem visíveis; contorce-se como um daqueles gajos do imobiliário a receber pontapés nos tomates de minuto a minuto. Poucos são os bocados que têm cem metros a direito e planos.

Tal como o senhor do imobiliário está rodeada de beleza; mas ao contrário das que normalmente o rodeiam é uma beleza selvagem, que só por vezes se mostra civilizada - áreas desflorestadas para pasto, geralmente. O resto é floresta tropical, selvagem, luxuriosa, sensual, voluptuosa, violenta. E é assim durante quase hora e meia.

Sai-se do alcatrão e entra-se numa estrada de terra batida. A flora muda - tenho pena de não saber identificar e nomear a mudança - torna-se menos densa e há palmeiras, coisa que antes não se via.

No fim está a marina de Turtle Cay, setenta postos de amarração, água e electricidade. Um pequeno (e bom) restaurante debaixo de um telhado de palma, uma praia linda e praticamente deserta - é isto.

E é nisto que está um Peterson 37 chamado PURA VIDA que é neste momento aquilo que de mim mais se aproxima de um objecto de desejo. Mas isso fica para depois.

........
No caminho enganei-me e passámos pelo Canal. A ponte fica nas eclusas de Gatun, e tivemos de esperar que passassem dois navios.

Aquilo que o homem pode fazer da natureza - aquilo em que ela se transforma devido à força, à inteligência, persistência do homem - é esmagador. E ainda mais esmagador pensarmos que não controlamos nem uma pequena parte dela.

13.7.13

A música e o choro

A melhor música para se chorar é o hip hop. Pode sempre dizer-se que é por causa da música que choramos. Já o deep house não se presta tão bem, porque às vezes é bastante agradável.

Tristeza, eu

Estou tão farto desta tristeza que já não é dela que estou farto. É de mim.

Exercício, mojitos

Faço muito exercício físico: ando de bar em bar à procura do melhor Mojito da cidade. Como vou sempre a pé chamo-lhe ambar. Vou ambar. Ambo. Ontem ambei que me fartei.

(Claro que dizer à procura do melhor Mojito pode induzir em erro quem me lê : tudo se resume a confirmar que o Mojito da Rana Dorada é o melhor do hemisfério.)

Tempestades interiores

Quando digo às pessoas que sou marinheiro duas questões aparecem muito rapidamente: "Marinheiro... Uma mulher em cada porto, não é?" e "Já passaste por muitas tempestades?"

Só hoje me apercebi de que a resposta às duas questões é a mesma: não tenho uma mulher em cada porto, mas cada mulher foi um porto para mim. Um porto no qual me abriguei das tempestades interiores, que não são inferiores, muito longe disso, às outras. Não se vêem, não se ouvem, mas sentem-se; e são, sempre, mais violentas.

(Um marinheiro está preparado para lidar com tempestades; é como para um padeiro lidar com um forno. Mas ninguém está preparado para as tempestades que vêm de dentro.)

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 13-07-2013

Pouco a pouco retomo os meus passeios. Mais curtos e mais lentos, que não quero que o tornozelo siga o meu conselho e vá desta para melhor.

As injecções foram dolorosas; sobretudo a primeira. E os comprimidos deixam-me cheio de náuseas. Penso que esta estratégia de substituir uma dor por outra, na esperança de que as duas desapareçam faz sentido. Pena que não se aplique a todas as dores.

........
Os trabalhos no meu bem amado Artie continuam. Como os meus passeios; vagarosos e menores do que o que eu queria. Mas o barco vai sair deste período melhor do que nele entrou: mais bonito, mais funcional, mais simpático.

Em breve estará a trabalhar.

........
Os adeptos do movimento Slow Food (que de resto apoio inteiramente) deviam vir comer ao McDonalds da Avenida de Cuba. Ficariam certamente felizes com a lentidão da casa.

"Ó sombra fútil chamada gente"

As pessoas que todas as noites vivem a menos de dois metros da morte deviam ter este poema sempre em mente.

Era o poema favorito do imediato do RIO CUANZA. Sabia-o de cor, e cada vez que havia uma sessão de poesia no meu camarote começava com ele.


Se te queres matar, por que não te queres matar? 
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida, 
Se ousasse matar-me, também me mataria... 
Ah, se ousares, ousa! 
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas 
A que chamamos o mundo? 
A cinematografia das horas representadas 
Por atores de convenções e poses determinadas, 
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím? 
De que te serve o teu mundo interior que desconheces? 
Talvez, matando-te, o conheças finalmente... 
Talvez, acabando, comeces... 
E, de qualquer forma, se te cansa seres, 
Ah, cansa-te nobremente, 
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira, 
Não saúdes como eu a morte em literatura! 

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! 
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... 
Sem ti correrá tudo sem ti. 
Talvez seja pior para outros existires que matares-te... 
Talvez peses mais durando, que deixando de durar... 

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado 
De que te chorem? 
Descansa: pouco te chorarão... 
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, 
Quando não são de coisas nossas, 
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, 
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros... 

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda 
Do mistério e da falta da tua vida falada... 
Depois o horror do caixão visível e material, 
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali. 
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas, 
Lamentando a pena de teres morrido, 
E tu mera causa ocasional daquela carpidação, 
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas... 
Muito mais morto aqui que calculas, 
Mesmo que estejas muito mais vivo além... 
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova, 
E depois o princípio da morte da tua memória. 
Há primeiro em todos um alívio 
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido... 
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente, 
E a vida de todos os dias retoma o seu dia... 

Depois, lentamente esqueceste. 
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente: 
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste. 
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada. 
Duas vezes no ano pensam em ti. 
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram, 
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti. 

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos... 
Se queres matar-te, mata-te... 
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ... 
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida? 

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera 
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor? 

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida? 
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem. 
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma? 

És importante para ti, porque é a ti que te sentes. 
És tudo para ti, porque para ti és o universo, 
E o próprio universo e os outros 
Satélites da tua subjetividade objetiva. 
És importante para ti porque só tu és importante para ti. 
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim? 

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido? 
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, 
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial? 

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida? 
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente, 
Torna-te parte carnal da terra e das coisas! 
Dispersa-te, sistema físico-químico 
De células noturnamente conscientes 
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos, 
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências, 
Pela relva e a erva da proliferação dos seres, 
Pela névoa atômica das coisas, 
Pelas paredes turbilhonantes 
Do vácuo dinâmico do mundo...
Álvaro de Campos, in "Poemas"

Inteligência feminina

O grande problema daqueles gajos que só atraem mulheres inteligentes é que a melhor prova de inteligência de uma mulher é fugir deles mal os vêem.

Tornozelo

Tenho um tornozelo inchado. Fui ao médico, mas esqueci-me de lhe perguntar porquê.

Na verdade o que me espanta - e irrita - é que ele não esteja necrosado, como merece.

A BA do dia

Ensinei o rapaz do Lovaina a fazer ti' punch. Seria egoísta fazer-me mal sem compensar com uma boa acção.

Análises, autópsias

Qualquer dia vou fazer análises. Antes fossem autópsias.

Noite

A única qualidade da noite é ser curta.

Inesperadamente

Uma cidade inesperada. Se tivesse que definir a cidade do Panamá seria assim. Pensamos que estamos na América Latina e não estamos; pensamos que estamos na América e não estamos.

Parece-nos estar aqui e estamos ali, estar ali e estamos aqui.

Verdades todas e verdades parciais

"Queres uma chupadita?", pergunta-me a rapariga no caminho de regresso ao hotel. "No, mi amor, gracias".

Aparentemente

Aparentemente há uma vida antes da morte. Para quê?

Sintamotologia

A depressão bate no peito e a ansiedade no ventre. É fácil medir a parte de cada uma a cada instante.

Perder, privilégio

A única coisa que um homem não aguenta perder é um privilégio. Quanto mais injustificado mais difícil.

12.7.13

Carrascos e carrascos

Se bem percebi Assunção Esteves chamou carrascos a uma centena de manifestantes ligados ao PC (ou aos sindicatos, é a mesma coisa). As intelligentzias do costume reagiram mal, coitadas. A frase vem de Simone de Beauvoir e referia-se aos alemães e utilizar a expressão para se referir a PC e companhia seria uma abjecção insuportável.

Talvez seja tempo - já é tempo - de as pessoas perceberem que nazismo e comunismo estão do mesmo lado da barricada, e que tudo o que se aplica a um aplica-se ao outro.

11.7.13

Diário de bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 11-07-2013 / II

O interior do hospital corresponde ao exterior.

........
Atirei-me ao exercício com um bocadinho de demasiada energia, parece. Subir quatro andares a correr é muito. Humm, não sei. A ver vamos, quando o puder fazer outra vez.

........
Hoje limpámos o fundo ao Artie. Enfim, limpou o mergulhador. Eu nem morto quero ir para dentro desta água. Não vou acreditar, quando me apanhar nas Perlas. Gosto da cidade e gosto (medianamente) desta; mas preciso de mar.

A tristeza dissolve-se melhor na água do mar do que no alcatrão.

........
Sobretudo neste. A minha irreprimível tentação pedagógica tem um novo alvo: ensinar aos condutores de Panamá para que servem as passagens de peões. Eu compreendo que seja um chato para eles; a avenida do hospital está em muito bom estado, tem quatro faixas (mais duas onde os carros estacionam) é longa e não tem sinais.

Não tem sinais mas tem passagens de peões, que é quase a mesma coisa. Tenho uma certa prática porque já fiz isto em Lisboa, muitas vezes, quando os nossos condutores ainda pensavam que as passagens de peões são para os estrangeiros, na terra deles.

Eu sou estrangeiro, é certo; mas esta é a minha terra, enquanto cá viver. E quero usufruir das passagens em paz. Enfim, por enquanto paz não é a palavra adequada. Tenho mais do que a minha dose quotidiana de adrenalina. Mas estou mesmo ao lado do hospital; se voltar a ser ter um carro mais teimoso e com menos reflexos não demoro muito tempo a chegar a quem me trate.

O do outro dia era teimoso, mais do que a maioria dos automobilistas. Mas menos do que eu. Deve ter apanhado um bom susto. Estava branquinho, quando me voltei para trás para lhe agradecer ter parado.

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 11-07-2013

Todos os dias vou ao hospital. Comer o pequeno-almoço: o meu hotel não tem restaurante e fica ao lado do Hospital Nacional.

A comida é boa, mas estranhamente pouco dietética; fritos, molhos, poucos vegetais ou legumes. O que mais me agrada é o estado de limpeza, a ausência total de confusão, a ordem. Parece um hospital suíço.

Mas a verdade é que também todos os dias me pergunto como serão os cuidados médicos. Os nossos hospitais são o que são (ao lado deste provocam um bocadinho de vergonha) mas a medicina tem qualidade. Aqui não sei. Isto é, por enquanto. Daqui a três horas saberei.

O meu pé esquerdo resolveu embicar comigo. De Dezembro a Fevereiro foi o calcanhar (verdade seja dita que numa semana se resolveu: bastou ir ao médico); de Março a Maio o peito do pé (este já foi tratado pelo tempo, só o tempo); desde anteontem o tornozelo. Há mais de dois dias que não faço os meus passeios matinais. Comecei imediatamente a tratar daquilo, mas apesar do Voltaren a dor tem vindo a aumentar. Já que vou todos os dias ao hospital resolvi aproveitar a simpática oferta do governo panamiano (um seguro de saúde gratuito, válido por um mês, a todos os turistas que chegam pelo aeroporto de Tucumen).

Até agora a qualidade da coisa tem sido impressionante: o número de telefone que me deram no hospital respondeu imediatamente, ligou-me pouco depois a confirmar a consulta, fui chamado para o exame ainda não tinha acabado de preencher os papéis. Pouco depois informaram-me que o médico estava ocupado e me receberia às cinco da tarde.

Alguns dados: o Panamá tem um GDP per capita de aproximadamente quinze mil dólares; segundo a mesma fonte o de Portugal (ambos medidos em PPP) é de vinte e dois mil. A Cidade do Panamá tem uma população de 800,000 pessoas, pouco menos do dobro de Lisboa (se bem a população da área de influência seja menor, 1,2 milhões contra 2,9 - mas Lisboa tem muitos mais hospitais nas zonas periféricas).

Felicidade, preço

Toda a gente quer ser feliz, mas isso é um erro. A felicidade tem um preço elevadíssimo, paga-se demasiado caro e durante muito tempo.

Depressão, merecimento

Outra grande vantagem da depressão é devolver o seu verdadeiro sentido à expressão "eu não merecia isto".

Seres

Vem aí o sol e com ele a vida, as palavras, as cores.
Penso em Moustique, no Basil's: nunca lá estivemos.
Por causa das cores. Nada a ver contigo.
E da água, tão transparente. Nunca fomos transparentes, pois não?
Mudo de disco. É preciso saber tocar guitarra, é preciso saber escrever,
Saber cozer ovos, parti-los antes de os cozer, devagar,
Para um recipiente à parte, não vão eles estar
Podres como eu.

É preciso reconhecer que resisti até agora.
Há mais de uma semana que não oiço Leonard Cohen
Explicar-me que aquilo que eu sinto
Não é nada, rigorosamente nada.

Já foi sentido antes, e sentimentos em segunda mão
Pouco valem. Sentimentos usados, quero dizer.
Até podem nunca ter tido dono,
mas já foram usados.

As palavras.

Os lugares.

Tudo já foi usado.

A luz.

Um dia iremos a Bequia comer lagosta e seremos os primeiros seres na terra a comer lagosta em Bequia.

Um dia seremos os primeiros seres na terra. Tu serás a primeira mulher, a única, a última.

Na verdade pouco importa.

Tempo

O tempo é escrito a lápis. Pega-se numa borracha e apaga-se.

Diário de bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 10-07-13

A cidade não é amiga de quem não anda de carro: para os peões, passeios estreitos, esburacados, sujos, cheios de águas cuja origem é difícil de identificar; as passagens são olimpicamente ignoradas pelos condutores - hoje ia sendo atropelado, verdadeiramente atropelado, no sentido físico do termo -; para os ciclistas (isto é informação em segunda mão, nunca andei de bicicleta na cidade): os carros não nos respeitam, buzinam todo o tempo, são agressivos, é só autoestradas e vias rápidas.

O curioso é ser igualmente tão-pouco amiga dos automóveis. Os engarrafamentos são permanentes e monstruosos - piorados porque estão a construir um metro e a cidade está em obras -, as ruas esburacadas, o estacionamento uma lotaria.

A cidade não é amiga de quem quer que seja que nela se desloque, viva ou que simplesmente a visite.

É espantosa, surpreendente, inesperada, chiante muitas vezes. Mas não é amiga.


8.7.13

Jazz, espanto



Fumar

Não consigo fumar durante muito tempo, infelizmente. Já parei outra vez, apesar desta horrorosa vontade que de vez em quando tenho de fumar. Mas a verdade é que nem de comprar um maço tenho vontade, quanto mais de pedir um cigarro.

Passivos, activos

Há mulheres para as quais olhamos e ficamos imediatamente com vontade de as amar; com outras é o contrário: tudo o que queremos é ser amados por elas.

Prefiro as segundas, apesar de, de maneira geral, me ter dado mal com a fórmula. Sou demasiado activo para ser passivo, e demasiado passivo para ser activo.

As vantagens da depressão

A depressão tem pelo menos uma vantagem: faz-nos olhar para nós próprios com os olhos dos outros. Vêmo-nos como somos realmente.

Finalmente, acrescentaria se tivesse vontade de lhe acrescentar outra.

Retratos improváveis

"Namorei", dizia-me num bar de putas de Cólon, no Panamá "com uma rapariga que sabia quem era o Detective Cantor; com outra que tinha vergonha de andar à boleia; ou uma que me mostrou Paris de cima a baixo; outra sabia fazer aterrar aviões num aeroporto. Na verdade" - o homem não se calava - "namorei com uma quantidade incalculável de mulheres que sabiam fazer muitas coisas; algumas sabiam mesmo fazer tudo. Mas raramente namorei com uma mulher que me conhecesse. Antes, durante ou depois, contam-se pelos polegares de uma mão - vá, duas - as mulheres que realmente me conhecem."

Era um tipo baixo, gordo, careca, cinquenta anos; ouvia mal - estava ali claramente para falar, não para ouvir -; vestia-se bem, com roupa de marca mas não de moda. Não sabia o que lhe responder, por isso não disse nada.

"Durante muito tempo pensei que era demasiado complexo para ser conhecido por alguém, excepto talvez uma mulher excepcional, ou duas. Nada disso. É simplesmente difícil conhecer o vazio".

Qualidades

Gostaria tanto que um dia as minhas qualidades fossem reconhecidas pela lotaria ou pelo euromilhões.

Rousseau e as grandes empresas

Incientes do iniludível facto de que se matarem as pessoas as (grandes, o tamanho conta) empresas perdem clientes elas continuam, cegas e ávidas de dinheiro (coisa de que felizmente o merceeiro da sua esquina está isento) a tentar matar toda a gente.

Felizmente, meia dúzia de clarividentes, imbuídos de Rousseau (essoutro grande expoente do progresso e da liberdade, que de resto provavelmente nunca leram, ou leram mal) está a abrir-lhes os olhos (às empresas, não aos merceeiros da esquina).

Calor, ventoínhas e ar condicionado

O ar condicionado está para o calor como uma puta para o amor.

As ventoínhas são uma felação feita com amor: talvez sejam menos eficazes, mas são muito melhores.

Sede

Tenho sede. Preciso de beber água. É uma sede desprezível.

Asneiras, vontade

Poder fazer asneiras é um privilégio. Poder fazê-las consciente, voluntariamente é ou uma dádiva ou uma maldição.

Fealdade, beleza

Algumas mulheres só são feias depois de lhes fazermos amor. A fealdade verdadeira não é vísivel à primeira vista. (E algumas não o são nunca, mas isso é outra história).

Tal como a beleza, dirão decerto alguns adolescentes românticos e excitados, passem os pleonasmos.

Dieta

Mudei radicalmente de dieta. Comecei a andar mais depressa.

Amores, álcool

Tenho o álcool leve e o amor pesado. Antes assim do que ao contrário. Não por causa do álcool (só bebo quando preciso e felizmente não preciso sempre) mas pelo amor. Os amores leves são insuportáveis.

7.7.13

Camille

"Deixas-me mexer-te numa maminha"? Camille tinha os seios pequenos mas duros, bem feitos. Por baixo da t-shirt via-lhe o mamilo grande, com a ponta ligeiramente saída. "Só se me deixares apalpar-te um dos tomates. Que estúpido és, homem. Mexe nas duas, porra. E tira-me esse pau das calças que ainda as rasgas".

Camille tem muitas qualidades para além das mamas. Já a conhecia havia muito tempo, mas nunca falara com ela mais do que do tempo, do vinho ou dos políticos que tão bem se governam "neste vosso país". Chegara a Portugal três anos antes, vinda da Suíça. Dava aulas de francês na faculdade de letras de uma universidade qualquer, não quero lembrar-me de qual.

Encontrámo-nos num jantar de degustação de vinhos. Camille gostava dos mesmos vinhos que eu, adstringentes, com personalidade, vinhos que deixam uma marca, como algumas pessoas. "Nem que seja uma nódoa, mas que fique alguma coisa", dizia.

Naquele dia dei com ela por acaso na Taberna das Hortênsias, uma coisa em Lisboa que imita (ou imitava, não sei se ainda existe) vagamente uma tasca açoreana. O dono era um francês que vivera muito tempo em Ponta Delgada. "Vim-me embora", explicava a quem o queria ouvir, com um sotaque carregado. "Viver nos Açores é como estar morto noutro sítio qualquer".

Camille estava sozinha, eu também; jantámos juntos e fomos depois beber um copo à Rumaria. "Não percebo nada de runs, talvez me possas ajudar".

Daí até à maminha, ao pau fora das calças e na boca dela, até estarmos os dois na cama a lutar violentamente por um orgasmo passaram alguns runs, uma ceia tardia - ovos mexidos, queijo, vinho tinto - uma viagem de táxi até casa dela e um "espera, vou trocar de roupa, já venho. Põe música se quiseres.".

Pus um disco da Hélène Grimaud, um concerto de Rachmaninov que não conhecia. A mulher é bonita, o que não estraga nada; e toca como se fosse filha do Gould. Camille aprovou a minha escolha. "Tens bom gosto. A mulher toca bem. E é bonita, o que não estraga nada".

Não sei muito bem de que é feito o amor; mas sei de onde vem a atracção física, a vontade de entrar num corpo e lá ficar para sempre. Ouvir uma mulher dizer, exactamente com as mesmas palavras, aquilo que eu acabo em silêncio de pensar é uma das origens dessa vontade, muito mais do que a beleza da senhora ou o tamanho das suas mamas.

Foi por isso que não ouvi o concerto, mas posso dizer mais ou menos quanto tempo levámos a lutar: foi muito e foi bom.

Dois meses depois estava a viver em casa dela. Dois anos casávamo-nos; três, nasceu-nos o primeiro filho, Serge. Cinco, o segundo, uma rapariga a quem chamei Hélène.

Camille sugeriu que chamássemos Pan ao primeiro, mas recusei. "Só tenho uma".


II
Morreu. Atropelada por um automóvel à saída da faculdade. Nunca mais a ouvirei dizer "é tão bom foder, meu Deus, tão bom" sentada em cima de mim, com os braços levantados como se estivesse a dançar. Nunca mais me pedirá "deixa-me tocar flauta" de manhã, antes de se levantar para ir tratar do pequeno almoço. Nunca mais me dirá "come-me, por favor. Mas sem garfo, só com a faca".

III
É possível que haja ausências piores do que a morte. Obrigo-me todos os dias a pensar que sim, que algumas ausências são piores do que a morte. Mas não consigo. Não há. Conseguimos esquecer uma pessoa viva, mas não conseguimos esquecer uma que morreu, e não nos matou.

6.7.13

Não sei

Talvez não sejam milhares; mas são centenas de pessoas que andam no meu cérebro, determinadas. Vêm de todas as direcções mas dirigem-se todas para o mesmo ponto, em grandes filas desordenadas. Visivelmente conhecem-no: nenhuma hesita, nenhuma pára ou sequer abranda. Não sei quem são, o que procuram, de onde vêm ou para onde vão.

Por uns momentos penso que fogem do tinitus, que me massacra hoje mais do que o habitual por causa da grande quantidade de vinho branco que ontem bebi. Claro que não: elas não o podem ouvir.

Não sei como sei que é o meu cérebro. Talvez não seja, talvez seja outra mente qualquer.

É o meu.

Não sei.

Um cérebro não é um passeio público. Dirijo-me apressadamente para o ponto para o qual convergem as pessoas. Nenhuma o atinje, apesar de todas andarem depressa. Eu sim; afinal é o meu cérebro, posso ir onde quiser nele. Faço grandes gestos para que as pessoas párem, voltem para trás, me deixem em paz.

De repente tenho o espírito vazio; desapareceram, foram-se embora. Não as matei, não morreram. Desapareceram, simplesmente.

Talvez cada pessoa fosse um dia, uma semana, um mês. Não sei.


Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 06-07-2013

A Cinta Costera tem três quilómetros; os meus dias começam portanto com um passeio de seis. Para Oeste vejo o Casco Antiguo, a parte velha da cidade. Para Leste é o bambuzal de arranha-céus. No meio fica a "vida real", quase me apetece pensar. Quase: na verdade só os arranha-céus me parecem irreais, E de certa forma são. Se os prédios reflectissem um país seria mais o Casco Antiguo, lindo, com casas a cair e outras renovadas que melhor o representaria. Os bambus de cimento mostram a faceta aberta e cosmopolita daquilo que Alexis, o meu taxista, designa por mi Panamá com um misto de ternura e ironia.

Mi Panamá é um país surpreendente, complexo, pobre vestido de roupas ricas; a cultura dos americanos, que aqui estiveram tanto tempo, não se misturou com a da América Central se não superficialmente. A miscigenação de culturas é um fenómeno lento, e se essas culturas forem água  e azeite ainda demora mais tempo.

........
Os trabalhos no barco avançam lenta, penosamente. Mas avançam. Em breve poderei deixar o hotel e voltar para bordo; poucos dias mais (daqui a duas semanas. Uma eternidade) e estarei a trabalhar naquilo que verdadeiramente gosto de fazer: levar pessoas a passear de barco, partilhar um pouco do meu amor pelo mar, pela navegação à vela (aqui vai ser mais a motor, suspeito), por um bom vinho e um bom prato a bordo.

........
Hoje fui almoçar com o grupo de leitura do Internations local. Das cinco pessoas presentes só duas tinham lido o livro que estava em discussão (eu estava no grupo maioritário). Quando chegou o momento das sugestões sugeri o meu bem-amado Passage to Juneau. O livro foi escolhido. Sorte de principiante, suponho. Vou gostar de o reler. Se um dia escrever um livro de viagens vai começar onde aquele acaba.

........
O Balboa Yacht Club fica situado, já aqui o mencionei, na entrada Sul do Canal do Panamá, muito perto da ponte das Américas. Ontem ao fim do dia a vista era deslumbrante. É este lado mágico do Panamá que todos os dias me seduz: uma ponte entre duas metades de um continente, um canal entre dois oceanos, navios de todas as formas e feitios a atravessar uma coisa que para o ano faz cem anos e que nesse século viu passar - e ajudou a definir - praticamente tudo o que o homem fez para andar na água. Estão de fora alguns supertanques, graneleiros, porta-aviões e os grandes porta-contentores (para os acomodar o Canal está a ser aumentado).

Os navios com dimensões próximas do máximo que o Canal permite chamam-se Panamax. New Panamax são os que o poderão atravessar quando as obras de ampliação estiverem terminadas. (A título de curiosidade: os outros chamam-se Postpanamax, Overpanamax ou Capesize).

Milagres, mistérios

Como não acreditar em milagres quando se vive rodeado de mistérios?

4.7.13

Pedagogia para adolescentes e cozinheiros

A carne quer-se ou viva ou crua.

Márquetes e prazer

Os meus sapatos Land Rover foram amorosamente roídos por um adorável cachorro de dois meses de idade e Frodo de nome.

Que os sapatos estejam roídos incomoda-me relativamente pouco - mudamos, mas não mudamos do dia para a noite, de sapatos estranhamente novos para sapatos inquietantemente roídos -. Mas o episódio fez-me pensar: se eu fosse marqueteiro daria a uma marca de sapatos o nome (sem dúvida atractivo) de Land Rover?

Sim, sem hesitar. As roídelas do cachorro mal se notam; é preciso saber que elas lá estão para as ver; e pensem no inesgotável manancial que se pode explorar ao longo de "compre um par de sapatos Land Rover e chame Frodo ao seu cachorro; junte os dois e perceberá finalmente o que é o prazer, e resistir-lhe"?

Injustiças

A rapariga não olha sequer para mim. Não é olha para mim como se eu fosse transparente. É não olha sequer para mim, de todo, como se eu não existisse, não estivesse ali sentado a beber o meu Mojito sem açúcar, não a tivesse achado gira com o seu nariz empinado, os seios pequenos empinados, o olhar empinado.

É injusto, sem dúvida. Porque devo eu escrever a uma mulher bonita, mostrar-lhe por a mais b que sei navegar no mar oceano, que numa embarcação de vela sou um misto de Tarzan, Capitão Alverca, Mandrake, Super Homem e Andy Capp para que ela se digne no mínimo reconhecer que eu existo e no máximo pensar que não é palavra mais apropriada para se dirigir a mim (não sendo melhor do que nada, naturalmente)?

(Uma carga de trabalhos muito injustamente recompensada, forçoso é reconhecer).


Cansaços

A inteligência, a cultura, o carácter - designado em Portugal por mau feitio - são qualidades muito cansativas tanto nas mulheres como nos homens (mais naquelas do que nestes, devido decerto a certas injustiças ou então deficiências de atenção, na construção do mundo por quem o foi construindo ao longo destes anos todos).

Mas certos cansaços são tão bons, não são?

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 04-07-2013

Os panamianos acreditam na buzina como meio de regular o trânsito. Muito menos do que os marroquinos, é verdade; e menos do que os portugueses há uns anos. Mas bastante, mesmo assim. Também usam a buzina para assinalar a uma senhora que ela é senhora - nisto não são exigentes: desde que seja do sexo feminino leva uma buzinadela breve, não vá a mulher esquecer-se de que é mulher.

A buzina de que mais gosto é a de Alexis, o meu taxista de eleição. Tem um som estranho, parece quase um assobio e permite imitar o de qualquer trolha que se preze em Lisboa. Mas tive de o disciplinar um bocadinho. Proíbi-o (gentilmente, claro) de buzinar a senhoras gordas, obesas, feias, demasiado novas ou demasiado velhas. A minha irreprimível tentação pedagógica encontrou uma nova área de actividade: a estética.


3.7.13

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 03-07-2013 - II

T. é um jovem (25 anos) tripulante do Nautitech 452 que está amarrado na bóia ao lado da minha. Encontrei-o na panga [bote] do clube. Fomos jantar ao Casco Viejo; fiz-lhe, e a mim, o passeio quase todo: Rana Dorada, Habana Vieja, Louvaina, onde jantámos.

A conversa começou com temas anódinos, habituais: os prédios a cair, a desigualdade social (4x4 ao lado de prédios a cair), as perspectivas profissionais de T. (tem muitas, o rapaz tem ar de e deve ser competente).

Depois, com um muito ligeiro pré-aviso passa para a vida afectiva. T. está indeciso, coitado, entre uma mulher por quem está disposto a largar tudo e outra que está disposta a largar tudo por ele. É um tema que me apaixona, não sei porquê. Falamos um bom bocado das dificuldades que esta vida (esta vida sendo a de um marinheiro na náutica de recreio) traz para a vida afectiva. Do alto dos meus cinquenta e cinco anos (e algumas vidas) explico-lhe uma série de coisas. No fundo falava para mim, era a mim que me explicava uma verdade que agora me parece simples: esta vida é feita para iguais, não suporta a diferença.

Ponho T. num táxi e pergunto-me no caminho de regresso ao hotel, que faço a pé, porque demorei tanto tempo e precisei de sofrer tanto para perceber esta verdade elementar.

As verdades elementares são as piores (ou melhores, depende do ponto de vista).

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 03-07-2013

A cidade do Panamá é a minha casa (enfim, seria mais correcto dizer a minha casa está na cidade do Panamá); é bom voltar para casa (quase. Ainda não fui a bordo) depois de umas boas férias. E as férias foram boas, óptimas, magníficas.

Foram tudo o que as férias de emigrante devem ser, suponho: insuficientes para se ver toda a gente que se queria ver e visitar todos os lugares e provar todos os pratos, mas suficientes para dar vontade de regressar daqui a um ano.

........
O dia começou com um passeio a pé pela Cinta Costera, a marginal da cidade do Panamá. Fui para Oeste, para o lado dos prédios. Ainda não eram sete e meia, mas o sol já ia alto. Estava tapado por alguma nebulosidade de altitude (cirrostratus, a quem interessar) e ao longe os prédios pareciam uma floresta de bambus que alguém cortara a meia altura, mesmo antes de as folhas começarem. São muito estreitos e altos, muito próximos uns dos outros. Visualmente o efeito resulta agradável. Confesso que nunca percebi a aversão dso portugueses aos prédios altos. Há alguns maus, claro - o de Ponta Delgada vem imediatamente à memória - mas lamento, por exemplo, que a torre de Siza Vieira em Alcântara não tenha sido aprovada.

........
Crise política em Portugal. Parece um exemplo de redundância num verbete de dicionário. As pessoas reclamam contra os "interesses pessoais" que os políticos põem à frente dos interesses do país. O raciocínio é falacioso. Prefiro de longe políticos com interesses pessoais a governantes sem eles - padres, militares e outros benfeitores (isto assumindo que também não têm interesses pessoais, mas isso fica para outras missas).

A questão é saber o que se exige dos políticos em troca da satisfação dos seus interesses pessoais; infelizmente o povo português pede muito pouco em troca. E pedirá sempre. O respeitinho é cobardolas por natureza.

........
Os trabalhos no Artie atrasaram-se. É muito raro isto acontecer. Normalmente nos barcos os prazos são cumpridos - e se não é porque estão adiantados - as surpresas são sempre boas, os custos muito inferiores aos orçamentos, os fornecedores de serviços ainda mais competentes e sérios do que nos disseram quando falámos ela primeira vez com eles, e a verdadeira dimensão das reparações a fazer muito inferior ao que tínhamos pensado quando os contratámos.

........
O caos visual, a sujidade, o barulho, a poluição, a negligência com os equipamentos públicos aqui são muito inferiores aos do Brasil, de longe (pelo menos aos do Brasil que eu conheço, nunca é de mais repetir). Mas não há dúvida: estamos na mesma área cultural. Quem olha para os prédios e para as ruas que lhes ficam próximas vê uma cidade; anda dois quarteirões (os quais até são pequenos) e vê outra.

........
Em Outubro a casa muda. Volta para a outra casa, no lado de lá do istmo. Vai ser tão voltar para aquela casa como foi para esta; melhor, muito melhor. Com os CD praticamente todos. Vinte quilos de discos. Infelizmente não chega para redefinir casa: faltam os livros, e esses pesam muito mais.

Mas uma coisa é certa: há uma casa no horizonte.