27.6.13

Um bocadinho menos de tristeza

A palavra tristeza não tem nada a ver com a tristeza, nem palavra com palavra. São o que querem, as palavras.

Como eu.

Geografias

Antígua, Palma e Mértola: são as terras que nos escolhem, e não nós a elas.

Diário de Bordos - Lisboa, 27-06-2013

"Lá foi, Leduc e o rapaz tiveram muita pena de o ver partir, falavam amiúde dele, da sua alegria e generosidade, e também da melancolia um pouco espessa em que às vezes se refugiava, a vida seguiu o seu curso, passou tempo, até que, repentinamente, Leduc se suicidou."

As férias continuam, insondáveis, variadas e ricas como o meu bem amado Molero. Revejo e vejo, trabalho um pouco e passeio muito, vou às capelinhas antigas e conheço novas. Sábado vou pela primeira vez a Guimarães; terça regresso ao meu bom Artie, que já começa a fazer-me falta. Ignoro se é azar, se sorte. Não consigo estar muito tempo longe do trabalho, seja por falta de imaginação seja por gostar do que faço.

Exposição A Invenção do Amor, de Isabel Zuzarte.

A Isabel tem o dom de tornar comoventes as coisas para as quais olha, ou de nos comover com a maneira como olha para as coisas. Não sei. Mas sei que ver a sua fotografia é uma experiência sentimental. A Invenção do Amor está um bocadinho desigual, mas essa fantástica capacidade de nos emocionar, de nos surpreender - há uma surpresa em cada emoção, sempre, porque as emoções são todas diferentes, todas novas, inventamo-nos a cada amor, cada afecto - está presente em todas as fotografias.

Nunca acreditei que a arte tem um género - não sei o que são a fotografia, a escrita, a escultura, a literatura, o teatro ou a poesia, a música no feminino ou no masculino -; mas esta exposição trouxe-me à memória uma outra grande fotógrafa que conheci, uma senhora chamada Simone Oppliger, que fotografava, como a Isabel, com a alma.

A exposição está no Conservatório Nacional, na rua dos Caetanos, em Lisboa. A data das minhas férias foi mais ou menos ajustada para poder estar em Lisboa ao mesmo tempo do que a exposição. Ou seja, exagero muito pouco se disser que vim do Panamá para a ver. Quem está em Portugal não tem muitas razões para não ir ver aquelas fotografias: valem uma viagem, qualquer que ela seja, porque nos oferecem muitas mais viagens, muito mais longe.

25.6.13

Lisboa

"Estás e nunca estás e o vento vem e vergas
E há também a chuva e por vezes molhas-te,
Aceitas servidões quotidianas, vais de aqui para ali,
Animas-te, esmoreces, há os outros, morres
Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te
Entre o fim do verão e a renda da casa..."

Ruy Belo, Ácidos e Óxidos, in Todos os Poemas, Assírio & Alvim

Estar grosso em Lisboa.

Só há um sítio válido para se estar bêbedo em Lisboa, legítimo, onde vale a pena, que é muita. Chama-se Ler Devagar e fica na Lx Factory, uma pena. Não há razão para Factory. Fábrica, laboratório, o que quer que fosse ficaria melhor. Mas enfim, chama-se factory, paciência.

Tem livros, beleza, boa música, miúdas giras, uma bicicleta voadora, bebidas, boa música, miúdas giras... Acho que me estou a repetir.

Tem Lisboa. Não precisa de mais nada.

Clorofila, amizade

Regresso a Lisboa com reservas de clorofila para um ano. Infelizmente o mesmo não se passa com as da amizade, que nunca se enchem.

24.6.13

Diário de Bordos - Évora, 24-06-2013

Percorri finalmente o trilho do aqueduto da Água de Prata. O passeio é agradabilíssimo, um longo carreiro pelos campos. À boa maneira portuguesa aquilo desemboca na estrada, sem qualquer espécie de aviso. Sai-se do campo para a berma da estrada nacional e oops, já está, au revoir Messieurs Dames, merci de votre visite.

Fiz o percurso (enfim, parte dele) a pensar em como seria aquilo se estivesse na "Europa": sobre-humanizado, bermas arranjadas, informação de vinte em vinte metros, barreiras de segurança. Nada disso ali: há partes do trajecto em que nem o carreiro se vê; a informação é escassa, e a pouca que há naquele dialecto científico, cheio de termos que nos fazem ver quão sábios são os senhores e senhoras que a escreveram.

Confesso que prefiro o método luso-científico, igualmente conhecido por negligência, deixa-andar, desinteresse, eleições-à-porta. Afinal se vamos passear para o campo é para estar no campo, não num jardim do Arquitecto Ribeiro Telles.

........
O português dos painéis informativos é irritante porque afasta as pessoas, cria barreiras onde não as devia haver.

........
Mais um restaurante para a lista de oferta Eborense. Chama-se  O Sobreiro, fica na Rua do Torres, 8 (perto da Vodafone). Comi umas migas com carne de alguidar que não me deslumbraram mas deixaram-me com vontade de explorar a carta mais a fundo. Deve haver um tesouro ou dois, por ali.

........
Quase uma semana de sono, verde, amizade e ausência de mar (se bem continue a tratar dos assuntos do barco por telefone e e-mail. Um refit, por pequeno que seja é pior do que um casamento, mais invasivo e presente). Foi bom. Volto para Lisboa contente, leve e a esperar a data de regresso ao Panamá. Deve ser para isso que servem as férias: para ansiarmos que acabem. Ainda não anseio pelo fim destes dias em Portugal, longe disso. Mas menos longe do que há uma semana.

Notas dispersas

Semântica:
Uma visita ao Canil Veleiro Nagual e a expressão vida de cão muda de sentido.

Liberdade:
Ler as caixas de comentários de alguns blogs e jornais é a melhor maneira de nos fazer avaliar aquilo que entendemos por liberdade de expressão.

Ginásios:
Continuo a não perceber a necessidade de ginásios. Uma hora nas ruas de Lisboa, numa quinta do Alentejo ou em qualquer bar digno desse nome são mais úteis do que  num ginásio, por muito giro que seja o monitor ou gira a professora de Pilates.

22.6.13

Lua cheia

É noite de lua cheia e
De terra cheia também,
Cheia de cheiros de vento e de ti.

Cheira a verde e a vento,
Um cheiro redondo como
A lua cheia sem ti.

O cheiro vê-se
Como se toca a luz
Quase, a lua e tu.

21.6.13

Gestos, palavras

A questão é a mesma de sempre: uma carícia substitui o conhecimento, complementa-o, completa-o? Intuitivamente responderia sim às três perguntas; não se excluem.

Uma carícia substitui o conhecimento se for esse o seu objectivo; complementa-o e completa-o nas mesmas circunstâncias. O que interessa é o objectivo.

Uma carícia pode ser um fim em si mesma, se a recipiente o quiser. Ou um complemento, se ela o achar necessário.

Uma carícia sem uma vontade expressa da recipiente não é nada. É um gesto. Os gestos não são nada sem as palavras; a recíproca também é verdade: uma palavra sem gesto não passa de som. Uma carícia é uma dualidade, uma ambiguidade, o encontro de duas vontades, duas peles, dois.

Há palavras mais inócuas do que outras. São as que ferem mais. Há gestos inconsequentes. São os que magoam menos. Uma mão num seio vale menos do que amo-te? Magoa mais?

Depende do seio, da mão, do que os move. Tu não és um seio, eu não sou esta mão.

Sam, outra vez. No original, a tradução é fraquita.


“If you were still around”

If you were still around
I’d hold you
Shake you by the knees
Blow hot air in both ears

You, who could write like a Panther Cat
Whatever got into your veins
What kind of green blood
Swam you to your doom

If you were still around
I’d tear into your fear
Leave it hanging off you
In long streamers
Shreds of dread

I’d turn you
Facing the wind
Bend your spine on my knee
Chew the back of your head
Til you opened your mouth to this life

1/31/80
Homestead Valley, Ca
Sam Sheppard, Motel Chronicles

Sam

A felicidade
cai
no lado errado
da Sorte

A felicidade
cai
longe das minhas mãos

A felicidade
despenha-se
entre as árvores

toda a gente se queixa

Sam Sheppard, Crónicas Americanas, Ed. Difel

Beau de l'air

"J'ai plus de souvenirs que si j'avais mille ans."

Algumas notas

Algumas notas não despiciendas sobre a amizade, o amor, o futuro o passado e o presente, a gastronomia e a lua, o tinitus, as coisas que se dizem por dizer e as coisas que não se dizem por dizer, a solidão a dor a alegria e a boa companhia, o arroz demasiado cozido e os morangos marinados em açúcar, a mayonnaise caseira, o hummous com dois dias, as toalhas aos quadradinhos e as casas de campo recuperadas por arquitectos como deve ser, a ideia dos inúmeros telefonemas que devia ter feito e não fiz, e dos inúmeros que fiz e devia ter feito, os riscos da intoxicação por excesso de clorofila: Rum.

Neste caso, Flor de Caña Centenario, 12 Anos.

Jantar improvisado - arroz de pimento em presunto

Aviso à navegação: morangos são melhores com rum do que com qualquer outra coisa que tenha provado até hoje. Incluindo chantilly, vinho do Porto, açúcar, sumo de laranja, ou mesmo nada.

Comecei por refogar a gordura de muito presunto, muito devagarinho (isto dos refogados tem que se lhes diga). Depois juntei os pimentos, cortados em bocados pequeninos.

Depois pus o arroz, deixei cozer - demais, mas isso não importa agora - e acompanhámos com  mayonnaise de peixe, salada, vinho tinto Terra d'Alter Touriga Nacional 2010, muita amizade, hummous que fiz anteontem, mais vinho tinto, mais amizade, duas ou três decisões, muita felicidade, muito bom humor, mais um bocadinho de rum, uma trágica ausência de tédio, cães d'água em quantidades industriais, mais rum, uma incursão no passado e outra no presente, menos tédio ainda.

(O rum é Flor de Caña 12 Anos. O bom humor não sei. Os cães do Canil Veleiro Nagual. O resto não interessa.)


Diálogos improváveis

- Não sei quem amar.
- Começa por aprender a amar. O resto seguirá.

- Não sei o que quero fazer.
-Começa por saber o que podes fazer. O resto seguirá.

Diário de Bordos - Évora, 21-06-13

Vou pela estrada, casaco branco de linho a tiracolo, como as personagens de Pasolini nos Passarinhos e Passarões (ou coisa semelhante). Eles eram dois e eu sou dois também, o meu eu triste e o meu eu feliz num só corpo, num só casaco, a estrada só para nós.

Ainda tinha o Pasolini na cabeça quando entrei no Mistério de Oberwald, um magnífico melodrama sobre o amor, o poder e a manipulação, cujas cores originais estavam completamente obliteradas pela projecção em video.

Um grande filme com uma grande actriz (e alguns pequenos, mas isso é irrelevante), uma bela história de amor e uma reflexão sobre o poder (de onde vem e para onde vai, como e porquê),  as diferentes formas da manipulação. O filme não teve muito sucesso quando saiu, se bem me lembro; vê-lo agora na Casa da Zorra, uma cooperativa cultural em Évora foi uma agradável surpresa.

Que a Lisboa em mim me perdoe, mas hoje não vou ouvir a Lisboa em Si. Fico em Évora a intoxicar-me de clorofila e paz, não tarda estou farto de uma e a outra nunca dura muito, mais vale aproveitá-la enquanto há.

20.6.13

Diário de Bordos - Évora, 20-06-13

"...por se tratar para o rapaz, supõe, apenas de uma sombra louca e dolorida que mora longe, ao fundo da rua, e da qual só nos apercebemos aqui e além, quando a generosidade nos leva atrás de um ovo roubado na despensa ou quando o grito do sofrimento estala nas nossas noites de lua cheia, sombra que um dia se esfuma num dos funerais da nossa existência."

Regresso a Évora e ao restaurante o Cantinho,  ando como e durmo, bebo vinho tinto e rum Flor de Caña 12 Anos que trouxe do Panamá.  Oiço David Bowie, logo à noite vou ver o Mistério de Oberwald. Não é só a Évora que regresso, é à banalidade, uma das formas da felicidade. Ou da ausência de dor, pelo menos. Já é muito.

Talvez não seja assim tanta a banalidade: estou longe do mar e gosto disso. Começo finalmente a perceber o que são férias, voltar para o trabalho que se deixou, continuar aquilo que se interrompeu. Não sei há quantos anos isto não me acontecia, nem quantas vezes. Há muitos, e muito poucas. Procuro na memória e não me ocorre nenhuma [Adenda: a última vez foi em 1994, quando trabalhava para o HCR]. As  férias são o primeiro passo para uma vida banal.

"Foge o mar dos meus dedos entre a noite, e a noite é uma canção que te procura".

(As citações são de O Que Diz Molero, Dinis Machado, Ed. Quetzal).

18.6.13

Boca, ouvido

Queixam-se tantas vezes de mãos sem mamas, de pele sem pele, de ventre sem ventre; mas não há pior do que boca sem ouvido.

Máximas antigas, de sempre

Antes de nos alegrarmos muito, devemos lembrar-nos de uma frase escrita por um senhor há já algum tempo: É preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma.

A vida, vagas

Não se vê o vento mas sente-se; tal como não te vejo mas sinto-te. És o vento. És a vida: vive-se e não se vê.  És a luz e o ruído da luz; és a falésia  na qual me despenho, contra a qual me quebro, vaga sombra de mim.

Vaga sombria de mim.  És o que sou mais o vento, o mar e a rocha, és a luz e o fragmento da luz, arco-íris sem fim nem princípio.  Um dia serei o que és e o vento, e a luz, e a rocha. Vida.

Água, corpo

São um rio, as palavras um corpo, procuram um leito uma foz onde desaguar, uma direcção; sem ele perdem-se, sem ela de nada servem. Dispersam-se impotentes no ar onde tu não estás, são como chuva no mar,  luz no vazio, mar sem vento.

Sem um leito as palavras secam, sem uma foz perdem-se. Sem ti as palavras são como uma noite sem ti, uma vida sem  noites, um leito sem água.

Ruas, drogas

Percorro-te as ruas, Lisboa, como se fosse eu a droga e tu o corpo. Mas não és, não somos. És tu a droga, eu o corpo que dela se enche, a respira, se intoxica e nela se perde e se reencontra.

Diário de Bordos - Lisboa, 18-06-2013

Lisboa é a cidade mais bonita do mundo pela razão mais ou menos simples (se bem bastante discutível) de que não há nada mais bonito do que as nossas memórias, todas; mesmo as que foram fabricadas por nós, há segundos.

Foi neste banco que não-te dei o braço, não-te beijei, não-te disse amo-te; foi naquela casa que pela primeira vez fizemos amor, ou tomámos o primeiro pequeno almoço juntos; foi debaixo desta árvore que percebi que te quero amar, te quero, te amo, te amarei.

Foi nesta livraria que; e  naquelas escadas, lembras-te? Não, não te lembras porque acabo de inventar que foi naquelas escadas que e foi nelas que nunca te disse que te amo, ou foi nelas que te acariciei pela primeira vez os seios, ou por aí fora.

Só numa cidade que conhecemos bem, na qual vivemos e que amamos se podem as memórias misturar assim, as verdadeiras e as falsas (enfim, não há falsas memórias: há as que se construíram a si próprias e sobreviveram em nós e as que nós próprios fizemos e sem as quais não sobreviveríamos nem dois minutos).  É por isso que Lisboa é a cidade mais bonita do mundo, para mim. E não por causa do café do senhor Leal, que ainda lá está, leal ao bairro e à qualidade; ou do sorriso da Sónia do Pão de Canela, que ainda se lembra de que o meu galão é gelado e o café sem açúcar (não é verdade. Também são esse sorriso e essa prestabilidade que fazem da Praça das Flores a praça mais bonita do mundo, na categoria pequenas praças).

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Preciso de mudar de telefone e vou a uma pequena loja no metro do Rossio. O senhor, um jovem sikh diz-me "não se preocupe, vai acabar por aprender" quando lhe digo que hesito porque o telefone não tem teclas, é só de toques. Compro-lho imediatamente, claro: não duvidar da inteligência de um cliente é a melhor técnica de vendas que conheço.

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Há uns anos escrevi que a melhor maneira de se viver em Lisboa é ser estrangeiro, e cada vez que cá venho confirmo essa ideia. Não saber quem é o Zé ou o António Costa ou o que havia na Avenida da República antes de haver o que agora há, e poder admirar a cidade como é hoje (e o que nela vivemos, ou não-vivemos, mas isso é outra história), resistente a tudo, mesmo a meia dúzia de Zés e Antónios e aos que se lhes seguirão

16.6.13

Diário de Bordos -Newark, EUA, 15-06-13

Nem tudo é culpa dos "americanos", claro. Pensei que tinha deixado a carteira no filtro de segurança e não deixei, estava no bolso de trás das calças, onde nunca  a ponho; resolvi comer um Philly Steak sem ver que havia um restaurante mexicano a meia dúzia de metros; e - foi aqui que tudo começou - devia ter-me lembrado no Panamá que nunca me deixariam embarcar nos EUA com três garrafas de rum, duas das quais de um litro (espero que a Alfândega portuguesa não leia este post).

Mas tudo o resto é culpa "deles": os trinta dólares que custa pôr as garrafas no porão (e, acabo de ver, não paguei; obrigaram-me a ir fazer um cartão de "crédito" expresso numa máquina - mete-se dinheiro sai um cartão com o valor equivalente - e não mo pediram. Ou seja, agora tenho trinta dólares que não sei para que servirão); a péssima, indescrítivel qualidade do Philly Steak, o pior que jamais comi; o preço aberrante de um Shiraz / Grenache no Vino Volo (aberrante mas apesar disso muito bom, forçoso é reconhecer); a impossibilidade de trocar notas de vinte dólares em notas de cem; e - ocorre-me agora, que já vou com quase uma a caminho das quase duas Margaritas no bucho, a impossibilidade de fumar seja onde for.

A verdade é que nos Estados Unidos tudo corre bem - como na Suíça e na maioria dos países por assim dizer civilizados - enquanto tudo corre bem. Mal um pentelho, um pentelhito pequenito põe os cornos fora do penico está tudo estragado. Friendly American mon cul, para dizer as coisas em várias líguas. Friendly enquanto lhes convém. Depois deixam de ser friendly.

Coisa que de resto não me incomoda particularmente - mas porra, deixem de nos receber como se fôssemos as pessoas que naquele momento faltam para as fazer felizes e cinco minutos depois como aquilo que somos realmente: uma dor no cul.

Enfim, uma quase Margarita a caminho de uma quase segunda, o Economist no saco, a perspectiva de um pequeno almoço em Lisboa, quinze dias de férias... Qué vayan, los americanos.

No Panamá não consegui encontrar o Economist. Se me dissessem que na Lua está à venda ficaria menos surpreendido.

Philly Steak é o equivalente americano de um prego. Quando é bem feito, por exemplo pela minha bem amada Sandra, do Skullduggery (ah Sandra, que saudades, Sandra, que saudades) é melhor do que qualquer prego que tenha comido até agora (enfim, a maioria deles, pelo menos). Quando é péssimo é pior do que tudo e não devia sequer ser mencionado.

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As Margaritas do Caliente Café são tão boas como as da Palapa, em Puerto Vallarta.  Mas isso infelizmente não chega para aconselhar uma vinda ao aeroporto de Newark, contrariamente a Puerto Vallarta, que pode ser visitada mesmo por quem não goste de Margaritas.

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Amanhã faz parte do programa ir buscar a Rolex. Se não consigo controlar o lado da receita, pelo menos que me exceda no da despesa (enfim, podíamos ter aqui uma discussão sobre a semântica na metáfora, mas isso fica para depois. Esta receita fica-me caríssima, e a despesa não me custa nada - pelo menos enquanto não inventarem peagens para bicicletas na Marginal).

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Como tão pouco é culpa dos americanos que eu me tenha esquecido de mudar a hora no tablet e tenha chegado à porta de embarque não cinquenta e sete minutos antes da saída mas três minutos depois. E lá se vai a minha tese por água abaixo. Porta fechada, manga desligada e recuada, bagagens a sair do porão?  Uma breve discussão entre a funcionária da porta e não sei quem (o tema sendo "mas eu disse que tinha o passageiro antes de começarem a descarregar a bagagem" , o que era manifestamente mentira),e eis-me na ponta da manga, cabelos esvoaçando decerto, se não os tivesse cortado, com a face intrépida de um navegador de quinhentos, a porta a ser aberta... e a entrar no avião agora de ar contrito e a pedir desculpa a todas as filas, uma a uma.

Que me tenham deixado entrar no avião compreende-se: as companhias de aviação não gostam de ver a sua classificação de pontualidade sofrer com coisas destas, por muitas precauções que tomem com os horários. Mas ninguém, nem um passageiro teve uma palavra menos cortês, foi desagradável comigo, reclamou.





14.6.13

Cultura

A ausência de cultura é uma aventura tão arriscada quanto a sua presença permanentemente ao nosso lado. Tão atraente.

Viagem, casa

Viajo sem bagagem porque vou para casa? Não. Porque vou buscar a minha casa.

Dia de loucos

Gostar de um dia de loucos faz de quem gosta um louco, ou só alguém que gosta da sua capacidade de se adaptar (e indiferente à opinião alheia)?

Tratado de saber viver para uso das novas gerações

Há duas maneiras de afastar rapidamente uma mulher de nós: dizer-lhe que a amamos mais do que realmente a amamos; ou fazê-la crer que não a amamos tanto quanto realmente a amamos.

O discurso do amor, para ser perene, exige temperança, a mais chata das virtudes; ou verdade, a mais difícil, mais perigosa. A verdade é uma corda bamba da qual é muito fácil cair.

(O título do post vem de uma obra de Raoul Vaneigem que, creio e espero é do conhecimento geral).

13.6.13

Diário de Bordos - Panamá, Panamá, 13-06-2013

Eu tentei. Claro que tentei. Quem não fremiria de prazer só de pensar num evento chamado Mix and Mingle, organizado pelos YEP, Young Expatriates in Panama? A simples perspectiva de poder mix and mingle-me com jovens expatriados no Panamá no Ginger Bar do Waldorf Astoria provocou-me uma descarga de adrenalina difícil de descrever. A espinha; a pele; tudo.

De maneira calcei os recém-adquiridos sapatos Land Rover (uma marca de automóveis todo-o-terreno que também, fiquei agora a saber, faz calçado), enverguei o casaco de linho branco comprado, heroicamente, no Macy's de São Francisco - recheado, naturalmente, de cartões de visita - chamei o meu táxi da noite, Bráulio (que me deve quatro dólares, convem não esquecer) e.

Bráulio não apareceu. Uma história de camiões da qual não percebi nem os pára-choques. Apanhei outro táxi; não sabia onde era o Waldorf Astoria. Fui à recepção do hotel que fica ao lado da marina (e gentilmente me fornece rede a bordo, graças ao booster mega que M. o armador, comprou). "Ah, o hotel novo", exclamou o condutor quando lhe dei a morada. E.

Quando cheguei a coisa estava um pouco morta. Fui recebido com um cocktail de boas vindas do qual a base era Rum Mount Gay. "Nem tudo está perdido", pensei. "Há rum Mount Gay".

Nada estava perdido excepto eu. Note-se: nem over nem underdressed, tema que me massacrou o juízo todo o trajecto de táxi. Nada disso. Estava perdido, só. Cheio de fome, exausto, incapaz de produzir uma única banalidade (não menciono sequer ideias originais, coisa que não tenho nem quando estou underdressed). Exausto, simplesmente. (Isto é um bocadinho uma piada; acho que não conseguiria estar overdressed nem numa reunião de bairro do Casal Ventoso, quanto mais no Waldorf Astoria).

"Comendo isto passa" (é remédio santo, comer). Mas não passou. Nem a vista de uma jovem linda com um cartão em cima do peito esquerdo a dizer Fiorella conseguiu fazer-me ficar. Mais vale perder do que não tentar fornece uma óptima desculpa nestas circunstâncias e depois de comer (de resto bastante agradavelmente, numa pequena tasca ao lado do hotel) fui para a Cinta Costera.

Preciso de andar, por todas as razões e mais uma: gosto, e a bordo não há maneira de o fazer. A substância no sangue; o oxigénio.

A Cinta Costera está cheia de pessoas que se preocupam com isso mai-lo peso, a forma, o físico e essas coisas todas com as quais hoje em dia as pessoas se preocupam. Apesar disso é bonita. Há senhoras que ainda são gordas, outras que já o foram, algumas que nunca o serão, há polícias, casais de brasileiros a andar muito depressa e a falar muito alto, há vendedores ambulantes que vendem sumos ou saladas de frutas, água sem sequer olhar para as pessoas a quem os vendem, há casais de namorados e pelo menos um português de sapatos Land Rover e casaco de linho branco a escrever freneticamente num telefone portátil, não vão estas sublimes ideias ir para onde deviam ir, e a tentar não andar depressa de mais para que o casaco não fique a cheirar mal.

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A parte pedestre da Cinta Costera está separada da rua por um largo relvado com algumas árvores jovens mas que aparam o som dos automóveis - seis faixas para cada lado? - e nos defendem a vista. Do outro lado está o mar, muito espelhado apesar de haver um bocadinho de vento - tem havido, ultimamente.

Vindo do Waldorf Astoria, virando à direita na Cinta Costera e caminhando chega-se ao Casco Antiguo (ou Viejo, às vezes) o meu bairro favorito nesta cidade. Antes passa-se por um porto de pesca, e antes ainda por uma série de pequenos campos de basket. O porto de pesca marca o fim dos arranha-céus e o princípio das casas de dois ou três pisos. Cheira mal, mas não demasiado; pareceu-me bonito, simples, eficaz - até na divisão da cidade, de um lado a ausência de cheiro do outro o cheiro, os prédios altos e os baixos, o hoje e o ontem.

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Não gosto de preconceitos, mas reconheço-lhes a utilidade (são um bocadinho como soutiens, apesar de a comparação não ser das mais elegantes). Ontem escrevia que não queria contratar panamianos; hoje quase contratei uma - sou eu que espero a decsião dela, não ela a minha. Como os soutiens, os preconceitos são muito melhores quando deitados fora. A senhora é uma das excepções que tinha em mente quando ontem falava de excepções. Trabalha no Yacht Club, é sorridente, eficaz e - aspecto importante - cabe no beliche que lhe vamos fazer (não é ela que é grande, é o beliche que é pequeno).

Tem meia dúzia de trâmites a fazer, vem ver o barco e amanhã diz-me sim ou sopas. Gostaria que fosse sim.

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Há pouco falava nas depressões post partum. As minhas (metafóricas, claro) nunca me ocorrem quando o acaso, a sorte ou no melhor dos casos a oportunidade me põem um bebé nos braços. Longe disso (infelizmente, teria tido muitas menos). Vêm-me quando venço uma luta difícil, atinjo um objectivo à custa de esforço, tempo, tenacidade ou estratégia.

Hoje foi um dia desses. Mas.

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De maneira tudo indica que em breve uma espécie de jarra da china partida em mil bocados andará pelas ruas de Lisboa à procura de cola.

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Tudo se paga, nesta vida; e na verdade prefiro pagar em líquido, contra entrega. (Há qualquer coisa de mágico neste termo, líquido, para cash, não há? Premonitório). É o que estou a fazer agora. O preço é elevado, mas com razão. Quando acabar de pagar tudo volta ao normal, espero. Não quero mais dívidas dos que as que já tenho, e muito menos com entidades intangíveis. Com as outras ainda posso negociar, conversar, tentar aplacar; com estas não.

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Hoje é dia de Sto. António. Faltam-me as sardinhas assadas e a minha avó, que o escolheu (enfim, sonhou, mas isso fica para depois) como sócio. Foi graças ao Toino que ela começou a cozinhar e só por isso o santo tem a minha eterna devoção.

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Vim a pé até ao Casco Antiguo. Estou no meu bem-amado restaurante Louvaine, o da música electrónica boa, e do vinho a copo decente. Que bom foi o passeio. Andar a pé vem no terceiro lugar dos prazeres que se podem mencionar: navegar, andar de bicicleta e marchar. Dos outros não falo, apesar de não gostar de preconceitos.

Depressões e depressões

Tanto os homens como as mulheres têm depressões, é um facto conhecido e no fundo banal; menos conhecido é que os homens também sofrem de um tipo particular de depressão, conhecida em certas indústrias pelo seu acrónimo em inglês (PPD) ou, em francês e português, DPP.

Refiro-me, já todos o identificámos, à depressão post partum. Sempre a vi como uma espécie de depressão de sinal contrário, uma depressão positiva, por assim dizer. Adicionando algebricamente uma DPP a uma depressão "normal" (entre aspas porque não sei bem o que é uma depressão normal, a mim parecem-me como as famílias infelizes do outro) devíamos obter uma ausência de  depressão.

Esta teoria necessita, como todas, de uma revisão urgente, de uma confirmação empírica, pesquisas profundas. Só gostaria de não ser eu a cobaia.

12.6.13

Diário de Bordos - Panamá, Panamá, 12-06-2013

" Panamiano não quero, está fora de questão". Foi preciso chegar aos cinquenta e cinco anos - e quase trinta a contratar pessoas - para excluir a identidade e referir-me a um grupo como critério de escolha. Sinal seguro de que a paciência está a diminuir (isso já sabia) e de que aprendi, finalmente, a gerir melhor o tempo.

Procuro um ou uma tripulante e estou aberto a praticamente todas as combinações idade /sexo / nacionalidade / experiência excepto uma que inclua a nacionalidade panamiana. A noção de serviço neste país começou por me espantar; agora faz-me rir. É divertido, a sério. Ouvir uma empregada de um restaurante de vinhos perguntar, algo espantada "mas um vinho estraga-se, se estiver aberto muito tempo?" (num restaurante que se chama Tinto de Verano e se pretende "de vinhos"); dizer bom dia, boa tarde ou boa noite e não ser respondido nem com um olhar;  deixar uma gorjeta completamente inútil em termos práticos (o clube fornece uma lancha gratuita, incluída no preço absurdo que custa) e não se ouvir nem um murmúrio de agradecimento são coisas que agora me fazem rir. Ao princípio - isto é, os três primeiros dias, afinal cheguei há pouco mais de uma semana - espantavam-me.

Hoje já não. Tiram-me simplesmente vontade de perder tempo. Não tive respostas de portugueses, tê-las-ei de franceses, belgas, colombianos ou argentinos. Panamianos não, obrigado.

Isto dito, o país é um paraíso para quem não está com vontade de ser, ou não precisa de ou não é de todo bem educado. A falta de educação é a norma, não a excepção.

Que as há, claro; já encontrei algumas. Mas não me apetece procurá-las. Que venham ter comigo quando sou cliente, não quando tenho clientes.

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As "coisas" - esse conjunto de acções, necessidades, objectivos para as quais não há um termo suficientemente preciso, ou satisfatoriamente vago - estão a avançar a bom ritmo. Bom sendo, como sempre, o melhor sinónimo possível de possível. A continuar assim dentro de três ou quatro dias estarei num avião, a caminho daquilo que um dia sonhei seria a minha casa e hoje é simplesmente o lugar de onde sou.

Há uma diferença muito grande entre o lugar de onde sou e o lugar de onde serei. Talvez seja esta a melhor definição de desenraizado - não quem não tem raízes, mas quem as não tem no lugar certo.

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Descubro - com um certo e inesperado espanto - que a felicidade ou a infelicidade nada têm a ver com as raízes. Volto a Lisboa - uma cidade que adoro e onde passei alguns dos piores e melhores momentos da minha vida - com um indescrítivel prazer. Quero misturar num gigantesco shaker sardinhas assadas, Ler Devagar, queques integrais, vinho a jarro, amigos, amigas, livros, família, amigos outra vez, muito bacalhau assado e pernas de borrego e tudo o que cabe numa cidade que é a minha mas na qual nunca, salvo raros momentos de rara felicidade, vivi, pôr-lhe algum rum, encher com Alexanders no Procópio (ou os do senhor Miguel no Pavilhão), terminar com uma exposição de fotografia da minha fotógrafa favorita, agitar com Piratas, Pernas de Pau, Ginginhas e Pataniscas na Merendinha do Arco, passeios na minha bicicleta Rolex, mais uma livraria ou duas, descer a Bica, subir a calçada da Glória, perder-me em Alfama - nunca lá me encontrei, seja a verdade dita - reclamar contra o Bairro Alto e ir dançar (se se pode chamar dançar ao que faço) no bar do meu irmão preto.

Não é isto a pátria?  Não. É uma cidade, a minha cidade. A pátria ainda estou por descobrir o que seja. Não terei decerto tempo de ir a Mértola, a coisa que para mim mais se aproxima da noção de pátria.

Nasci para viver nas Caraíbas e ir a Lisboa, não para viver em Lisboa e ir às Caraíbas.

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Gosto muito de trabalhar e do trabalho que faço. Gosto de barcos e do mar, de estar no estrangeiro e de ser estrangeiro.  Gosto de não ter raízes e de não sofrer com isso. Mas mais do que tudo gosto de Lisboa, porque para ser estrangeiro em qualquer lugar há que ter um lugar, e o meu é Lisboa.

Animula vagula blandula...

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Reencontro a vida urbana: buzinadelas, engarrafamentos, gritos.  Para gostar completamente de Panamá preciso de encontrar o resto daquilo que faz de uma cidade uma cidade: um bar de jazz, uma boa livraria, uma boa loja de discos (já não se pode dizer discoteca. Por que raio de carga de água boîte desapareceu?).  Se não a cidade fica desequilibrada, como uma vida da qual só metade está a correr bem.

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Sem melancolia não se pode apreciar a vida, mas o excesso de melancolia mata. Contradição que sem melancolia nunca será resolvida, e com ela tão pouco.

Só um corpo, o mar e uma quantidade apreciável de rum a podem resolver. Juntos.

Adultério, palavras

A maneira correcta de reconhecer a qualidade de um adultério é contar-lhe as palavras. Num bom adultério não há palavras.

Geografias, imigrações

Todos os países acolhem a felicidade de braços abertos, mas nenhum a dor.

Espera

Talvez a dor seja o esqueleto
Os ossos aos quais se agarra carne
Que a terra espera.

Talvez tenha perdido a felicidade e a terra dela,
Talvez mas tenham roubado, não sei.

Talvez a dor seja a carne
Que se agarra aos ossos,
Felicidade que a terra espera.

Talvez a terra, a felicidade e a espera
Sejam a carne
E os ossos o que fica.

Talvez. Não sei.
Já me roubaram dor, muitas dores muitas vezes.
Mas nunca ninguém me roubou a espera.
Nem os ossos
Que a terra espera, impaciente.

11.6.13

Perspectiva

Não faças aos outros o que não queres que te façam é um erro grave de perspectiva. Mais correcto é o que for feito aos outros ser-te-á feito.

10.6.13

Longevidade, insucessso

Uma relação que acaba não é forçosamente um falhanço, tal como muitas que continuam estão longe de ser um sucesso.

Uma relação (o que eu começo a detestar esta palavra não tem descrição. Não tarda substituo-a definitivamente por casamento) pode acabar porque evoluiu em amizade, por exemplo; ou em indiferença (mas não em ódio. O ódio de duas pessoas que se amaram é sujo, pouco claro, e os ódios devem ser límpidos).

O que faz de um casamento um falhanço é na sua origem estar um equívoco, e esse equívoco não ser detectado a tempo.

Ou muitos - quantos mais, maior será o falhanço. E mais merecido, mais justo.

9.6.13

Paciência

Não é a hipocrisia, mas sim a paciência o cimento das relações sociais, profissionais e pessoais. É impossível sobreviver num grupo - seja ele de que tipo for - com o stock de paciência a zero.

Chumbei

Sendo as coisas o que são,
como te atreves, Toino,
a fazê-las tão leves que até 
o vento e o tempo lhes chamam um pão.

Escrever e o resto

A escrita tem uma pele. Mas não tem mamas.

8.6.13

Injustiças

É tão fácil escrever mal, e difícil bem...

Os trogloditas, a natureza e o vazio

Sou como a natureza, tenho horror ao vazio.

(Tántalo Rooftop bar, um lugar magnífico se estivesse vazio).

(E os uniformes, os uniformes. Como se consegue ser tão igual estando vestido tão diferentemente?)

Diário de Bordos - Cidade do Panamá, Panamá, 08-06-2013

Comi muito bem em São Francisco, mas infelizmente é uma experiência que não se repete nos restaurantes "americanos" pelos quais vou passando. O do Balboa Yacht Club, por exemplo. Não consigo perceber por que raio de carga de água acham necessário pôr queijo em praticamente tudo o que fazem. Mau queijo em cima de um péssimo chili serve para quê? Se o chili fosse bom e o queijo também a pergunta continuaria válida, claro. E em todas as combinações possíveis, mau ou bom queijo, bom ou mau chili.

Talvez o bom e o mau se anulem, ou misturem, ou amenizem mutuamente na vida, no amor ou no trabalho; mas na cozinha não, definitivamente.

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A minha metamorfose continua. Nunca será completa, nunca serei um terráqueo. Mas tão pouco serei um "marinheiro que perdeu as graças do mar". Espero, pelo menos.

Olho para a frente e vejo que vou dedicar uma grande parte do meu tempo a uma tarefa muito borgiana: reconstituir as minhas bibliotecas. Todas, desde a adolescência. Projecto que me entusiasma tanto como há uns tempos me entusiasmaria uma proposta de viagem de três ou quatro mil milhas.

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Levei-te a ver o fogo e queimei-me. Uma queimadura profunda,  daquelas que deixam marcas muito depois de o fogo se apagar.

O fogo não se apaga, nunca. Quando muito transforma-se em brasas; e em carvão, para acender outros fogos.

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Quando estou no mar penso frequentemente que se estivesse a duas milhas ou dez de onde estou veria a mesma coisa que vejo agora.  Na cidade não: olho para as torres da "cidade nova" (entre aspas porque não sei se é assim que se chama) e sei que a paisagem seria diferente, tal como eu: não gostaria de estar ali; no mar, ser-me-ia totalmente indiferente, estar aqui ou a dez milhas (enfim, nem sempre, mas isto não é um tratado de meteorologia).

No mar a clivagem é imediata, absoluta: há o barco e o não-barco; em terra o espaço muda a cada rua, a cada quarteirão. E nós com ele: não somos os mesmos no Bairro Alto ou nas Avenidas Novas, no Cais do Sodré ou na Avenida da Liberdade, em Lisboa ou em Nova Iorque.

Acabo de fazer uma viagem de pouco mais de três mil milhas; estive em seis países, oito portos. Mas na verdade o meu país não mudou, o meu porto é o mesmo: o mar e uma embarcação de vela chamada ARCTIC FRONT, quarenta e quatro pés por treze de aço e noventa metros quadrados de dacron.  A metamorfose vai ser lenta, muito lenta.

Mas a perspectiva de aterrar em Panamá alegra-me. Parece-me uma daquelas cidades feitas por e para desenraízados: entre dois oceanos, dois continentes (ou meios-continentes, para os preciosistas), dois hemisférios, duas civilizações (que não se misturam, atracção suplementar), duas línguas, dois mundos.

Não deixarei de ser um desenraízado, mas pelo menos estarei num país feito para isso.

Cabeceira, camisas e eternidade

Se eu tivesse uma mesa de cabeceira um dos livros que lá estaria (esteve, muito tempo, quando tinha) é o Dictionnaire Khazar, de Milorad Pavic.

"Personne ne croît un homme nu, même s'il dit qu'il a beaucoup de robes".

"Le temps n'est que la partie de l'étérnité qui retarde".

Diário de Bordos - Panamá City, Panamá, 07-06-2013

Sou um homem fundamentalmente fiel (ou então com pouca imaginação, uma das razões - mas de longe não a única - da fidelidade). Cada vez me convenço mais de que a falta de imaginação - e a fidelidade - têm inúmeras e indescritíveis vantagens. Hoje, por exemplo, aventurei-me para fora da minha zona, o equivalente (para melhor) do Bairro Alto em Panamá.

Fui à Trump Tower, que fica na zona nova, arranha-ceusada da cidade. Não é de todo diferente do que eu esperava, e esperava muito pouco. Trump é Trump, há sons que não enganam. Tive que fugir dali como se estivesse num centro comercial.

A parte boa da noite começou aí. Com os meus calções, a t-shirt verde que dantes era a da esperança e hoje é apenas a t-shirt verde que comprei no centro das tartarugas de Bequia foi praticamente impossível fazer parar um táxi - são selectivos, os táxis em Panamá: ou não param de todo ou param e quando lhes dizemos para onde vamos dizem simples, honesta e francamente que não e vão-se embora, sem mais -. Acabei num supermercado aberto,  ao que eles dizem (se for como o de Brighton não quer dizer nada) vinte e quatro horas por dia. Os talvez primeiros quatro carros a quem perguntei se estavam livres disseram que não; com o quinto tentei uma abordagem diferente e perguntei quanto me cobraria para me levar a casa, ao Casco Viejo. "Seriam dez dólares. Mas não o posso levar, estou à espera de alguém".

Aqui já há um sinal. A maré estava a mudar. O senhor explicou-me porque não me podia levar (e pouco depois confirmei que tinha dito a verdade). Enfim, cortando tudo o que pode e deve ser cortado: encontrei um taxista que me levou ao Casco Viejo por três dólares três. Continuando a minha veia exploratória - a qual não tem, evidentemente, nada a ver com a infidelidade - descobri um pequeno restaurante chamado Lovaina, que é exactamente aquilo de que eu preciso numa cidade que não conheço: pequeno, barato, bom, e (no fim mas não em último) com excelente música electrónica.

Não é o Swayzak, tant s'en faut; mas é boa, e vai bem com o cansaço e o resto.

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Estou cansado, exausto, esgotado. Que bom seria, se o resto fosse isso. Mas não é. O resto é a minha outra casa, à qual regresso como o filho pródigo após alguns anos de ausência - mas, ao contrário dele, com vontade de de lá sair o mais depressa possível -.

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A vantagem das cidades grandes é terem zonas das quais não gostamos.

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Amanhã o programa é pouco aliciante: comprar sapatos - já expliquei a Alexis, o taxista pelo qual Dios se fez substituir que não posso ir a centros comerciais (salvo raras e Romeo y Julieta excepções) - mudar de operador de telefone celular (o que tenho agora bombardeia-me com mensagens promocionais) e trabalhar.

O trabalho é como o amor: quando é demasiado farta, enjoa, cansa. Por muito que se ame o ser amado, ou o trabalho.

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Hoje tentei comprar um cigarro avulso; não vendem, só aos maços. Se os governos quisessem realmente que se fumasse menos a venda de cigarros avulso seria obrigatória. Consegui despachar alguns rapidamente: dei três a um arrumador de automóveis que me pediu um. Pode ser que diga aos colegas. Se fosse em Antígua ter-lhe-ia dado o maço; mas em Antìgua não há arrumadores de automóveis, e  eu não fumava.

6.6.13

Correcção

Já não quero casar-me com a vizinha do lado; basta-me alguém que esteja a menos de quatro fusos horários de mim.

Incêndios

Um verbo, um hífen, dois incêndios de braço dado.

Brinquedos

Até há pouco tempo não sabia o que era a idade. Nem a minha nem a de outrém. Era um assunto que me interessava pouco e por isso não lhe ligava muito. Hoje sei. Mas é um brinquedo demasiado recente, ainda não sei brincar com ele.

Serviço, sorrisos

Os panamenhos têm uma curiosa noção de serviço. Mas enfim, mais vale ser não-servido com um sorriso do que servido com um não-sorriso.

Pelo menos por agora.

As aparências mentam

Para uma pessoa como eu preocupada com a saúde as aparências são importantes (também me preocupo com as aparências, claro).  É por isso que gosto dos Mojitos do Rana Dorada: parecem um ligeiro - mas grande - sumo de menta. E mentam, muito.

5.6.13

Ser, susceptibilidades

Não se deve ofender a Virgem, nem os circunsisos, muito menos os incircunsisos: santos e santas estão fora de alcance, é intuitivo. Ser é não ofender, pobres os tempos.

Uma senhora jovem (aqui ou aqui) definiu isto tudo muito bem: "?oder". Curioso como um ponto de interrogação bem colocado pode definir mais coisas do que muitos de exclamação.

Equivalências

Agarra-me de cinco em cinco minutos equivale a larga-me de seis em seis meses.

Cegueira, surdez

O amor é cego; a sua ausência surda.

Confusão nas bandas

Tarzan enganou-se de banda desenhada e deu por ele com Olívia Palito a agarrar-se-lhe à cintura com unhas, dentes, mãos, cabelos e mais tudo o que nela podia ser preênsil. "Agarra-me, Tarzan,  agarra-me", dizia-lhe ela de dois em dois minutos, ou de dois em dois ramos (o que viesse primeiro).

Tarzan fartou-se de a ouvir, claro. "Agarra-me, agarra-me" não é a mais bonita das declarações de amor e de qualquer forma ouvir sempre a mesma coisa cansa, até um surdo o reconhece. Largou-a, mas desequilibrou-se e caíu.  Tarzan no chão é como Popeye em terra.

Falta Jane. Ninguém se lembra dela, coitada. Faz strip-teases na selva, para chimpazés (que a acham exótica) e gorilas (que não pensam nada porque têm uma pila demasiado pequena para pensar).

Foi uma confusão na cartoonlândia. Jane (coitada, ninguém a manda ser loira) não suporta o cheiro do cachimbo de Popeye, que entretanto se lembrou dela; Olívia largou Tarzan porque o verde não é, definitivamente, a sua cor (e se cansou de dizer "Agarra-me").

Lá fora a vida corre. Fritz the Cat tenta comê-la e apercebe-se, pela primeira vez em muitos anos, que ela se lhe escapa. Chama Mandrake, mas este quando chegou tinha a cartola gasta, já se lhe viam os coelhos todos. Ninguém o levou a sério.

Alguém se lembrou de chamar Andy Capp, mas estava demasiado ocupado a tentar distinguir a lua do sol. Barbarella masturbava-se a ler a Vogue; alguém, já não sei quem, tocava uma sinfonia de Mahler; alguém pensou na Mafalda, mas achou-a demasiado jovem para este filme.

Faltam alguns miúdos, um marinheiro maltês, outro que diz "todas putas, excepto a mamã" e por aí fora até a garrafa de vinho se esgotar.

Tudo se esgota, até o Roger Rabbit.


Saltos

Qualquer que seja o ponto de vista a partir do qual se analise o problema é mais fácil, mais aceitável saltar de coração em coração do que de cama em cama.  De uma perspectiva pessoal porque o amor é um cobertor mágico que cobre tudo o que fazemos com as cores diáfanas, puras e inquestionáveis do sentimento; socialmente porque não existe o equivalente emocional da traição carnal. A sensualidade é um pecado, o amor uma virtude, ou uma fatalidade.

4.6.13

Civilização, liberdade et al.

O Panamá não é um país completamente civilizado: não posso andar no lugar da frente dos táxis sem o cinto de segurança. "A multa é de setenta e cinco dólares", dizem-me os chauffeurs. "E quem paga é o cliente", acrescentam.

Mas é muito mais civilizado do que qualquer outro nessa Europa pela qual me diluo em saudades, ou por essa desilusão que foram os Estados Unidos. Aqui pelo menos posso fumar sentado a uma mesa.

Via dolorosa

Os restaurantes deviam todos ser assim: fazer-nos pensar que podíamos ser amigos de todos os outros clientes, se por acaso os conhecêssemos.

É o caso do restaurante Tinto de Verano, no Casco Viejo, um quarteirão de Panamá que se poderia confundir com o Bairro Alto, se estivesse cheio de gente na rua, cheirasse a mijo e tivesse música aos berros porta sim porta sim (verdade pode ser dita, tinha a música um bocadinho alta de mais quando cheguei; mas como era o único cliente baixaram-na. Agora há mais gente e subiu outra vez, mas pouco). É um restaurante de tapas, e as duas que provei estavam óptimas.

Fica na calle Otava, e merece uma visita. Mesmo que não estejam a morrer de saudades de Palma.

Não muito longe fica o bar Viejo Havana, muito bonito, antigo, com excelente música e -  Allah u Aqbar - deixam-me fumar o Cohiba (ontem foi um Romeo y Julieta, de que gosto muito mais) cá dentro. Acho detestável, esta coisa de nos mandarem fumar para  a rua, mesmo que estejamos a fumar um charuto.

O bar Viejo Havana é o que a Bodeguita foi, antes de se transformar na Bodeguita.

Felicidade, vida

Que monótona seria a felicidade, se não existisse a vida.

Respirar, viver

Podia dizer-te que preciso de ti para muitas coisas: ver, sentir, pensar, imaginar, sonhar, dormir.

Não seria verdade: preciso de ti para respirar. Sem ti, a vida não passa disso mesmo: é a vida.

Vinho - Gran Tarapacá Reserva 2011 Carmenère

A quantidade de coisas às quais não resisto é enorme, incomensurável. Um bom Carmenère é uma delas.

O Gran Tarapacá Reserva 2011 começa pela cor, um vermelho (que as senhoras da linha me perdoem) profundo, denso; continua pelo nariz, que não tem bananas nem anonas; e acaba no resto: óptimo ataque, longo fim de boca, a madeira presente mas subtil (se o fosse um bocadinho mais não perdia nada, mas enfim, não se pode ter tudo e muito menos a vinte e dois dólares a garrafa num restaurante - ao qual já lá vamos).

Panamá, Europa

 O sítio mais perto da Europa onde estive desde que saí da Martinique.

(Que esse dia seja maldito para sempre).

3.6.13

Movimento, civilização

Antigamente chamava-se inércia àquilo a que hoje se chama quantidade de movimento. Devia criar-se um neologismo semelhante para civilização. Quantidade de civilização. Medido em mojitos sem açúcar e não em metros por segundo. O do Rana Dorada, em Panamá City tem uma inércia fantástica; marginalmente superior à do bar Viejo Havana, que é contudo bastante melhor (o bar, não o mojito).

Calor

É preciso começar pelo calor, pelo envolvente calor. Como se a vida nos aconchegasse um cobertor numa noite gelada.

Diário de Bordos - Balboa, Panamá, 03-06-2013

É impossível chegar  a um clube náutico sem ficar com uma impressão de déjà vu; todos iguais (ou pelo menos dividem-se por poucas categorias). Nada mais errado. Na verdade são todos diferentes, e alguns são mais diferentes do que os outros. O Balboa Yacht Club faz parte desta categoria. Não tem pontões, tem bóias (uma solução que sugeri há meia dúzia de unidades de tempo para o Seixal, não consigo impedir-me de o pensar em voz baixa); mas, sobretudo, está situado à saída do Canal do Panamá. Escrevo e vejo passar um fluxo de navios, de todas as formas e feitios, que chegam do Atlântico; em breve começarão a passar os que para lá vão.

(Passei por aqui há trinta e sete anos.)

A luz é soberba, filtrada pela humidade e pelas árvores; parece que as embarcações estão suspensas nela e não na água.

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A chegada a Panamá foi das mais bonitas da minha vida. N., o tripulante que veio comigo de Golfito, conhece o porto como as mãos dele, trabalhou aqui anos e anos. Pela primeira vez em muito tempo não tive de fazer nada se não supervisionar  o que ele ia fazendo; e concentrar-me na beleza da chegada, as luzes da cidade, os inúmeros navios fundeados, o futuro (um país estrangeiro: lá eles fazem as coisas de uma forma diferente).

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Morro de vontade de ir jantar à cidade (cidade deve ser pronunciado lentamente, letra a letra, como o amante que há muito tempo não está com o ser amado e lhe percorre a pele como se acabasse de descobrir o poder de uma carícia, o poder de um uma mão). Mas estou exausto, ainda. Dois dias e meio a dois não é fácil. Pergunto-me como fazia, quando fazia semanas e semanas assim.

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O chauffeur de táxi que hoje me acompanhou nas demarches administrativas - e tudo indica que vai ser o meu chauffeur de táxi doravante, o homem é realmente útil - chama-se Dios. Acho isto um bom prenúncio. Por exemplo: amanhã vou com Dios ver estaleiros navais.

Dios sabe onde se vendem cartas náuticas (na verdade, sabe tudo o que respeita a iates - não tive razões para o testar noutras áreas). E não é caro. Um dia poderei dizer "Cheguei ao Panamá e encontrei Dios".