30.5.13

Velhos amigos chamam por mim

"The traveler has to knock at every alien door to come to his own."
Rabindranath Tagore

"Etrange l'homme sans rivage, près de la femme, riveraine."

"S’en aller ! S’en aller ! Paroles de vivant !"
Saint-John Perse

"C'est en faisant semblant d'être écrivain qu'on le devient vraiment."
J.M.G. Le Clézio

"Whether at Naishapur or Babylon,
Whether the Cup with sweet or bitter run,
The Wine of Life keeps oozing drop by drop,
The Leaves of Life keep falling one by one. "
Omar Khayyam

"All that is from the gods is full of Providence."

"It is a shame for the soul to be first to give way in this life, when thy body does not give way."
Marco Aurélio

"Rien n'est plus lent que la véritable naissance d'un homme."
"L'amour est un châtiment. Nous sommes punis de n'avoir pas pu rester seuls."
Marguerite Yourcenar

Liberdade

A liberdade absoluta não existe: um homem livre é prisioneiro da sua liberdade.

Largar, chegar

Largo amanhã.  Se tudo correr bem chego na segunda-feira. Uma viagem que começa com o dia de chegada sendo mais importante do que o da largada é rara.

Piedade

Não se deve bater em ninguém; mas se tem de ser, deve bater-se muito forte. Por piedade.

A chuva e a beleza

Não gosto de chuva; em Golfito chove todos os dias, mas apesar disso acho o lugar de uma beleza de tirar o fôlego. A verdadeira beleza de um local mede-se nos dias de chuva, cinzentos e tristes.

Este princípio também se aplica às pessoas.

Fusos horários

Parece-me por vezes que não há melhor metáfora para a vida do que as vidas que se vivem em fusos horários diferentes.

Muito diferentes, quero dizer. Duas ou três horas não conta.

Diário de bordos - Golfito, Costa Rica, 30-05-2013

Hoje começa chover mais cedo do que o habitual. E mais forte, a primeira bátega foi quase "africana". Fui comprar os mantimentos para a viagem cedo de manhã, em vez de à tarde como tinha pensado. Mesmo a tempo: a chuva começou quando eu estava a chegar ao portão da marina.

Não sou muito dado a solipsismos nem a poderes sobrenaturais, mas não consegui impedir-me de pensar que se calhar a chuva  veio porque eu fui fazer compras mais cedo. Preparar-nos para o que aí vem pode ajudar o que aí vem a acontecer.

........
A marina Terra e Mar consiste numa casota flutuante (à qual estou atracado) ligada à terra por um portaló. Em terra há outra construção, sobre palafitas. A "marina" (fica melhor com aspas) é a mais barata, mais artesanal, mais tudo aquilo que se costuma designar por "familiar" das quatro ou cinco de Golfito. É propriedade de um casal que navegou muito antes de parar aqui.

Os meus sentimentos a respeito da marina são ambíguos: por um lado gosto do espírito da casa; por outro, o senhor fala muito, muito, muito. E não olha para as pessoas com quem está a falar, desvia o olhar meio para baixo e para a frente, como se estivesse à procura de um anão.

Enfim, é bastante prestável, e se conseguirmos cortar na raiz (depois é tarde) as suas tentativas de entabular conversa o lugar revela-se agradável, sem a pressão de ter de consumir seja o que for, ao contrário das outras.

........
A Costa Rica é um país caro. Por vezes pergunto-me como fazem os locais para viver. Hoje no supermercado comentei isso com a senhora da caixa e fiquei mais ou menos estarrecido quando percebi que as minhas compras para cinco ou seis dias de mar custaram quase metade do salário mensal da senhora. E não comprei caviar, tão longe disso como se pode estar na pirâmide de custos alimentares.

Piada privada

Se pudesse voltar atrás no tempo mataria o senhor Graham Bell. Ou enfim, pelo menos deixá-lo-ia em estado de não poder inventar fosse o que fosse.

Mutantes

No que toca à morte de Deus Nietzsche enganou-se de várias formas, infelizmente. Deus está vivinho da costa e fresco como uma sardinha; e quem deixou de acreditar nele transferiu a crença para outras entidades - um partido político, um clube de futebol, a igualdade, a escolha é vasta.

Talvez a necessidade de fé esteja, como alguém recentemente afirmou, inscrita no nosso código genético. E as pessoas incapazes de se filiarem em clubes, partidos, grupos ou o que quer que seja, cépticos por natureza, independentes, agregários sejam mutantes.

O violino do João

As novas gerações perderam o contacto com o violino do João. De certa forma compreende-se: na minha já era ténue. Nunca vi o filme, por exemplo. Só o conheço porque o meu pai, cada vez que via uma sombra de auto-comiseração aparecer na minha conversa o invocava de imediato.

Essa lacuna na cultura geral das novas gerações é de lamentar. Como ferramenta pedagógica, o apelo ao violino do João era imbatível.

Palavras, encantações

O símbolo do mal do nosso tempo é Hitler, não é Staline, Mao ou mesmo, estranhamente, Pol Pot; apesar de cada um deles ter morto mais gente do que o austríaco (com a excepção deste último, o qual apesar dessa pobre performance detem o invejável recorde de ter conseguido matar vinte e cinco por cento, um quarto, da população do seu país).

Isto deve-se ao poder encantatório da palavra. Por uma razão que não descortino, o nosso tempo é mais sensível ao que se diz do que ao que se faz. Se eu te matar "para teu bem" sou perdoado; se eu te matar porque não gosto da cor dos teus cabelos sou um facínora. Que o resultado para a vítima seja exactamente o mesmo é coisa que deixa uma grande parte dos nossos contemporâneos de mármore.

Enfim, talvez não seja de hoje. Ou seja uma manifestação tardia da frase de abertura de um livro muito conhecido, que diz "Ao princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus".

.........
Outra palavra encantatória, com poderes mágicos é "conscientemente". Dei-te um pontapé nos tomates, mas não o fiz conscientemente, portanto não sou culpado de nada.

Esta é mais recente, claro. Antes de Freud, um pontapé nos tomates era um pontapé nos tomates; hoje, para o ser, tem de ter sido dado conscientemente. O inconsciente não magoa.

29.5.13

Chuva

Qual será o contraponto urbano de  rain forest? Rain city? Isto não é uma cidade, sequer. É um buraco. Rain hole?

Diário de Bordos - Golfito, Costa Rica, 29-05-2013

Volto para bordo. Espera-me o pão que hoje fiz, o mau cheiro dos tubos que não mudei (por causa da chuva, poderosíssima chuva), a certeza de que largo na sexta-feira. Enfim, na medida em que há certezas nesta vida, que é uma medida curta, muito curta.

N. aceita vir comigo por um preço razoável. Pareceu-me boa pessoa e competente; mas isso só o saberei na sexta-feira.

Por agora sei que quero chegar ao Panamá, pôr o bote no estaleiro e começar a trabalhar para o pôr a trabalhar o mais depressa possível. Do resto tratarei depois: amanhã é uma sequência de hojes, e cada hoje é muito curto, muito breve, um relâmpago.

Nós

Medimos as distâncias em dias, o nosso jardim é azul, a nossa casa é onde não estamos, a noite é a ausência de luz e o dia ausência de estrelas, pouco sabemos do que amanhã será feito. Não sabemos o que é estar, mas sabemos o que é não estar. Interessamo-nos pouco pelo nome das coisas, e muito pelas coisas; as pessoas valem para nós o que são, e não o que pensam, ou os outros julgam que são. Sem nós o mundo não seria o que é, mas não sabe quem somos.

Vivemos num "planeta paralelo". Somos nós.

Chuva, rum, trabalho

Chove de tal maneira que não dá nem para ir ao clube do lado beber um rum, quanto mais comprar tubos.

Pão

Gosto muito de fazer pão; desta vez tive sorte, em S. Francisco encontrei uma farinha integral que faz um excelente, saboroso, firme.

Começo por misturar quatro porções de farinha com a respectiva quantidade de levedura, um pouco de sal (não sei quanto, mas decerto mais do que a legislação portuguesa autoriza, infelizmente) e um pouco de azeite. Depois amasso isto tudo com uma porção de água, deixo levedar (aqui é muito rápido, em meia hora está pronto para ir ao forno).

O forno que tenho a bordo não presta para nada, mas enfim, lá me vou ajeitando. De resto, a melhor parte de fazer pão é amassá-lo, não é esperar que o fogão se decida a entregar-no-lo pronto e com um mínimo de queimaduras (tanto no pão como em nós).

A melhor maneira de amassar um pão é pensar numa pessoa que gostássemos de amar e odiemos; ou, inversamente, uma que tentemos odiar e amemos. A alternância de raiva e ternura, amor e ódio faz o pão mais tenro, mais saboroso, atraente. Como a vida, de resto.

Sophie

Sophie tinha horror à solidão. O seu lema era "mais vale dois na cama do que um a voar"; nunca trocava de namorado sem ter o próximo já amarrado, deitado e fodido. "É mais seguro assim, compreendes?" perguntava-me. "Detesto voltar para casa e não saber o que vou comer."

Diário de Bordos - Quepos, Costa Rica, 28-05-2013

Hoje comprei uma tartaruga. De pedra, pequenina, um modelo "artesanal" que é feito em St. Lucia, se não me engano. Tenho muitas (todas diferentes, excepto esta. É muito prática, posso andar com ela para todo o lado - até a perder, claro). Destas tenho duas, mas não sei onde está a outra. Provavelmente no Estoril, com o resto das minhas coisas. Gosto muito de tartarugas, são o meu animal fetiche, o meu totem, o meu guia espiritual. A carapaça, por exemplo. A lentidão. A longevidade. Em Bequia há um centro que trata de tartarugas bebés e as liberta quando têm quatro anos. Foi lá que comprei a minha t-shirt verde, aquela que designo por t-shirt da esperança.

As probabilidades de sobrevivência das tartarugas quando saem do centro são muito baixas, mas algumas sobrevivem. Como a minha t-shirt, eu e a maior parte das pessoas. Acaba-se sempre por sobreviver.

Também gosto de elefantes. Em terra são os meus animais favoritos. Por causa da pele, da miopia, da força. Não sei se já viram elefantes de muito perto. Eu já; muitas vezes e de muito muito perto. É uma experiência única, sentir a vida, a força, a energia e pensar que ao mais pequeno grão de areia naquela engrenagem a vida, a força e energia se voltarão contra nós e nos espezinharão como nós esborrachamos uma barata - mas com menos desgosto, menos sentimento.

No Parque Nacional Manuel António não há elefantes, e as tartarugas não se vêem, estão demasiado longe. Só há árvores e macacos e aves, muitas aves, e muitos outros animais para além dos macacos. Mas são pequenos. As árvores não: são grandes, enormes, de todas as formas e feitios. Não sou muito sensível à flora, percebo pouco daquilo, cansa-me.

Mas apesar de tudo isso, apesar dos animais pequenos, daquelas árvores todas adorei o Parque. É de uma beleza que se sobrepõe a tudo o que possamos pensar antes. É fácil gostar daquilo que corresponde aos nossos gostos, aos nossos preconceitos. Muito mais difícil - e fascinante - é quando nos apaixonamos por alguém, ou coisa, ou lugar que não encaixa nas ideias feitas.

28.5.13

Tremor de terra

Ontem houve um tremor de terra aqui. Como foi verdadeiro e eu ando demasiado ocupado com os meus sismos metafóricos ia-me esquecendo de o notar. A sensação foi a mesma que tive na Grécia: parece que de repente estamos numa carruagem de metro. É excitante, mas muito breve.

27.5.13

Escrever, a.

Des fois j'aimerais écrire en français, cette langue "sophistiquée"; o en Español, un idioma bruto, violento, en el que mismo una palabra de amor suena como una batalla; or in English, a language in which things are non-said, rather than said.  No fundo bastar-me-ia escrever, coisa que não sei fazer porque perco demasiado tempo a.

Tempo, ausência

O tempo é a ausência; é uma forma de medir a ausência. Com a presença não há tempo, só há presente.

Diário de Bordos - Quepos, Costa Rica, 26-05-2013

Chove outra vez, desalmadamente. Chove todos os dias, mas só à tarde. Enfim, normalmente. A regra tem excepções.  Os meus sapatos Sperry, de lona cinzenta e bonita estão outra vez encharcados. Acho que nas últimas duas semanas terão estado secos dois dias, se tanto. Pouco me importa. São uma merda, nunca é de mais repeti-lo; as sandálias também, já estão a desfazer-se, apesar de mal as ter utilizado, seis meses se tanto. Ou então, hipótese tentadora, a marca Sperry não é a bosta que eu penso e sou eu que utilizo o calçado nos lugares errados: ruas, passeios, trilhos de montanha, bermas de estrada; e as coisas são feitas para conveses em teca, camarotes alcatifados, pontões de madeira, clubhouses em parquet. Não sei. Pouco me interessa. No Panamá vou ter de comprar um par de sapatos; e cortar o cabelo, provavelmente. Talvez um maricas mo diga subrepticiamente, como o de S. Francisco. Talvez seja eu que me farte de olhar para o espelho e ver uma espécie de aura dourada, eu que de santo tenho muito pouco e de rico ainda menos.

Chove muito, em Quepos, mas não é uma chuva de qualidade, como a do Burundi ou a do leste do Zaire. Aqui tem mais a ver com a quantidade, com a persistência. Não é como se estivessem a despejar jarros de água dois dias seguidos. Na África Central há dias em que a chuva não é reconhecível, não é chuva, mas outra coisa. Jarros, cataratas, cuspo (de Deus, apresso-me a esclarecer). Aqui um gajo vê logo que está a chover.

Estou outra vez no Gran Escape. Onde ir, com esta chuva? Fica ao lado do hotel merdoso onde estou, só se ouve inglês, e, pela primeira vez, hoje comi mal. Bem feita. Estou - também pela primeira vez - a beber Gin Tonic, que é uma bebida de coisos (quando há Bitter Angustura é de coisas, mas aqui não há).  O gin é uma bebida neutra. Há bebidas mágicas: o mezcal e o absinto; divinas: o vinho, rum, whisky; banais: as outras todas menos a vodka, que é maléfica e o gin, neutro. Transparente. Coiso.

Estou pronto para largar. Só me falta encontrar tripulantes. A próxima vez que tiver um piloto automático vou chamar-lhe Deus, assim mesmo, com maiúscula e tudo. Deus. Com um piloto ir-me-ia embora já. Sem, tenho de esperar. A auséncia de um piloto automático é diabólica. Todas as ausências sâo diabólicas, agora que penso nisso. Todas. As boas e as más.

(Digo isto porque no Panamá vou ter um piloto. Vou encontrar Deus.)

Às vezes penso que devia ser proibido gostar tanto do que se faz como eu gosto do que faço. É diabólico (sabor do dia), maligno: esquecemo-nos dos fundamentos da nossa civilização, da expulsão do paraíso, do vale de lágrimas, da via dolorosa, dessas coisas todas que fizeram de nós o que somos: uma civilização que sabe que a dor existe, e que o dever de todo o ser humano é esquecê-lo. Eu não preciso de o esquecer. Preciso de o lembrar.

Não tarda estou no mar outra vez; não tarda estarei numa grande cidade; não tarda terei um bote em condições. Aquela história dos livros, discos, televisão e sala tem de ser melhor explicada, trocadinha por miúdos. Como a da tristeza, de resto.

26.5.13

Rose

A ver, minha querida Rose, se nos entendemos. Dizes-me que perdeste metade da tua vida à procura do verdadeiro amor; e que quando o encontraste o deixaste fugir, porque não o reconheceste. Acontece muitas vezes, Rose, não devias preocupar-te tanto com isso. Até tem um nome - azar, infortúnio, não fazes ideia, Rose, da quantidade de amores que se perderam por causa do azar. Mais, aposto, dos que o que se encontraram por causa da sorte - .

Procura o falso amor, se quiseres. É mais fácil de encontrar e menos volátil; ou aprende o que é o verdadeiro amor; mas essa via parece-me arriscada. Verdadeiros amores há-os às dúzias e são todos diferentes. Mas, sobretudo, Rose, percebe: eu não tenho amor para ti, nem do verdadeiro nem do falso, nem do de à flor de pele ou daquele que vem do fundo do ventre e não sai de lá.

Nada a fazer, Rose, as coisas são como são, digo-to muitas vezes, vezes sem conta, e querer que elas sejam diferentes é infantilidade, sonho de revolucionário ou coisa de corno triste.

As coisas, as pessoas, os lugares. Não vale a pena pensares que um avião vai resolver a tua dor, não vai. Faz parte de ti, a dor, como essa pele de que tanto gosto e pela qual faria tudo menos apaixonar-me ou curar-te. São caminhos lentos, subterrâneos, tectónicos e enganas-te se pensares que um sorriso, uma carícia ou uma noite a ver estrelas os fariam mudar. Não olhes para mim assim, Rose, sabes que gosto da tua voz de saxofone, da tua pele de mesa de bilhar, dos teus olhos de rum Mount Gay, das tuas mãos de mar. Gosto de ti, muito e para sempre, mas não poderia, mesmo que o quisesse, Rose, mesmo que o quisesse, apagar-te essa dor.

Não mudas o passado, não aprenderás o que é o verdadeiro amor e não encontrarás o falso, Rose. Podes, se quiseres, passar a noite comigo, podes mesmo passar o resto da vida. Mas não me fales em amor, Rose, não me fales em ir embora para as Marquesas ou para Amsterdam cantar nos bares, não me fales em corrigir o que foi, aprender, mudar ou no cheiro da terra depois da chuva.

Não me fales de todo, Rose, limita-te a amar-me como tu sabes, começa pelos cabelos e pelos dedos dos pés ao mesmo tempo,  sabes para que servem esses intermináveis braços, não sabes, Rose? E a língua no meio, Rose, algures entre os pés e os cabelos; ama-me Rose, não me fales, estou farto de palavras, farto de sonhos, projectos, ideais ou planos. O meu futuro vai até ao teu próximo orgasmo, se quiseres; ou até ao meu, se puderes.

As palavras queimam, Rose, e eu sou uma cicatriz sem fim e sem princípio, estou-me nas tintas para a tua aprendizagem, para a tua incapacidade de reter o verdadeiro amor. Talvez não haja verdadeiro amor, já pensaste nisso, Rose? Talvez aquilo a que chamas verdadeiro amor e te fugiu por entre os dedos não passasse de um ersatz de amor, talvez todo o amor seja um ersatz de si mesmo e nós andemos aqui todos enganados, uns à procura de uma coisa outros de outra e no fundo nem uns nem outros sabem bem o que procuram pela razão, Rose, simples de que ela não existe.

Que se foda o amor, Rose; fode-me, fode quem quiseres, podes até foder-te a ti própria se quiseres. Mas não me peças mais do que eu posso dar-te: uma pila, aqui e agora; e um sorriso, amanhã de manhã. Talvez haja muitos amanhãs de manhã, e muitos sorrisos. Mas isso, Rose, só o saberemos cada noite, depois de e antes de. Uma a uma, noite a noite, manhã a manhã, sorriso a sorriso, bom dia a bom dia, olhar a olhar.

Não me peças o sol quando eu nem uma vela te posso dar; não me peças o vento, não tenho nem um sopro; não me peças a alma, nada mais tenho do que mãos, uma boca e uma pila. É o que sou, Rose, e é tudo o que sou.

E é muito mais do que devia ser.

Diário de bordos - Quepos, Costa Rica, 26-05-2013

Acordei tarde, já pouco faltava para as sete da manhã, e fiquei inquieto. Não só não estava a chover mas também estava sol. O meu plano era caminhar até à praia de Manuel António, sete quilómetros de subidas e descidas, de hostels e verde. Estava (e estou) particularmente interessado nos hostels, pois preciso de tripulantes pagantes (ou não pagantes, o Artie não tem piloto automático e ir sozinho  está fora de questão).

Mas às oito e precisamente quarenta e dois, já bem a caminho e dois albergues visitados, as coisas voltaram ao normal e começou a chover.

Manda a verdade se diga: foi chuva de pouco dura. Agora bebo um café frente à praia, deslumbrante. Sobram-me dois flyers e uma vontade muito grande de ir para o mar.

A minha cor é o azul, não é o verde.

........
É preciso ter um plano para poder não o seguir; é uma das minhas máximas favoritas, e por muitas mudanças que aí venham continuará a ser. Daqui para a frente o plano é simples, e pode não ser respeitado (parcialmente): perder peso e largar merda como os balões largam lastro, comprar uma máquina fotográfica, comprar um computador portátil. Os dois primeiros pontos estão mais ou menos no bom caminho (bebo as Margueritas sem açúcar, e o rum só com gelo, idos estão os rum punch de Antígua). Já a máquina fotográfica... ontem o plano sofreu um rombo grande: vi um colar lindo de morrer numa joalharia e comprei-o, apesar de não ter a quem o oferecer assim de repente, à mão de semear e amar. Mas a coisa era demasiado bonita para ficar numa montra, e com um bocadinho de esforço poderá conviver com a máquina. Veremos quando.

O ter e o nada

Ter nada, ou muito pouco, é bom quando se viaja ou quando recebemos a visita dos oficiais de diligências, pessoas que vêm a nossa casa penhorar o que temos. Ver a expressão deles quando lhes mostramos as nossas posses é um prazer semelhante (mas, de longe, muito superior) ao que sentimos quando a senhora do check in no aeroporto nos pergunta "é tudo?"

Mas livros, discos e uma aparelhagem para os ouvir e (acrescento agora, é uma novidade) uma televisão onde ver filmes deviam ser incluídos no conceito "ter nada".

Tal como uma sala onde apreciar esses nadas todos.

Tecnologias e tecnologias

O tablet ficou sem bateria antes de mim. Não é de espantar: afinal de contas eu sou o resultado de uma tecnologia com milhões da anos; as pilhas existem há quantos?

Estados civis

Conheço: solteiro, casado, divorciado e viúvo (no fundo devia haver só os dois primeiros, mas isso é outra história).

Haverá alguém na respectiva repartição, ministério ou coiso que considere, e inclua na lista, já agora: magoado, magoador, abandonado, abandonante, adúltero, adulterado (corno é feio), amante, amado ou, finalmente e sobretudo, aspirante a (qualquer dos outros)?

25.5.13

Diário de Bordos, Quepos, Costa Rica, 25-05-2013, III

O melhor restaurante de Quepos - pelo menos dos que experimentei até agora - chama-se El Gran Escape. Não sei o que significa o nome, deve estar relacionado com a pesca (ou com o filme, seria tão bonito,  alguém dar a um restaurante o nome de um filme que não Casablanca, Rick's ou coisa que o valha). Infelizmente, por uma curiosa coincidência é também o mais caro. Mas não são nem a qualidade nem o preço o que mais me intriga neste restaurante; nem a decoração: se eu tivesse um milhão de dólares por cada restaurante igual a este que já vi seria multimilionário.

O que realmente me intrigou no Gran Escape foi: como fazer para que um restaurante que no fundo é igual a milhares doutros seja único? Há vinte mil Gran Escapes no mundo, mas cada um é diferente do outro. E eu gostava de saber como, ou pelo menos porquê.

Um parte e o outro fica

Penso muitas vezes que sou um idiota (estou longe de ser, seja Deus louvado, o único a pensar assim).

Quando, por exemplo, descubro coisas destas sou forçado por essa mesma realidade, a coisa mais obtusa que o bom Deus jamais criou, a perguntar-me "como é possível, meu Deus, como é possível? (Isto não significa que me tome por Deus nem, muito menos que ele exista. É uma fórmula)".

A verdade é irrefutável: vivi, por assim dizer, anos ao lado desta jovem senhora e só hoje descobri isto.

Se não é sinal de profunda, indelével, inegável, inextricável estupidez não sei o que é.

m.youtube.com/#/watch?v=iSisOy3CQHQ

(As minhas desculpas, o teclado do tablet não ajuda. Copiar-colar, por favor.)

Diário de Bordos - Quepos, Costa Rica, 25-05-2013, II

"Um bom vinho é aquele que me faz dar um salto na cadeira", disse há muitos anos um crítico de vinhos inglês cujo nome, infelizmente, esqueci. Um bom pôr-do-sol é aquele que me faz levantar-me da cadeira; o de hoje é um desses. A chuva pode ser detestável - é-o sem dúvida - mas tem algumas vantagens colaterais. Sobretudo quando pára.

O ano do diabo

Apercebo-me subitamente de que há mais de sete anos não tenho os meus livros comigo e penso que sete anos, já não sei quem o diz, é o ano do diabo nos casamentos. Sê-lo-á também nas separações? E nesse caso será o ano de Deus?

América Central, EUA

Uma coisa que me intriga é o que leva uma região cujo inimigo de estimação são os EUA a imitá-los tão feroz, tão cegamente. Não há tique, imbecilidade norte-americana que estes gajos não adoptem, desde a porra das palhinhas em tudo o que é bebida até à proibição de fumar em espaços completamente abertos.

(Não tenho nada contra os Estados Unidos; mas tenho menos a favor do que gostaria de ter.)

Diário de Bordos - Quepos, Costa Rica

Um gajo sabe que está cansado quando passa um quase dia de folga no quarto merdoso de um hotel de merda a sete quilómetros de um dos melhores parques nacionais do país onde passa o dito dia de quase folga. Quase porque de manhã ainda tive de resolver coisas de trabalho; quase porque episodicamente me vêm coisas de tabalho à mente; quase porque desembarcar demora muito tempo e eu só desembarquei ontem.

E o mesmo gajo sabe que qualquer coisa está a mudar quando dá por ele a procurar "free classical movies" e "free audio poetry" no Google e pensa "preciso de uma televisão e de um cartão de crédito para ver isto como deve ser e para daqui tirar a palavra free, demasiado nobre para estes usos".

Vou amanhã ao Parque Nacional Manuel António de sua graça; de qualquer forma tenho de ir para aquelas paragens por causa do trabalho, uma quase folga é quase e é breve.

Há aproximadamente seis horas que não chove. Os meus sapatos Sperry, comprados em Antígua há pouco mais de meio ano estão quase secos; e a desfazer-se, mas isso não tem a ver com a chuva, as folgas, o cansaço ou a mudança de vida. Tem a ver com o facto simples, irrefutável e triste de que os sapatos Sperry são uma merda, como o hotel onde estou - mas este não arma ao pingarelho, ao menso isso, mostra logo o que é, como eu, what you see is what you get, está na cara, está à vista (e mãos, se forem femininas e ternas, coisa que de resto poderia ser quase um oxímoro, feminino e eterno, se fosse dito nos sites de poesia audio gratuita que hoje visitei e ouvi, o som do tablet é uma porcaria).

Sempre se imbricaram, na minha vida o trabalho e o resto, o resto todo. Bipolar? Que pobreza! Pentapolar, no mínimo, quem quiser ser polar de todo. Penta, como as estrelas dos comunas, apontam para todo o lado, cima, baixo, lados, esqueça o bipolar, é pouco, quase nada.

O ARCTIC FRONT, Artie para os íntimos está em Golfito. Não volta já para Quepos: primeiro vai fazer umas plásticas ao Panamá; talvez fique por lá. Chove menos, há mais vento e mais sítios para parar com os clientes, coitados, que suportam mal muitas horas de mar. Compreendo-os: eu suporto mal muitos dias de terra.

Vou fazer uma férias, está decidido; e vão ser terrestres, as minhas vacaciones. Tenho vontade de uma viagem como a que há quase (maldita palavra, não me sai do teclado) três anos me levou de Parnaíba, no Nordeste brasileiro, à Guiana Francesa. Mas desta vai ser ou pela Colômbia ou pela América Central.Ainda não sei; não saímos sequer de Golfito, o velho Artie e eu. Preciso de tripulação, de descansar, de tratar de papelada.

A perspectiva de ficar pelo Panamá entusiasma-me. Gosto de cidades grandes; o verde é bonito, mas ao fim de pouco tempo apanho alergias à clorofila, fico enjoado de verde. E não percebo nada de verde, estas folhas todas confundem-me, todos os excessos me confundem (até os meus). Passei duas ou três vezes pela cidade de Panamá (Cidade, com maiúscula, se não me engano é parte do nome) e de todas me pareceu fascinante. A ver.

A viagem vai ser breve, três ou quatro dias. Depois um mês de estaleiro, e depois ou fico por lá ou volto para aqui ou vou para outro lado (vamos, o Artie e eu). Um gajo pode querer assentar, e Deus sabe se eu quero, mas alguém devia proibir os assentos de terem rodas e deslizarem continuamente à nossa frente, como se a vida fosse uma rampa a descer e alguém nela tivesse largado meia dúzia de berlindes.


Quepos, Costa Rica, 25-05-2013

Este blog vai sofrer uma pequena solução, suspensão, interrupção, como preferirem chamar-lhe. Não acaba porque os bordos não acabam. Continua no Don Vivo, onde de resto começou há, creio, dois anos, na Martinique ou lá perto.

Um dia voltará, grande, crescido, adulto. Obrigado a quem o leu, seguiu e apreciou.

24.5.13

A maga magra

Eu estava deitado no meu camarote, já passava da meia noite e ela entrou-me por ele adentro, maga e muito magra, muito bonita, toda loira. Não sei se já vinha nua quando entrou no camarote, mas sei que mal entrou se pôs em cima de mim, muito bonita e muito branca, um grande sorriso linear como a rebentação numa praia e dizia sim sim sim e eu dizia sim sim sim e ela sim sim sim eu sim sim sim e por ali andámos numa fona de sins até que ela se veio por ali abaixo e eu me vim por ela acima. Não tinha mamas nem pentelheira, era elegante uma prancha de surf com um umbigo no meio e uma cara muito bonita em cima, é um efeito das pilas, tornam mais bonitas as caras bonitas e menos feias as feias vá lá saber-se porquê.

Eu não fiz nada, só estava ali deitado de pau feito, também não me lembro se já estava feito quando ela entrou se se fez depois, foi tudo muito rápido, ela entrou e saíu de mim como um comboio de um túnel, depois disse-me "gostei muito, obrigada, boa noite, dorme bem" e pronto, desapareceu da minha noite, da minha vida, do meu camarote.

Ontem li uma frase do Kundera, dizia que o verdadeiro amor acaba em morte e se um amor não acabar em morte não é verdadeiro, não sei onde escreveu ele aquilo, é uma grande verdade, mas a verdade é que há mortes parciais, mortes assim assim, mortes interrompíveis por uma maga bonita magra e loira que num momento de escuridão nos faz ver que afinal não estamos mortos, estamos só desmaiados, ou assim assim, mortos mas ressuscitamos.

Ou mortos mortos e as magas magras são uma ilusão, também é possível, uma miragem.

23.5.13

As coisas e o seu contrário

Tudo está bem quando as coisas são o que são, e o seu contrário é o contrário delas.

22.5.13

Um jantar improvisado - Frango em leite de coco

O dia foi uma merda, não vale a pena começar por aí.

Estou em Golfito, um golfo pequeno dentro de outro maior (Golfo Dulce, "o maior golfo tropical do mundo", diz-me um americano com a mania que os americanos têm de que alguma coisa é sempre a maior do mundo). O sítio é lindo, apresso-me a esclarecer, mas a porra da chuva não pára de chover (à tarde. De manhã não chove), que é a época dela. "É o lugar mais pluvioso onde jamais vivi", diz-me outro americano; o que serve para demonstrar que o homem nunca viveu na África Central (e é palerma, mas as três coisas não estão relacionadas - ou deveria dizer quatro? O dia de merda também conta).

A verdade é que chove, e é por isso que a rain forest [alguém me pode ensinar a dizer isto em português? Obrigado] é o que é.

A bordo tinha um frango, três latas de leite de coco - das quais só utilizei duas - e feijão verde. Tenho também uma colecção boa de especiarias, e - sobretudo - uma necessidade muito grande de cozinhar; que isto do rum não chega a todas.

Comecei, o truque é velho, por marinar o dito frango em sumo de limão e sal; depois acrescentei alecrim, pimenta de Cayenne e piripiri moído, porque queria fazer uma receita à la Leonor.

Quando foi para o tacho alourar em azeite levou mais paprika (uma paprika fumada da McCormick Gourmet Colection que recomendo vivamente) e um bocadinho de salsa seca. Alourado o frango - seria uma franga? - pus uma das latas de leite de coco e noz. moscada. Ia estragando tudo; a solução foi: outra lata de leite de coco e um splash de rum.

Que delícia me saíu a coisa.

Na panela ao lado - será importante, a panela ao lado? Há quem pense que sim, quem diga não - cozia uma canja com a carcaça do frango. Foi um jantar franganal, mas bom, tão bom.

21.5.13

Inteligência, preguiça

Não é a inteligência que faz as pessoas inteligentes procurarem - e encontrarem - soluções para os problemas; é serem preguiçosas.

17.5.13

Outros, outro

Refaço os trajectos que tantas vezes fizemos, revisito os lugares que juntos descobrimos. Não são os mesmos. Vemos o mundo com o olhos do outro; ou pelo menos também com os olhos do outro.

Os outros são os que olham para nós; outro é aquele  com quem olhamos.

Melancolia e felicidade

Tão feliz que um bocadinho de melancolia sabe bem. Como uma chuvada repentina num dia de sol, ou solidão depois da multidão.

Quepos, Costa Rica, 17-05-2013

Quase é uma palavra que engana muito, todos o sabemos; e saber que o ARCTIC FRONT está quase pronto para amanhã não me deixa completamente à vontade. Mas pouco posso fazer: o que não tem remédio remediado está. A senhora que devia vir fazer as limpezas adoeceu subitamente, ao que parece, coitada; e só consegui uma substituta para amanhã de manhã. Claro que eu podia ter limpo, arrumado, lavado a loiça, aspirado, feito as camas em vez de tratar da contabilidade e - seja Deus louvado - falado com uma jovem, simpática, bonita e inteligente senhora enquanto bebia um rum Centenario 7 anos. Pois.

Mas estou cansado, fundamental, profunda, existencial, intrínseca, estruturalmente cansado. Prefiro correr o risco de ter que fazer eu isto tudo amanhã de manhã a ter a certeza de o fazer hoje. Deus existe e é generoso - ou pelo menos tem sido, bastante, ultimamente - e a senhora estará no barco às sete em ponto.

Espero que sim. Aposto que sim.

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O curto prazo está resolvido, quase; a etapa seguinte - pintar casco e convés, refazer o interior, fazer melhoramentos no sistema eléctrico e nos encanamentos de água doce, mudar o bocim, e mais meia dúzia de coisas pequenotas - está em marcha. Em breve terei dez dias de férias. Não mudei de vida, mudei de planeta.

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Estás tão longe, Lisboa; e faltas-me tanto. Tu e o que e quem lá tens dentro.

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Começo vagamente a perceber porque é a Costa Rica o país mais feliz do mundo, e estou contente por contribuir positivamente para essa estatística.

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A minha experiência profissional é como um leque sevilhano pousado aberto em cima de uma mesa: fiz muitas coisas cheias de cor, mas pouco tempo (com a óbvia excepção da náutica de recreio). Não posso falar muito das outras profissões; mas posso sem dúvida dizer que não deve haver muitas que sejam tão variadas, tão boas, tão exigentes e - simultaneamente - generosas como a minha. Conheço pessoas que gostam tanto do que fazem como eu - mas não consigo perceber como ou porquê.

Enfim, exagero. Muito: a verdade é que não preciso de comparações para saber que faço a melhor profissão do mundo; e que as outras não são profissões, são trabalhos, empregos, ocupações, biscates, torturas, castigos e punições.

Deveria talvez acrescentar, em abono da verdade, que me é agradável ver pessoas gostar tanto do que fazem como eu gosto do que faço; mas não consigo impedir-me de pensar. Isto é, de não ser relativista.

A "sou tolerante, mas não sou relativista" deveria talvez juntar-se " compreendo tudo, mas não sou relativista".

Claro que há aqui um bemol: faço o que faço por absoluta incapacidade de fazer outra coisa...

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Hoje tive oportunidade de medir a inacreditável quantidade de sorte que me foi dada ao encontrar aquela casa. Os pormenores seriam aborrecidos (ainda mais aborrecidos).

Um gajo sabe que alguma coisa se passa na sua vida quando no vocabulário quotidiano harmonia deixa de ser a palavra recorrente e é substituida por gratidão.




Märklin

Regresso ao hotel onde pela última vez nos vimos, dormimos, amámos. Não sei se foi ontem, se há dez anos se talvez mais ainda. Sei que regresso ao hotel, ao quarto onde me explicaste que não podias continuar a viver comigo porque circunstâncias para lá do teu controle to impediam. Não sei quando foi, tenho má memória para o tempo, passa por mim e não pára para descarregar nem embarcar uma emoção que seja, como os comboios Märklin com os quais ainda há pouco brincava, mas sei que os lençóis ainda estão quentes, o homem da recepção perguntou-me "hoje a sua senhora não vem?" eu respondi-lhe "não" e ele disse-me "tenho pena, há muitos anos que não a vejo, mas não faz mal o quarto está pronto". Não estava, isto é estava como se o tivesses deixado para ir à casa de banho, a cama ainda quente e eu perdido nele às voltas como um comboio de brincar.

"Não se devem deitar fora os brinquedos quando estão partidos" lembro-me de ter pensado, mas não me lembro de quando o pensei. "Tudo tem conserto, estes comboios são caros, Märklin..." mas a ideia ficou por ali enredada nas voltas do tempo nos lençóis ainda quentes na tua voz meio irónica meio triste, é uma mistura de que só tu és capaz, nunca a ouvi a mais ninguém -  nem vi, que o sorriso é igual, meio triste meio irónico ambos igualmente verdadeiros, sentidos, e eu nunca sei qual das metades escolher, opto sempre pela metade errada, pelo menos é o que tu me dizes "não percebes nada" "não" ... "não andes para aí às voltas, isto está estragado, mais vale deitares para o lixo, se não for agora será amanhã".

Não foi amanhã, foi muitos anos depois, não foi? Ou terá sido ontem? Não sei.

16.5.13

Retratos implausíveis

Via os sentimentos e as emoções como via as baratas, ou quem cospe para o chão: com nojo e desgosto.  Para ela, manifestar o que se sente - não, sentir - é, mais do que uma falta de gosto, uma de educação e de asseio.

Conhecer o nada

Penso em todas as pessoas que me conhecem bem, verdadeiramente, a fundo. São muito poucas, três ou quatro. Podia ser sinal de profundidade, mistério ou outras mariquices; ou de que não me dou facilmente.

Nada disso: prova simplesmente que nada há a conhecer.

Um grande e impossível serviço

A esmagadora maioria das mulheres faria um grande (um ainda maior) serviço à humanidade se nascesse com trinta anos. 

Palavras, pesca

"Para apanhar um peixe é preciso pensar como um peixe", diz-me T., um jovem que viajou comigo da Nicarágua para a Costa Rica, pescador emérito. Infelizmente não se pode fazer o mesmo com as palavras, T., pois não? Elas não pensam, são pensadas. E não são pescadas, sequer: na verdade são elas o pescador, e nós o pescado.

Amor, nuvens

Tentar definir o amor (ou, pior ainda, o amor verdadeiro) é tão fútil e vão como tentar fixar a forma de uma nuvem. 

Há nove ou dez tipos de nuvens, e não há duas iguais. Nem a mesma nuvem é igual a si mesma, dois segundos antes.

Mudança, evolução

Muda de vida, de oceano, de hemisfério,
Muda de ti e do tempo,

Simultaneamente, para não correres o risco de confundires mudança com evolução.

Puzzle, felicidade

A forma ideal da felicidade talvez seja um puzzle de cinco mil peças do qual perdemos uma.

Quepos, Costa Rica, 16-05-2013

Trabalho, trabalho, trabalho. Vivo, respiro, como e bebo ARCTIC FRONT. Sábado chega o primeiro grupo. Não há dúvida: a esquizofrenia é um dom. Penso no que tenho de fazer até ir ao aeroporto buscá-lo, que é muito; e no que terei quando se forem embora. Felizmente são só três pessoas; se as coisas continuarem a correr como até agora têm corrido - quase bem de mais para ser verdade, no limite do irreal - não haverá problemas de maior. Bato na madeira.

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Não sei como dizer. A infelicidade cansa muito, é maçadora; a felicidade também, de certa forma: uma cansa-nos a nós, a outra aos outros. Talvez a melhor mistura seja a que agora vivo: um céu parcialmente nublado torna as cores mais vivas, melhora a luz, torna mais vivos os pormenores.

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Quepos é uma cidade pequena: aproximadamente quinze mil habitantes. Vive da proximidade com o parque nacional Manuel António. Ontem o proprietário da casa onde em breve (Allah u Aqbar) viverei mostrou-nos o trajecto até à entrada do parque. Hostels, restaurantes, restaurantes, hotéis, barracas de artesanato, hostels. Estranhamente não achei feio; ou porque acabei de chegar, ou porque de facto a mistura não choca, ou - sobretudo - porque significa que teremos mercado.

Não é chocante. Lembrei-me de Nosi Bê, em Madagáscar, infinitamente mais pobre mas igualmente harmonioso, bonito. Talvez o verde tenha esta inesperada (para mim) capacidade de integrar, absorver, digerir o frenesi e o tornar aceitável.

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Quando o ARCTIC FRONT estiver no estaleiro vou fazer uma viagem por terra pela América Central. E quando estiver assente aqui vou começar a fazer surf.  A dicotomia cronológica não se manifesta apenas no trabalho; melhor: há muitas dicotomias.

15.5.13

Gestos, confusões

Muito mais do que palavras o amor é feito de actos. Por isso tantas vezes é mal compreendido, ou confundido com gestículos, os quais estão para os actos como as palavras para a verdade.

Amor, palavras

Não é a primeira vez que não tenho vocabulário para o amor; mas é a primeira que o amor me deixa sem palavras.

Vontade, desejo

Amo-te significa quero amar-te. O amor é um acto da vontade, muito mais do que do desejo.

Quepos, Costa Rica, 15-05-2013

Chegámos a Quepos ontem. Parece uma vida. Uma vida que começa com uma vida não pode ser má. E uma vida que começa com a casa que encontrei hoje ainda menos.

Está num terreno de quinze mil metros quadrados, a três quilómetros e meios de Quepos, no meio dos montes e a caminho do Parque Nacional Manuel António, a grande atracção da Costa Rica. É grande, desnivelada, tem dois quartos, espaço para os meus livros e discos, aberta (no sentido de não ter paredes) e eu ainda não acredito que é ali que vou viver.

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Quepos é uma cor: verde. E uma forma: labaredas. Grandes chamas de verde, um incêndio verde, verde em todo o lado, até nas ruas, verde no ar, verde, verde, verde como se o mundo fosse uma violenta conflagração de clorofila.

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A viagem foi uma das melhores da minha vida. Nunca vi tanta fauna: golfinhos e tartarugas todos os dias, várias vezes ao dia; e raias, mantas, focas, leões marinhos ( na Isla de Guadeloupe, um dos sítios mágicos da minha vida).

Muito mais do que a fauna: tive a sorte de navegar com dois dos melhores tripulantes que jamais conheci. E. e R. foram, são, a prova de que se nasce marinheiro, apesar de muitas vezes não o sabermos.

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Os dias (os dias... dois, até agora) são passados a preparar o ARCTIC FRONT para os primeiros clientes, no sábado; a procurar fornecedores para tudo aquilo de que ainda precisa, que é muito. A encontrar uma casa e a pensar que a felicidade ora parece um gigantesco incêndio, ora parece uma vaga que submerge tudo à passagem. Quase tudo.

Reedição


Tu és a terra; eu sou o fruto e bebo
da fonte directamente,
até que o incêndio se ateie e o
grito afaste a morte.

Gosto desta imagem: a planície,
uma fonte, um incêndio que alastra
célere, urgente;
abutres assustados.

Da convivência diária com a sede
aprendi o calor, o fogo, a luz,
a simples, irrefutável urgência.

Tu és a terra.

Amor, ternura e pieguice

Hojer não fazemos amor, meu amor, se não te importas. Fazemos ternura. Pode ser?

11.5.13

Marina Puesta del Sol, Estero de Aserradores, Nicarágua, 11-05-2013

Dia de largada. As autoridades já saíram - desta vez foi um bocadinho mais complicado porque um dos passaportes estava na lavandaria, os senhores não têm troco nem de dólares nem de córdobas, uma das notas estava rasgada (um rasguinho minúsculo num canto, mal se via), outra tinha qualquer coisa escrita, foi preciso fazer as fotocópias porque Dorian, o Harbor Master está de folga e creio que foi tudo -; o electricista está a instalar um inversor, estou farto de deitar comida fora por não ter frigorífico; a maré é às duas tarde.

Até lá esperamos na palapa da Marina, o nosso escritório cum sala de estar cum sala de jantar aqui em Puesta del Sol que o tempo passe. Sinar, o empregado, diz-me que tem pena de nos irmos embora. Compreendo-o, fomos praticamente os únicos clientes que teve desde que chegámos.

Quepos está a dois dias e meio de distância (gosto de medir distâncias em tempo). Ontem assinei um contrato de longo prazo. Há muitos anos que não sabia o que isso era.

Amor e outras coisas

Deitamo-nos com quem podemos, acordamos com quem queremos.

Reedições

A vantagem de uma insónia urbana sobre uma campestre é que a primeira tem, normalmente, uma boa solução na rua ao lado.


Se tivesse a Jacqueline Bisset na cama também não estaria a dormir.

Chinandega, Nicarágua, 10-05-2013

Chinandega, a cidade da qual a marina Puesta del Sol está mais perto tem aproximadamente centro e trinta mil habitantes. A economia da cidade e da região de que é capital é predominantemente agrícola. Marvin, o condutor do táxi que nos leva para a cidade diz-me, com uma ponta de orgulho mal disfarçada (ou estarei a imaginar, esse orgulho? É o mais provável) que Chinandega é a cidade do país que paga mais impostos, a seguir a Manágua.

O que me marca quando chego é a semelhança com uma cidade equivalente no Brasil: a mesma sujidade, o mesmo aspecto desleixado, o mesmo barulho nas lojas e em todo o lado.

Pouco me interessam as semelhanças, na verdade. Interessam-me mais as particularidades, as diferenças; e de qualquer forma está demasiado calor para passear; felizmente, porque não há rigorosamente nada para ver. Com algum esforço encontramos um sítio para beber café; péssimo, deslavado, fraco, sem ponta por onde se lhe pegue.

Acabamos no bar Paparazzi a beber rum. É a minha maneira favorita de conhecer uma cidade: sentar-me num bar e beber meia dúzia de copos da bebida local (passa-se o mesmo com as senhoras: melhor começar a conhecê-las pelos vícios do que pelas virtudes. Aqueles não enganam ninguém; não se podem esconder muito tempo, nem escondem. Estas são fáceis de fingir, vestem-se e mudam-se como uma blusa).

A tarde foi agradável. E. é decididamente uma boa companhia, e A. igualmente. Voltámos para o supermercado, ponto de encontro com Marvin, numa caponera, um triciclo a pedais. Pensei que havia lugar para duas pessoas apenas, mas o senhor disse-me que não, a lotação é de três passageiros. Não estou habituado a andar de bicicleta como passageiro, e estava com uma certa má consciência por causa do peso. Sou magrinho e pequenino, mas apesar disso mal cabíamos no assento.


Reedição

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Foi num dia assim que tudo se desenrolou perante mim: Glenn Gould a tocar as Suites Inglesas, os correios a funcionarem bem, África a democratizar-se, Thabo Mbeki a reconhecer, finalmente, que Mugabe devia ir-se embora ("he should go home"), o fim da pobreza no Brasil; foi num dia assim

que tu respondeste, finalmente, e aceitaste vir para o mar comigo. "Não sei viver noutro sítio, sabes?", perguntei-te, e tu respondeste "e eu não sei viver sem ser em ti, vou amar o mar e amar-te e dar-te o mar que tu me deste", não sabia a que mar te referias então, hoje sei, e foi num dia assim

que pela primeira vi a tua voz, essa voz sem a qual não sabia que se podia viver, não pode, pois não?, ninguém pode, depois de a ouvir, e foi também num dia assim que amar fez sentido pela primeira vez outra vez em tanto tempo, como pode uma vida dissolver-se em amor, desaparecer e ressuscitar transformada?, foi sem dúvida num dia assim que descobri que pode, para isso tu foste feita, para inventar a vida; foi num dia assim

que disseste "é uma questão de pele". "Não é: é uma questão de pele, de olhos e cabelos e seios e ventres e coxas e é uma questão de corpos, de ar e de falta de ar e de gritos e de sussurros, de ânsia e de unhas e carícias e dentes e línguas e dedos e orelhas e bocas", é uma questão de querer mais e não querer outra, nunca mais, nunca mais outra vida, outra pele, outro corpo. Foi num dia assim

que me ensinaste "o sofrimento não presta, não enche uma vida, só a esvazia", e me mostraste que o passado passou, finalmente, e reencarnaste e me bateste à porta e me sorriste e me disseste "olá, sou eu outra vez, pela última vez sou eu". Foi num dia assim que Deus inventou as palavras - tu és os alfabetos todos de todas as formas da palavra amor - e os dias e o mundo

e o mundo és tu, perfeita.

Reedição









10.5.13

Reedição

Há dias em que quero fotografar o teu corpo, o teu belo e imenso e interminável corpo. "Interminável" porque me perdi nele, tantas vezes: ainda hoje me procuro, ou o procuro. Não sei. Lembro-me de uma vastidão branca que terminava com um riso de prazer e um nome, o meu, repetido vezes sem conta. 

Não sei como fotografar o meu nome, dito por ti.

Reedição

"Nenhum de nós sabe muito bem o que é o amor; tacteamos no escuro, procuramos, procuramo-nos. Mas ambos sabemos, e muito bem, o que é o não-amor.

E para aí não queremos voltar, pois não?"

Marina Puesta del Sol, Estero de Aserradores, Nicarágua, 10-05-2013

Chegámos à Marina Puesta del Sol há dois dias. Esta foi a primeira noite que todos dormimos bem, profundamente. Há uma diferença entre chegar a terra e "aterrar", (entre aspas porque aterrar é o termo técnico que designa a aproximação a uma costa depois de uma travessia oceânica). O mar entra por nós dentro e sai aos poucos: um copo aqui, um almoço ali, ausência de quartos, dias sem horas, horas sem mudanças, sem rumo.

Ao fim de dois dias em terra aterro; ao fim de quatro o mar falta-me de novo. Vou ter de aprender a viver aterrado.

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R. desembarcou hoje. Obrigações profissionais, a viagem vai muito mais longa do que o previsto. É uma excelente pessoa e um excelente marinheiro; isto é o melhor que posso dizer de alguém.

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Hoje vou à cidade; enfim, vamos todos, eu pela primeira vez. Chateia-me passar por estes países todos e não os ver - sobretudo porque tem sido uma agradável sucessão de surpresas. Pessoas adoráveis, paisagens fascinantes, e sobretudo esta noção de estar entre dois mundos, numa espécie de corda bamba geográfica.

9.5.13

Marina Puesta del Sol, Estero de Aserradores, Nicarágua, 09-05-2013

Como os amores verdadeiros as verdadeiras viagens começam, mas nunca acabam (e têm vários começos, mas isso é outra história). Por isso nunca poderei dizer "esta foi a minha última viagem". Talvez, quando morrer, "estas são as minhas últimas viagens". Ainda é cedo para pensar nisso; já morri muitas vezes, e ressuscitei outras tantas. Mas só viajei uma vez. Começou teria eu quatro ou cinco anos e fui de avião de Lisboa para o Porto. Ainda tenho vagas reminiscências desse aventura, para mim. Fomos, a minha mãe e eu ter com o meu pai a Leixões. Foi a minha primeira viagem, pelo menos que me lembre; ainda não acabou.

Hoje passámos, M. e eu o dia a trabalhar na papelada na importação do ARCTIC FRONT para a Costa Rica. Ainda não mencionei a demência que é a burocracia na América Central. Não me apetece. Faz-me lembrar o Portugal de outros tempos - com uma diferença simpática: aqui os senhores (e senhoras) vêm a bordo. Na verdade a reflexão ocorreu-me por causa do escritório e  do trabalho: prefiro de longe trabalhar sentado a uma mesa a reparar (foi a tarefa de ontem) encanamentos de água quente. Quanto ao escritório é o mesmo de Puerto Vallarta, com algumas diferenças, poucas: a) as Margueritas aqui são intragáveis; b) não é à beira de uma piscina, mas de uma ria; c) estamos na Nicarágua e não no México.

Tudo o mais é semelhante, a começar no nome do restaurante (Palapa, em ambos os casos. Quer dizer palhota, ou coisa próxima); e a acabar na beleza do local e no prazer que é aqui trabalhar.

Fizemos quase tudo o que era preciso, incluindo digitalizar todas as páginas de todos os passaportes da tripulação - esta exigência não é habitual, suponho que seja devida à importação do barco. Toda a papelada deve ser entregue em quatro ou cinco cópias, mas isso vou pedir à secretária do advogado que M. contratou na Costa Rica para fazer.

Falta o último passo, pequenito, para que a viagem se transforme noutra viagem. Talvez seja esta a diferença entre os amores e as viagens: estas transformam-se noutras; aqueles não. Acumulam-se, mas não mudam nem morrem.

.........
Adenda: acabo de descobrir a bebida nacional da Nicarágua, uma fascinante mistura de rum, xarope de goiaba, sumos de laranja e limão. Chama-se Macuá, está ao nível da melhor Marguerita, levou o meu nível de açúcar para o céu (ou pelo menos para lá perto). O açúcar não foi sozinho, é preciso acrescentar.

Planos, Bequia

O plano era viver em Antigua e morrer em Bequia, mas acabei por morrer em Antigua e não ver Bequia nem em sonhos, nem em pesadelos, nem em lágrimas, nem em. Adeus Bequia, adeus planos, adeus vento, adeus. Passem bem. Adeus Lucifer, adeus Captain Max, adeus Frangipani, onde se come tão mal e se está tão bem, adeus.

Traí-te, Bequia, não morri em ti como tu morreste em mim, mas que queres, é assim a vida, tu sabes isso melhor do que ninguém porque tu és a vida.

E, seja Deus louvado, não és a morte.




(Peço encarecidamente a quem leia este post que pronuncie Be-qú-ei, e não Béquia, porque.)

Mares, vidas

As vidas são como rios, desaguam no mar; ou deviam. Rios que acabam em terra acabam mal, com a notória - aceito como verdades o que toda a gente diz, toda a gente que conhece, quero dizer, eu não conheço - excepção do Okavango, que acaba em terra e acaba bem, mas é o único (que acaba em terra ou que acaba bem?)

Pouco interessa; as vidas deviam desaguar no mar, ou nele começar, ou dele ser, ou nele estar, ser, porque fora dele só há ersatzes de vidas. Isto digo eu, que sei do que falo, metade da minha vida no Atlântico, metade no Pacífico, as duas no futuro, como se futuros houvesse muitos e não há, há só um, o mar, amargo, doce, fiel, omnipotente, omnitodopoderoso mar.

Honorés camarades de la mer, sans vous je naviguerai seul les mers amères du passé. Honorable camarade mer, en toi je navigeurai seul les douces vagues de l'avenir.

O mar é a mais lenta, mais bonita, única ponte entre o passado e o futuro. Isto digo eu, que não sou parcial e olho para o mar objectivamente, com a distância de uma vida ou duas. E sei do que falo, claro, ninguém percebe de vidas, de mares e de futuros como eu, que tantos tenho.

ersatzleben. Mas não há ersatz zees.

As vidas correm para Sul, os passados para Norte.

8.5.13

Marina Puesta del Sol, Estero de Aserradores, Nicarágua, 08-05-2013

Por vezes penso que estou em Quepos e começo um texto com "Estou em Quepos. Esta foi a minha última viagem". Não estou, não será.

Estou na Nicarágua, num buraco para ricos para o qual viria de bom grado com um bom livro e uma má companhia; ou boa que fosse, a companhia. Desde que o livro fosse bom... O rum é. Chama-se Flor de Caña, não vale um  Mount Gay, nenhum vale excepto alguns vinte ou trinta nos quais não quero sequer pensar, porque este é bom, levezinho, agradável, vai bem com o espaço e com a viagem.

Em Portugal chamaríamos a isto uma ria. Um golfo profundo, parece um rio, com múltiplos braços, como se estivéssemos num delta. Não foram a música e o rum e sentir-me-ia em África, esta imobilidade - nada se mexe, nem as pangas que começam a sair para a pesca, a senhora do bar que serve as duas ou três mesas ocupadas como se o bar estivesse a abarrotar, a água que agora vaza, lentamente. Como se tudo estivesse congelado no calor, prisioneiro do calor, do tempo, do espaço, da ideia que nada disto é verdade, é um filme do qual sou o espectador meio cego, meio surdo, meio.

A luz é branca, leitosa, quente, como se alguém tivesse embaciado o vidro de uma janela e eu estivesse do lado de fora a olhar para o mangal, para estes pontões vazios, para o mangal, para o dia que acaba como acabaram estes dias todos desde São Francisco: um dia estarei em Quepos e direi "esta foi a minha última viagem". Não será.

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O quadro é semelhante ao de El Salvador, com a diferença do espaço: lá senti-me num aquário, não havia cem metros livres qualquer que fosse a direcção para a qual se olhasse.

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Preciso de solidão como a luz de espaço.