30.3.13

Napa Valley, Califórnia, EUA, 29-03-13

O diabo teceu-as, claro. E bem tecidas. Para além do atraso nos trabalhos do barco - não só perdemos o avanço que tínhamos como ganhámos atraso - a mulher de M., que tem estado bastante doente, está pior e ele vai provavelmente ter de regressar a casa.

Mas se ele, diabo pensa que estou muito preocupado bem pode desenganar-se. Não tenho uma pistola apontada à cabeça, tenho uma tripulação porreira e se tiver de evitar uma escala ou duas pouco me importa.

De modo saímos hoje (um dia de atraso, um) para San Francisco, ou lá perto. Estou farto de verde, sou alérgico à clorofila, chega de vacas. E acabamos lá a meia dúzia de pequenos nadas que faltam. Talvez nem chegue a meia dúzia.

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Nos Açores chegava a levar duas horas para fazer os setenta metros de pontão, quando ia despedir-me dos clientes. Aqui não é bem assim: só C., armador de um 36' e de um 41' me convida frequentemente para ir a bordo de um dos seus barcos beber uma Smithwicks. Tive o azar - ou a sorte, não sejamos bégueule - de lhe dizer que é a minha cerveja preferida. Comprou uma quantidade delas e agora convida-me todos os dias. Ainda não tive coragem para lhe dizer que não devo beber cerveja, ou que nestes dias bebi mais cerveja do que desde o princípio do ano (não é verdade, mas é tentador). Paciência. O homem é simpático e uma cerveja de vez em quando não faz  mal a ninguém.

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Seria emocionante, uma série de posts intitulada América, América. Mas enfim, todos sabemos como é, não seria muito original. A novidade é viver esascoisas quotidianamente, na linha da frente, por exemplo.

 O advogado que anda a pôr todas as marinas do Napa River em tribunal por obscuras e ambientais razões - mas que num sem precedentes élan de altruísmo se dispõe a abandonar as queixas contra o pagamento de 37 mil dólares. O adorável tripulante que me diz, quando discutimos o direito ao porte de armas que tem sete carregadores de trinta munições (um dos temas em discussão é os carregadores e respectivas capacidades) e que está à espera de mais sete. E assim por diante.

Os Estados Unidos não me entusiasmam tanto quanto eu pensava me entusiasmariam. Mas estive cá pouco tempo, e o país é vasto.

Encontros - Steve J., Napa Valley

- De que parte de Portugal és? - pergunta-me o homem da bomba de combustível da marina quando me ouve falar com M. durante a manobra. Íamos fazer um teste de mar e fomos a bancas (meter combustível, em linguagem de mar).
- De Lisboa. Como reconheceste o sotaque?
- Vivi dois anos em Setúbal.

 Encontro-me com Steve alguns dias depois. Levou-me à cabana que lhe serve de atelier e escritório ao pontão do combustível. Steve é designer e acredita nas virtudes do mostrar mais do que nas de explicar.

- Tens de ver, se não não percebes - diz quando lhe sugiro que se não tem tempo podemos falar no barco.

Começamos por falar dos seus anos em Setúbal, dos estaleiros navais artesanais que não souberam adaptar-se e procurar novos mercados quando a pesca acabou em Portugal e morreram todos. Depois falamos, é inevitável, das pessoas que conhecemos. Era amigo do G. O'Neill, diz-me que lhe dê um abraço quando o vir, explico-lhe que não será assim tão cedo mas será entregue.

Continuamos pelo seu projeto actual, uma galera birreme - "o projecto mais antigo de todos aqueles em que trabalhei. Espero muito que este se concretize" - e daí vamos para trás (incluindo uma réplica de uma caravela, da qual depois me oferece uma vista de perfil). Steve desenha e ajuda a construir, como responsável pela mastreacão, réplicas de barcos antigos. Comecou ajudante e aprendiz de um senhor que trabalhou para Walt Disney a fazer o COLUMBIA, e desde daí salta de projecto para projecto. Os seus clientes são museus, parques de diversões, cidades (a caravela era para uma cidade da costa oeste dos Estados Unidos), produtores de cinema ou simplesmente privados que querem um barco diferente. Tem um 34' de 1890, no qual vive, aqui na marina.

O trabalho na estacão de combustíveis é pouco e deixa-lhe muito tempo livre. Os desenhos não são de brinquedos, de réplicas mais ou menos fantasistas. "Onde vais buscar a informacão para os planos?" Mostra-me uma estante cheia de livros de história marítima, explica-me que o seu mentor foi contratado pelo Walt Disney porque "os meus desenhadores só sabem fazer barcos para bandas desenhadas e não é isso que eu quero para o COLUMBIA" (Steve conta-me que o senhor desenhava enquanto Walt Disney falava durante o almoco para o qual este o convidara. Terminada refeicão mostrou-lhe o desenho. "O trabalho é teu. Vamos para os estúdios", terá sido a resposta), mostra-me um capacete espanhol da época das descobertas - "se não tiveres um modelo só podes desenhar as coisas de um ponto de vista. Com um modelo podes dar-lhes as voltas todas que quiseres".

Da estante saem três livros iguais, duas reproducões e um original de um livro de 1819, com bastantes ilustracões de poleame, massame, cabos, técnicas de mastreacão, esquemas de construcão. "Este livro é fantástico. Tudo o que fiz dos séculos XVIII e XIX vem daqui. Foi o primeiro e mais completo guia de vela daquela época. Tive um sucesso fenomenal. Toma, dou-te este. Este não porque é um original que encontrei num alfarrabista de Filadélfia, este também não porque é o que uso (mostra-mo, cheio de sublinhados, anotacões, setas), mas este é teu.

O presente comove-me. Para além dos barcos Steve também desenha casas e trabalhou num rancho, onde aprendeu a recuperar selas antigas. "Foi depois do meu divórcio. Foi muito difícil e resolvi "levar o remo para terra". Passei dois anos a trabalhar num rancho.

Mostra-me desenhos de cowboys, quintas, terra. Mas a minha mente ficou no "The Young Sea Officer's Sheet Anchor or a Key to the Leading of Rigging and Pratical Seamanship" by Larcy Lever, Esq., "With an Appendix containing several figures illustrative of novelties and improvements in rigging &c &c &c." que trago para bordo e agora folheio.

29.3.13

Modos

Não sei se estou em modo partida se em modo partido, mas estou em modo.

28.3.13

Napa Valley, Califórnia, EUA, 26-03-13

Ontem fui às compras. Estou muito orgulhoso. Consegui comprar quase tudo o que precisava, não excedi muito o orçamento, e só comprei um coisa que não estava prevista (justificadissimamente: um casaco de linho óptimo, lindo, em saldo. Tenho algumas dúvidas sobre a sua absoluta necessidade, mas enfim, a melhor abordagem é a do ceguinho: logo se verá).

Mas também fiquei bastante preocupado, muito mais do que orgulhoso. Cada vez me é mais difícil estar numa loja, cada vez me sinto mais desamparado, perdido e incapaz de gerir aqueles parâmetros todos: o preço, a medida, a estética, a adequação. Fico num estado de tenção que roça (ou pior ainda penetra) o pânico.

Na primeira loja onde fui (uns grandes armazéns chamados Macy's) ainda consegui dizer à senhora que fazer compras é para mim uma experiência traumatizante, ao que ela respondeu laconica e precisamente "estou a ver"; na segunda fui atendido (enfim, atendido é um grosseiro exagero) por um jovem com piercings ridículos e abandonei a missão.

Fui para um wine bar esperar que os óculos ficassem prontos - outra missão concluída com sucesso. Sou o feliz, e neste caso também orgulhoso proprietário de duas armações da conceituada e de há muito minha conhecida marca Ray Ban, adquiridos sem esforço e a um preço que me faz temer pelo futuro da loja. E de um par de olhos em bom estado, não é despiciendo. Apesar de tudo o que lhe faço o meu corpo é generoso e tolerante.

Na verdade o mérito não é meu. É do vendedor (um senhor maricas que levou a simpatia e a eficáca ao ponto de insinuar que eu devo cortar o cabelo: "naturally you need to cut your hair", disse-me). E acrescentou, quando eu lhe expliquei que corto o cabelo apenas duas vezes por ano, porque faça o que fizer nunca serei bonito, e mais vale não gastar dinheiro com objectivos inúteis "se quer escolher uns óculos facilmente".

A compra dos óculos e consulta médica correram bem: raramente estive sozinho, o processo desde a consulta - bastante completa - à escolha das armações e lentes é rápido, fluido e havia boas oportunidades - uma das armações estava em desconto por ser uma devolução e na outra reduziram o preço em cinquenta dólares por causa de um quase imperceptível risco numa das lentes. O método de vendas daquela cadeia é apreciável.

O que falta vai ser comprado no México, e depois espero estar vestido para os anos que aí vêm.

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O trabalho a bordo do ARTIC FRONT avança a bom ritmo. Estamos (muito ligeiramente, é certo, mas estamos) adiantados em relação ao que tinha previsto, graças às qualidades dos tripulantes. Dois bombeiros profissionais - M. era bombeiro amador, e R. e Er. são antigos colegas dele -, e E., uma jovem canadiana que inicia connosco um périplo de um ano pela América Latina, "entre o masters e o trabalho". É engenheira civil, bastante desenrascada e o facto de nunca ter posto os pés num barco não a incomoda a ela nem, graças a Deus, a mim. A rapariga parece ser bastante autónoma.

Trabalham todos bem, depressa, cheios de energia e bom humor. Mas uma vez sou o único a bordo com experiência de mar (R. e Er. fazem vela ligeira). Tenho umas certas saudades de navegar com uma tripulação experimentada, eficaz, num barco rápido; mais uma coisa que vai ter de esperar. São tantas...

Mas sermos ou não capazes de respeitar a ETD vai depender do que acontecer hoje, de modo tenho sempre presente aquele velho dito francês, segundo o qual on n'est pas sortis d'auberge; e mantenho - metaforicamente, claro - os dedos cruzados, não vá o diabo, grande companheiro destas andanças tecê-las.

O ARTIC FRONT não está nem de longe preparado para receber clientes, e quero chegar rapidamente a Quepos para o pôr de novo no estaleiro: pintar o convés, reparar a borda falsa e outro madeirame, fazer capas novas para os coxins, mudar o piso do salão, lavar as velas.

M. é contabilista de formação e ele próprio reconhece ter mais jeito para números do que para a estética.

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Teria preferido fazer a viagem sem escalas. Vinte e cinco dias de mar vinham a calhar. Infelizmente devemos parar pelo menos uma vez por semana, para que M. possa trabalhar. Vamos fazer escalas no México, nas Honduras (a meu pedido) e na Nicarágua. Podia ser pior, verdade seja dita. Tudo pode sempre ser pior, de resto. Mais facilmente do que melhor. Somos bons a gerir a felicidade, e maus a lidar com a tristeza



25.3.13

Napa Valley, Califórnia, EUA, 25-03-13

Ontem foi dia de teste de mar. De rio, para ser mais preciso. Curto, mas não era preciso muito mais. Pequeníssimos problemas aqui e ali; parece-me possível respeitar o ETD. Rezo para que sim, preciso de mar como de ar ou luz.

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A Napa Valley Marina fica em pleno campo. Não é raro o dia em que o vento nos traz ligeiros (felizmente) eflúvios de estrume. Não tem um metro quadrado de "imobiliário", aspas dedicadas às luminárias do nosso querido por assim dizer país, que do alto da sua sabedoria dizem "uma marina sem imobiliário não é rentável" e abanam a cabeça, talvez para ver se encontram mais uma asneira ou duas naquele vazio todo oco que lhes é a cabeça.

(A marina é pequena e perdida no meio de nada, mas isso não me impediu de encontrar um tipo que viveu em Portugal e conhece o G. O'Neill. Se por acaso alguém ler isto e vir o G. por favor diga-lhe que tem um abraço do Stephen (desenhador de caravelas e outros barcos antigos para museus, filmes, etc.. Em breve na série Encontros).

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Hoje vou às compras em San Francisco. A tripulação chega hoje à noite (dois) e amanhã (uma. Vai ser um bocado apertado, o barco só tem dois camarotes, mas não é o fim do mundo). Eu vou aproveitar o último dia de calma: óculos, computador, roupa, CD, alguns livros... a lista é longa e é boa.

Depois é o programa habitual: inventário (e mais limpezas), inspecções diversas, provisões e sobressalentes, plano de viagem, clearance, e larga.

Isto, claro, se os pequeníssimos problemas que vi forem realmente pequenos. Às vezes são. E não aparecerem novos. Às vezes não.


24.3.13

Napa Valley, Califórnia, EUA, 24-03-13

Não há barco que não tenha uma história; raras são as que têm algum interesse. A do ARTIC FRONT pode não ser muito original, mas é das mais humanas que tenho conhecido: um senhor constrói um barco durante dezanove anos; muito pouco tempo depois de o barco ficar pronto adoece gravemente e dá-o a um amigo. Este não se interessa por barcos; deixa-o morrer tranquilamente num canto. Ao fim de dez anos (ou seja, quase trinta depois de ter começado a ser construído) o "amigo" entre aspas de propósito decide vendê-lo. Enter M., que o compra por um preço que faz a uva mijona passar por caviar (verdade seja dita que levou ano e meio a fechar o negócio ) e enche o bote de mimos.

Finalmente o barco vai servir para aquilo por que foi construído: dar vida a um sonho. Trinta e dois anos depois.

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Ontem foi o primeiro dia de trabalho a sério. Limpeza, claro. Há muitas razões pelas quais pessoas asseadas, civilizadas, educadas conseguem viver em barcos imundos; mas bem espremidas vão todas dar ao mesmo: não é o seu ambiente natural, e não pensam que certas regras são universais (não incluo uma certa e determinada nacionalidade nesta explicação; pouco interessa).

Na verdade, limpar uma embarcação - e sobretudo limpá-la a fundo, como vamos fazer nestes três ou quatro próximos dias - é uma tarefa de que gosto muito. É a melhor maneira de a ficar a conhecer, literalmente por dentro e por fora. É como namorar uma senhora apesar de já termos decidido que a resposta é sim; só queremos conhecê-la um bocadinho melhor antes.

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Pela primeira vez desde que atravessei o Atlântico no D. H. tenho um armador que não sabe tudo. É indecente, de tão bom.

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Sexta vamos para San Francisco e sábado largamos. Não sou supersticioso mas não gosto de correr riscos inúteis; não me passaria pela cabeça largar numa sexta-feira para uma viagem de três mil milhas.

Não sei se vamos conseguir respeitar o ETD, mas como sempre prefiro ter uma data e ajustá-la a trabalhar sine die. "Largamos quando estivermos prontos" é receita segura de desastre.

23.3.13

Napa Valley, California, EUA, 23-03-13

Um bocadinho de frio não faz mal, antes pelo  contrário. Espicaça, estimula, refresca, faz-nos andar depressa.

A viagem foi longa e demolidora. Em Newark preferi comer um bacalhau a ir passar uma hora ou duas em Nova Iorque. Erro. O bacalhau não estava grande coisa, e o preço não teria sido muito diferente do que acabei por pagar na Adega Grill, um restaurante no qal se pede bacalhau assado e a encantadora rapariga brasileira que nos serve pergunta "com arroz?" Valeram os dois copos de Duas Quintas que bebi com o Júlio Quirino, que de repente se sentou ao meu lado, vindo de Évora.

O ARTIC FRONT está em Napa Valley, em plena região vinícola. Quando vamos almoçar ou jantar, M. (o armador) e eu passamos por extensas vinhas que me fazem lembrar a França.  Como o barco é um espécie de AQUARELLE ligeiramente maior acho que sim, corresponde, está em ordem.

O AQUARELLE foi o primeiro barco como qual trabalhei para mim. Era um cofre-forte de 35 pés, com dois camarotes e linhas cuja função não eram fazer o barco andar, mas manté-lo a flutuar acontecesse o que acontecesse, viesse o que viesse.

Foi com ele que comecei uma empresa de charter nos Açores. A vida dá voltas como um tipo com cálculos renais se contorce e esperneia na cama. Espero que a hipótese de Marx sobre a repetição da história não se lhe aplique.

Mas é-me simpático, apesar da sua enorme capuchana - as capuchanas estão para as embarcações como as marquises para os prédios - das caixas enormes com que M. encheu o convés,  das duas demãos de tinta de que precisa (e vai levar, quando chegarmos a Quepos).

Vai ser a minha casa, até encontrar uma em terra.

Agora há trabalho e muito, para levar esta coisa até lá.




21.3.13

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 21-03-13

Fui.

O muro

É um tipo dos seus sessenta anos; vejo-o muitas vezes nos bares e cafés da nossa "cidade" (com aspas, porque não passa de uma aldeola a que só a indigência mental dos nossos autarcas e governantes permite chamar cidade). Anda quase sempre sozinho. Pede uma garrafa de vinho tinto (a mesma marca) e bebe-a, metódica, regularmente, copo a copo. Cumprimentamo-nos, mas não nos conhecemos. Hoje o café estava cheio e perguntei-lhe se se importava que me sentasse à sua mesa.

- Claro, sente-se. Com muito prazer. O meu nome é ...

Era estranhamente afável, para uma pessoa que raramente vejo acompanhada.

A nossa conversa começou, depois das cordialidades habituais, quando eu lhe disse que lhe admirava o método com que o via beber o vinho, sempre muito calmo, nunca um excesso, com a regularidade de um autocarro suíço.

- Sabe, sou um tipo metódico em tudo o que faço. Passei muitos anos a erigir um muro à minha volta (ou melhor, dentro de mim). Não o estou a aborrecer, pois não? As pessoas solitárias abrem-se muito facilmente com estranhos, não é? Nós não somos bem estranhos, cruzamo-nos muitas vezes. Enfim, continuando: construí esse muro porque em jovem era muito emotivo, muito sentimental, presa constante de vastas e tumultuosas emoções. Passei anos a pôr-lhe defesa em cima de defesa, a acarinhá-lo, a aprender a usá-lo.

É um muro que exige uma atenção constante, precisa de muito carinho. Há uns anos apaixonei-me por uma senhora, uma rapariga (era quase da minha idade, mas não tinha idade) excepcional, bondosa, inteligente, complexa como já não se fazem. Gosto de pessoas complexas, sabe? São o complemento ideal para a minha platitude. Sou um tipo chato, sensaborão, banal. Vejo-o sorrir. Não estou à pesca de cumprimentos.

A verdade é que essa rapariga (ou senhora, ou mulher, como preferir) me seduziu, me encantou, me transportou para um mundo que eu desconhecia totalmente: o da alegria.

Mas eu levei comigo o meu muro. Já andava com ele há tanto tempo que não sabia dar um passo sem ele, fora dele. Acontecia-me mesmo esquecer-me dele. E um dia ela fartou-se, claro. Sabe como são as mulheres: quando dizem que não é não. Nós somos mais dados ao compromisso, ao nem sim mas também. Elas não: quando cortam cortam de vez, como cortam o cordão umbilical.

E o meu muro voou em estilhaços. Era um monte de cacos espalhados por aí, inúteis, irrecuperáveis.

Foi há três anos. Ainda estou a pensar se devo voltar a construir um muro, ou se devo aprender a viver nu no meio das emoções e sentimentos. Verdade seja dita que neste momento não tenho emoções nem sentimentos nem nada disso, graças a Deus. Mas nunca se sabe, não acha?

20.3.13

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 20-03-13

O dia começou bem, se se pode chamar começar a um almoço. Tive direito às minhas fajitas, porção dupla; a Sandra não brinca em serviço. Não sei o que fiz entretanto, talvez porque não seja muito importante [sei, fui à praia]. O jantar foi um um  churrasco na doca, desta vez do 2-L.

É o meu último em Antígua; foi um resumo condensado, justo, correcto da minha vida nesta ilha.

Conheci A. (ou B., tem vários nomes), maquinista do 2-L. Tem trinta e oito anos e fala-me do relógio biológico. Conto-lhe que esse tal de relógio dá saltos, avança e pára, recua e pula; como todos os outros relógios. A idade não tem nada a ver.

É um tipo inteligente, sensível e culto. Não percebe que eu queira ter filhos agora, com dois já tão crescidos. Não lhe digo que querer não é o verbo adequado. O verbo é outro, mais difícil do que a vontade. Querer é uma tradução muito aproximada, falaciosa.

O churrasco estava francamente bom. Um chefe num mega iate ganha entre sete mil e quinhentos e nove mil e quinhentos dólares por mês, mas transpira cada um desses dólares, e merece-os.

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Havia dois runs à prova, ontem. Um, o Post Office Rum (o senhor também gere os correios, para além da bomba de gasolina) é bom, sem mais. Forte e saboroso, mas sem corpo, sem cuisse, como diria um francês. O outro é francamente mau, não vale sequer a pena falar dele.

A quarenta EC o galão, o Post Office Rum vale francamente o dinheiro que custa. Muito mais do que o dinheiro que custa.

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Faltam quatorze horas para me ir embora de Antígua.

Relativismo

Alguém devia explicar às jovens (e menos jovens, verdade seja dita) senhoras de hoje que o soutien é uma peça de roupa interior, não uma peça de roupa exterior.

E alguém devia explicar aos velhos que o soutien hoje é uma peça de roupa exterior, e já não uma peça de roupa interior.

Música de Roma Antiga

19.3.13

Palavras

Era preciso escrever, mas escorregam-me das mãos as palavras e é impossível apanhá-las. Como viver num mundo sem palavras? Felicidade é uma palavra. Amanhã. Futuro. Palavras, nada mais do que palavras - mas nada há para além das palavras.

Corpo é uma palavra? Amor? Seios, olhos, ventre? 

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 19-03-13

A praia chama-se Windward Beach. Passei-lhe ao largo inúmeras vezes, mas só há meia dúzia de dias a visitei por terra. Tem pouca gente: não tem sombra, o acesso à água é difícil, não há lugar para estacionar.

Hoje estava totalmente vazia e eu aproveitei para tomar banho e nadar como gosto; só estava eu e o Jon Voigt do Coming Home, ele na cadeira de rodas dele e eu na minha, que felizmente não se vê e não me impede de andar. Ficámos os dois por ali a boiar, a apreciar a beleza do sítio, a nadar devagarinho.

Depois ele foi-se embora e fiquei sozinho.

Não gosto muito de praia, mas também isto está a mudar. É simplesmente preciso seguir algumas regras simples, e a primeira é que a praia não deve ter mais ninguém; a segunda é não levarmos livros ou outra qualquer distracção; a terceira é passar mais tempo dentro de água do que fora dela.

Nada que não se tenha num barco? Não: num barco falta a paisagem, linda de morrer. E duvido que o Jon Voigt tivesse tido a paciência de me fazer companhia aquele tempo todo, se tivesse um barco com que me ocupar.

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Amanhã deixo de contar os dias e começo a contar as horas. E a Sandra do Skullduggery prometeu-me uma Fajita como presente de despedida.

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Como sempre vamo-nos embora de um país e descobrimos que nos fugiram coisas sem fim. Ontem no churrasco do A. fiquei a saber que o D. do Waterfront vende dois runs aparentemente magníficos. Um feito pelo irmão, também D.; e outro por um senhor que tem uma bomba de gasolina no meio da ilha e faz rum nos tempos livres.

É para lá que vou agora. Espero que os runs sejam tão bons como me garantiram; e se tal for o caso, ainda bem que só os descobri agora.

Encontros

Com a Carlotta e o Oliver, que estão a dar a volta ao mundo num Rival 32. 

(Primeiro de uma nova série de posts aqui no Diário).

Leituras

Texaco, de Patrick Chamoiseau - uma magnífica, maravilhosa, mágica saga sobre a Martinique, contada com uma notável maestria da narrativa. A ler absolutamente (infelizmente é intraduzível - ou então tiro o meu chapéu a quem conseguir traduzir).

The Five Languages of Love, de Gary Chapman - não sou grande fã de livros de auto-ajuda e similares. Regra geral são uma mistura de banalidades, meias verdades e mentiras completas envoltas numa prosa com mais imagens do que rigor. A este acresce o adicional defeito de o senhor ser católico, ou cristão (se bem a presença de Deus não seja muito pesada, felizmente).

Não foge muito à regra, mas além das banalidades tem algumas verdades interessantes. Chapman é conselheiro matrimonial há trinta anos, e desenvolveu um conceito de "línguas" do amor - formas de amar que são tão diferentes umas das outras como o inglês e o chinês, por exemplo.

Essas línguas são:
- Palavras de afirmação (as traduções são minhas  e são fracas);
- Tempo de qualidade;
- Presentes;
- Actos de serviço;
- Tocar.

Duas pessoas podem amar-se muito, mas se uma "falar" digamos Tempo de qualidade e outra Actos de serviço mais tarde ou mais cedo terão problemas.

Esse mais tarde ou mais cedo - e esta é a parte que mais me interessou, porque era uma teoria minha e nunca a vira tão bem explicada - aparece normalmente à volta dos dois anos de uma relação. O amor-sentimento (o termo é meu) dura em média dois anos (como de costume, os pormenores sobre as pesquisas que o demonstram são muito vagos); depois disso é preciso querer amar o outro - falar a sua língua. O amor - vontade (ditto) é o mais importante, porque é o que cimenta a relação para o resto da vida (obviamente querer amar é um sentimento, também).

The Command of the Oceans, A naval History of Britain, 1649 - 1815 de N. A. M. Rodger - uma obra magistral, com um nível de pormenor e uma qualidade literária que fazem dela leitura obrigatória tanto para leigos como para especialistas. Alguém devia empreender uma coisa semelhante sobre Portugal.

Lágrimas, crocodilos

Como farão os velhos crocodilos quando precisam de chorar lágrimas a sério?

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 19-03-13

[18-03-13]
Escrevo na pérgola do Reef Gardens, um dos meus lugares favoritos no mundo. Ao longe, Monserrate não se vê, envolta em núvens. Está normal; nos últimos dias tem estado claramente visível, as suas três bossas a fazer lembrar o monstro de Loch Ness ou um dragão semi-submerso, penacho de fumo a sair-lhe das narinas. Mas tanta visibilidade tanto tempo é rara nestas paragens quentes e húmidas.

Da baía também exala o habitual silêncio; é espantoso como esta paisagem consegue apagar os sons todos que lhe são estranhos: a conversa do casal numa das mesas do jardim, o zumzum do tráfego nesta hora de regresso a casa, o ocasional avião. Quando olho para a baía tudo o que vejo é silêncio, barcos fundeados, silêncio, um dinghy a puxar um esquiador, em silêncio e tão longe que parecem miniaturas. Tudo parece a cena de um filme ao qual um Deus misericordioso tivesse tirado o som.

A harmonia - palavra que há quatro meses não me ocorre - volta, pouco a pouco.

Penso muitas vezes que Bequia é o lugar onde morrerei, se esse mesmo Deus misericordioso mo conceder; Antígua, em contrapartida, é um lugar de vida, com seus altos e baixos, os seus cumes e abismos, harmonias e convulsões.

O silêncio continua: palpável, sólido como betão armado, visível. Um pequeno sloop sai da baía, pano todo em cima; o sol aproxima-se da colina atrás da qual sei que se esconderá daqui a pouco; penso que antes disso tenho um churrasco no A., para o qual P. simpaticamente me convidou. Sinto-me como se estivesse a chegar pela primera vez aqui. A harmonia é um país novo.

Sei que vou demorar muito tempo a subir a íngreme, longa e solitária encosta que tenho pela proa; sei que um dia serei de novo feliz, e que amanhã não é a véspera desse dia. Mas só me interessa o destino, não o tempo que demorarei a atingi-lo. Olho para esta baía, para este silêncio e é esse destino que vejo, essa felicidade que me espera ao longe. Eles não mentem.

Os mastros e os brandais brilham, com o sol a bater-lhes quase na perpendicular. Ontem via neles as barras de uma prisão. Hoje vejo instrumentos musicais mudos; conheço-lhes tão bem os sons... Em breve os ouvirei de novo.

18.3.13

(Quase)

A minha estadia em Antígua está muito perto do fim. Acabo passar os piores dois meses da minha vida. Juste retour des choses, diriam os nossos amigos francófonos: foi aqui que passei alguns dos melhores e mais felizes meses de sempre (se fosse preciso fazer uma contabilidade: os dias felizes batem os infelizes).

Com esta partida acaba não só um período como acaba uma vida, e começa outra. Por acaso na Costa Rica, mas se tivesse ficado aqui seria a mesma coisa: as vidas não dependem dos locais onde as vivemos.

Abordo esta nova etapa motivado, confiante, de novo ao leme. Não acredito em recomeços do zero, em tabulæ rasa, em metamorfoses; mas acredito que cada etapa pode fazer de nós uma pessoa melhor ou pior, que algumas coisas em nós podem mudar, para melhor como para pior.

Tenho pedido bastantes informações sobre a Costa Rica, e todas concordam: um país pouco corrupto, lindo de morrer, com um elevadíssimo potencial para charter. E apercebo-me de que no fundo não conheço Antigua. Normalmente interesso-me pela política, pela economia, pela sociedade dos países onde vivo. Deste - na primeira época por estar a trabalhar todos os dias naquilo a que a minha filha chamava um "planeta paralelo", nesta por ter outras coisas em que pensar (e ter trabalhado, também) - não sei nada. Sei que gosto dele, da simpatia das pessoas, da beleza dos sítios onde vivo; pouco mais. É muito, e simultanamente pouco.

É possível que volte cá: nunca é uma palavra que engana muito, como quase, de resto. Não sei. Do passado só me interessa o pouco que transita para o futuro; o que vai para o baú não me seduz; e cada vez menos, talvez por o baú começar a estar muito cheio.

Conto os dias que faltam com impaciência; em breve contarei as horas; em breve, de Antígua não ficarão mais do que os dias de felicidade que aqui vivi. Os outros já estão (quase) no baú.

17.3.13

Amor, tempo

O amor é uma coisa de nada sabemos, apesar de nele vivermos há muito tempo. Talvez devêssemos começar por aprender algo sobre o tempo, antes de aprendermos sobre o amor.

St. Patrick

Porque se celebram os santos com alegria, bebidas e festas? A vida deles foi uma seca.

Por onde anda a minha mente - II

Cafe Zoetrope, San Francisco

Basil's Bar, Moustique

Petit Baobab, San Francisco

Por onde anda a minha mente

Plan of Toshiba San Francsico

Plan of Second Hand Bykes San Francisco

Plan of Opthalmologists San Francisco

Plan of Music Shops San Francisco. (A minha favorita é a A, Amoeba Music. E não sou o único.)


(Não há mapa para "Bookstores San Francisco").



Dias

Os dias têm demasiado espaço; é impossível arrumar neles o que quer que seja. Praia, Internet, dormir, rum punch no Mad Mongoose, ler (leio muito; é a única coisa que faço muito, estes dias)... Faço tudo isto e ainda sobra dia, sobra montes de dia, como se não tivessem princípio nem fim, como se todos fossem um só, como um saco demasiado grande para a parca roupa do homem.

16.3.13

Time

"There will be time to murder and create,
And time for all the works and days of hands
That lift and drop a question on your plate;
Time for you and time for me,
And time yet for a hundred indecisions,
And for a hundred visions and revisions,
Before the taking of a toast and tea."

T. S. Eliot, in The love Song of J. Alfred Prufrock

Algumas considerações avulsas sobre abutres

Um abutre é uma ave que tem uma concepção muito limitada da vida.

Há muitos anos um senhor chamado Griffith teve uma intuição genial: " se eu cortar um abutre às rodelas fico sem abutre, mas ganho uma história".

Le français étant une langue sophistiquée il faut que je commence à l'inclure dans ces textes-couillonnades (couillonades est un mot composé: couilles = tomates, nades = riens. Ou seja, textos sem tomates).

Foi de resto ainsi que les sandes de chouriço nasceram: o abutre ouviu falar da genial intuição do outro e pôs-se na alheta; sem pássaro, Griffith s'est débrouillé avec un chouriço (en français chorizo).

Um abutre, em francês vautour (vau = vou, tour = volta. Ou seja, um abutre é uma ave que vai dar uma volta) c'est un grand oiseau noir qui parfois nous chauffe les rêves, parfois nous les mange. Totalement chauve, on le reconnaît facilement: il sent la mort, essence de vie.

Um abutre embalsamado numa sala de estar é um objecto que alegra o ambiente, torna-o mais leve, cristalino.

A bebida favorita dos abutres vivos é o café; quando mortos preferem o rum punch, uma mistura de rum, sumo de ananás, sumo de laranja e bitter Angostura, polvilhada com noz moscada.

Je vais faire un tour sur le dos  de mon pote le vautour, on va passer à travers les nuages de suie, on va nager ensemble sous la pluie. Au retour l'on sera noirs, noirs.

A pessoa que iniciou os abutres à revolução sexual chama-se Wilhelm Reich. Foi preso por isso. Morreu quando um abutre o foi buscar à prisão e bateu com ele repetida, voluntária e violentamente contra a torre do relógio da nossa cidade. Raoul Vaneigem escreveu o epitáfio. "La symphonie des cris et des paroles offre au décor des rues une dimension mouvante", começava. "Là où il n'est pas accepté, le désespoir tend le plus souvent à n'être plus perceptible". (Os abutres são o melhor inimigo do desespero).

Amer quer dizer há mar perto (a ausência de abutres nesta frase revela a genial vastidão da litote, da ausência e dos abutres eux-mêmes).

Noite, camélias

A piscina congelou. Tu estavas a saltar na minha direcção, água pela cintura, braços levantados, sorriso de um lado ao outra da cara, os seios espetados e foi nessa posição que ficaste.

O teu corpo imóvel brilha, estátua de gelo à alegria.

Ando de um lado para o outro à volta da piscina, testo a espessura do gelo, tento tocar-te. Mas o braço pára a meio caminho. Não me ouves, não me vês. Imóvel, braços levantados,  a tua alegria reflecte-se no gelo límpido que é agora o conteúdo da piscina.

Vou-me embora.

No bar o barman espera-me com um Alexander. Está encarnado e pergunto-lhe "de certeza não fizeste um Bloody Mary?" e ele respondeu "Não, é um Alexander, mas fi-lo com sangue em vez de natas".

- Não gosto de sangue.
- Experimenta este, é bom. E ficou-me muito barato, comprei-o no bordel da senhora das Camélias.
- Uma puta tuberculosa!!!
- Sim, é por isso que ficou tão barato. Prova-o.

No céu dois corvos fazem um concurso de advérbios de modo. Cada um podia escolhe rum eixo paradigmático. Rocco, o corvo ruivo que tinha muitos irmãos, escolheu  o horror como eixo. Luchino, o outro, escolheu morte. (São antónimos, ao contrário do que certas mentes perversas pretendem). Não acabará tão cedo, o concurso.

- Talvez nunca acabe - grasna Rocco num intervalo.
- Não sei como fizeste para saber o que estava a pensar.
- Leio em ti como numa parangona. Ou como na água congelada de uma piscina, onde uma estátua à alegria se desfaz, lentamente.

- Fala - digo-te, de regresso à piscina. - Diz qualquer coisa.

A fuligem de uma fábrica dos arredores começa a cobrir-nos. "O pôr-do-sol chegou mais cedo, hoje". Não consigo fazer-te rir. O gelo está cada vez mais escuro.

A noite, a fuligem, o silêncio, o sangue do Alexander e os dois corvos a grasnar no céu ganham: amanhã as camélias serão livres.

15.3.13

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 15-03-13 / II

Um tema que me é caro: a hierarquia, o respeito, a obediência. Um marinheiro só reconhece uma hierarquia: a do saber; e só respeita quem merece ser respeitado - a quem não merece o mar encarrega-se rapidamente de pôr no seu lugar.

Nem hoje, com a disciplina a bordo muito mais institucionalizada do que no séc. XVII, um capitão faz o que quer da sua tripulação se não for por ela amado e respeitado. Em contrapartida, se o for é capaz de os levar a fazer tudo e mais alguma coisa, não há à face da terra ser mais leal do que um marinheiro.

As razões para isto são óbvias: o mar não se compadece com hierarquias baseadas em nomes, títulos, aldrabices ou seja o que for que não seja saber. E a sobrevivência depende do grupo, nunca de um indivíduo só.

A este respeito encontrei hoje duas passagens num livro que estou a ler, chamado The Command of the Ocean, A Naval History of Britain, 1649 - 1815.

O livro é monumental, em todos os sentidos do termo. Muito gostaria eu de ter uma coisa semelhante  em e sobre Portugal.

"Contemporaries were far more impressed by the Navy's relaxed, not to say chaotic discipline. By modern standards the authority of a sea officer was weak, and ships functioned at sea on an implicit basis of co-operation and consent which sprang from the experience of seamen bred from boyhood to the necessity of teamwork for survival."

" ...but he had wrecked the system of mutual respect on which all naval discipline ultimately rested."

País, podres

Portugal é um país de novos ricos e velhos podres.

(Não, Mértola não é em Portugal.)

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 15-03-13

Numa indústria que conta notoriamente poucos portugueses ontem encontrei dois, o P. e o C. Ambos trabalharam apara mim no início das suas carreiras. P. é hoje capitão de um veleiro de 33 m; C. é o imediato dele, mas tem uma longa história de comandos tanto de barcos a motor como de barcos à vela. Como bons portugueses andam às turras e C. vai desembarcar e voltar para Maiorca, onde vive com a mulher e as duas filhas. Os portugueses são os piores inimigos de si próprios.

Foi um prazer, mas não só: ontem o orgulho deu uma voltinha por aqui.

........
"Cada dia que te vejo estás melhor", diz-me B., do Seabreeze. E termina, em simultâneo comigo: "está mais perto".

14.3.13

Falmouth Harbour, Antigua e Barbuda, 14-03-13

Daqui a precisamente uma semana (se não houver atrasos, claro) estarei a embarcar no avião que me levará para San Francisco. Estou tenso, impaciente, nervoso; sinto-me como aquelas plantas submarinas que estão presas a uma rocha e se agitam com a corrente, como se pedissem ao deus delas que as libertasse, as deixasse ir.

Uma semana é um marco importante. A partir de agora faltam dias; a unidade inferior será a hora. Nunca pensei que quereria tanto deixar Antígua; (e não quero, preferiria de longe ter encontrado aqui um emprego que me permitisse parar um bocadinho). Mas não encontrei; resta-me esperar não ter perdido com a troca.

Antígua não é um país no qual se possa passar muito tempo sem fazer nada. Para além de procurar day work - uma coisa que me leva cerca de uma hora todas as manhãs (enfim, as manhãs em que o procuro) - não faço mais nada. Vou à praia, de que não sou grande fâ; às cinco da tarde bebo o meu primeiro rum punch no Mad Mongoose (hoje foi uma excepção, mas tinha um pedido de uma amiga, daquelas a quem não se pode dizer não). Ando uma hora por dia. Leio muito, muito.

Nada.

........
Ontem houve uma festa na praia. Em Antígua há festas todos os dias - dock parties, beach parties, theme parties, WTF parties. Não sou muito de parties, mas o de ontem foi agradável. Pelo menos o pouco tempo que lá passei: o pôr-do-sol estava lindo, o grupo de pessoas pequeno e simpático, a música ao vivo conhecida e um pouco repetida, mas como sempre bem executada pelos Fruto de la Manga.

Mas vim-me embora cedo. Ando com pouca paciência para festas, para a alegria e conversa de circunstância.

Daqui a uma semana ressuscito.

Pele

"Desconfia de todas as iniciativas que te obrigam a mudar de roupa", diz Thoreau já não sei onde [Walden].

Segui - ou pelo menos ouvi - sempre os teus conselhos, como sabes. Mas eu não estou a mudar de roupa, meu caro Henrique David. Estou a mudar de pele.

12.3.13

Conclaves

Um gajo qualquer retirou-se do cargo que ocupava e agora há conclaves e fumo para saber quem o vai substituir. Não percebo a comoção toda que isso provoca. Gajos que vivem sem mulheres (ou, pior ainda, dizem que), acreditam nas coisas mais bizarras e comunicam por sinais de fumo merecem-me pouca credibilidade.

Ditto

Acompanhamento musical...

...do post infra.

Vidas

Uma vida é uma espécie de placa tectónica dentro da qual nos movemos sem que, muitas vezes, nos apercebamos de que ela também se move, ou da direcção desse movimento.

Já vivi muitas vidas: oficial da marinha mercante, emigrante ilegal e depois legal na Suíça, tripulante e skipper de embarcações de recreio, empresário de insucesso (a taxa de insucesso é de 100%, feito pouco comum; pelo menos no país de sucesso que Portugal é), trabalhador humanitário em África, de novo empresário, de novo skipper (isto se definirmos as vidas pela ocupação profissional, o que até agora tem sido o meu caso. Mas há outras formas de as definir).

Ao contrário das verdadeiras placas tectónicas, as da vida voltam para trás, derrapam, procuram-se; tal como elas, encavalitam-se umas nas outras e por vezes produzem tremores de terra (ou de alma, nas pessoas que a têm).

É muito difícil definir exactamente como ou quando acaba uma vida e começa outra. Não se muda de vida como ou com a lua. São processos lentos, por vezes dolorosos por vezes felizes, pesados ou leves, rápidos ou lentos, claros ou obscuros.

Estou precisamente num momento de mudança de vida. É-me difícil dizer quando começou esta; sob tortura apontaria para Dezembro de 1997, quando voltei para Moçambique (foi uma asneira monumental, a maior de todas as vidas e todas as asneiras que jamais fiz). E se tivesse de lhe apontar o fim, mencionaria muito provavelmente um determinado dia do mês de Abril de 2011, no Jardim da Estrela. Talvez tenha sido esse o primeiro dia do fim desta vida - ou, se quisermos ser optimistas, e eu sou - o primeiro dia da vida que agora está, finalmente, a despontar. Uma vida que começou com um erro e acabou com outro tem, pelo menos a vantagem da simetria (apresso-me  a esclarecer, não vá o diabo tecê-las, que o erro não foi esse dia de Abril; foi muito mais tarde).

O local onde as vidas se vivem é mais ou menos irrelevante; talvez seja por isso que gosto de me definir como viajante, tanto como marinheiro. Sou um viajante que viaja de barco (o meio de transporte e de vida favorito) e de autocarro, de avião e a pé, de bicicleta ou de placa tectónica. Esta que agora começa - talvez tenha sido hoje o primeiro dia, porque deixei o barco onde estava a dormir e voltei para o Reef Gardens, onde vou viver os nove dias que me separam do avião para San Francisco - vai iniciar-se, muito provavelmente (só acredito quando lá estiver, com a autorização de trabalho na mão) na Costa Rica.

Para lá, mais precisamente para Quepos, serão (provavelmente, nunca é de mais repeti-lo) enviados os caixotes que em Outubro de 2010 deixei em S. João do Estoril com livros, discos, bibelots, roupa e fotografias: e uma bicicleta, em Oeiras. Ou seja: tudo o que tenho das vidas todas que vivi.  Não é muito, antes pelo contrário. Mas eu acredito que a quantidade de coisas que acumulamos ao longo das nossas vidas é inversamente proporcional à intensidade com que as vivemos. As minhas foram tudo menos mornas.

Um especialista em dependências disse-me um dia que não há ex-alcoólicos, ou ex-heroinómanos. Há dependentes (hoje diz-se adictos, porque a língua por vezes gosta de se encanalhar, tal como a vida) que não bebem ou não se injectam. Provavelmente o mesmo aplica-se ao desenraizamento. Não há ex-desenraizados; só viajantes que decidiram parar.

Eu vou parar. Não sei por quanto tempo nem onde, mas sei que vou. Depois logo se vê. Se não estiver demasiado escuro, claro.

11.3.13

Chuva, casa

É da chuva que quero falar. Dos vários tipos de chuva. Lâminas finas, afiadas, brilhantes como sangue recém-saído de uma artéria; bocados de vidro moído, finos de entrarem pelos poros; casas. É das casas que quero falar. Agarro uma e digo-lhe "agora és minha para sempre" e assim foi. Levo-a comigo para onde quer que vá. Isto aconteceu há muitos anos. Viveu no mar, na terras quentes do ventre do mundo, nas terras gélidas do centro.

Hoje a minha casa disse-me "preciso de raízes. Se não encontrares uma terra para eu penetrar, uma terra para eu fecundar seco e caio como os seios de uma velha infértil". "Terás a terra toda e o tempo, quando eu morrer". "Não posso esperar até lá. Morrerei antes, seca e vazia".

A chuva continua.

Encontrei uma terra, entre o mar e o vulcão. "Não posso ir mais longe". "Aqui estamos bem, se conseguires resistir ao apelo do vulcão e ao do mar azul".

"A minha cratera está aberta para ti", diz-me o vulcão. "Olha para este azul infinito", diz o mar. A minha casa não lhe dá ouvidos.

Eu sou a minha casa. As suas raízes são as minhas, as suas paredes a minha pele, as janelas os olhos. Juntos fecundámos a terra. A minha casa. A minha chuva.

Retratos implausíveis

Farto de ser filho, resolveu tornar-se pai.

Corpo avulso

O ar está pesado; impossível respirar. Puxo os pulmões para fora e encho-os à mão. Acontece muitas vezes. Uma sorte ter um corpo desmontável, fácil de reparar. Aproveito para tratar da orelha interna: um escopro e um martelo resolvem o assunto. Para os pulmões foi necessário ir a bordo buscar uma bomba de encher dinghies. Passada a primeira urgência ponho a bomba no pé, o seu lugar, e continuo, ritmicamente. Os alvéolos parecem em bom estado, como sempre; pelo menos aos meus olhos leigos.

A pele foi-me arrancada há muito tempo. Passeio-me em carne viva, a mais pequena coisa provoca-me indescrítiveis acessos de febre. Felizmente resisto melhor à dor física do que à psíquica (nada me atinge mentalmente, daí a falta de defesas naturais).

A cada passo que dou arrisco uma infecção, a morte. Mas lá vou resistindo, sem ajuda médica - aprendi a viver sozinho, a convivência com outros seres humanos era-me doentia. Ou seria eu o doente? A minha carne é pegajosa, mas é limpa regularmente: os pulmões vêm para o exterior pelo menos uma vez por semana. Apanham ar. O problema da orelha interna é novo. Penso tê-lo resolvido agora, de uma vez por todas. Talvez possa deixar de ouvir algumas coisas. Talvez; seria uma sorte, ouvir como dantes amava: porque e quando quero. Quando frequentava as pessoas - sobretudo as mulheres - tinha muitas discussões com elas por causa disto. Ama-se porque se quer amar; não se é vítima do amor, é-se mestre. Senhor, se preferirem.

O mesmo se passa com o ambiente sonoro. Nada como eliminá-lo quando queremos. E ligá-lo apenas para o que vale a pena: a Ressurreição de Mahler, por exemplo. Certos madrigais de Gesualdo, cânticos de von Bingen, a Viagem Magnífica por (ou de?) Maria João Pires, Glenn Gould, uma peça de Cecil Taylor. Lembro-me também com prazer de alguns gemidos, alguns suspiros, do ligeiro marulhar da água num casco que avança contra o vento, o fremir longínquo das folhas das palmeiras numa praia tropical, acariciadas pelos ventos alísios. Sons que poderei, com sorte, continuar a ouvir, eliminando a horrorosa cacofonia das vozes e desejos humanos.

Posso virar-me do avesso quando quero, e pôr-me do direito outra vez em menos de um fósforo (enfim, se o fósforo for grande, às vezes; nem sempre). Tenho um corpo desmontável, sou feito de peças avulsas.

Para além desta não tenho outras qualidades (no sentido de características; um corpo desmontável não é uma qualidade). Nunca tive. Sou o que sou e é tudo o que sou, como dizia a personagem de uma banda desenhada infantil há muitos anos. Muitos, tantos que eu ainda tinha pele, ainda acreditava nas virtudes redentoras da música (e da arte em geral), ainda cria que um dia o mundo seria um lugar no qual poderia viver inteiro. Hoje sei que não: só um corpo desmontável me permite sobreviver. Posso alugá-lo às peças: um dia o fígado, por exemplo. Outro a pila; os olhos, os dedos. Comedidamente: fiquei sem pele porque a cedi vezes de mais. Agora não alugo orgão nenhum mais de uma vez por semana.

Espero ansioso o dia em que possa fazer a mesma coisa à mente. Ou melhor, aos seus produtos. Alugar emoções, sentimentos, memórias. Faria uma fortuna, com as memórias e as emoções. Emociono-me muito, e muito facilmente. Só preciso de criar defesas mais fortes do que as que tenho hoje, mas isso não deve ser difícil.

Enfim, para que quero uma fortuna? O dinheiro nunca me fez correr, excepto para o gastar quando o tinha. Agora uso-o sobretudo na manutenção do corpo. Como bem, saudavelmente. Durmo as oitos horas por noite que o médico recomendou. Não abuso do rum. A pila deixou de ser utilizada para fins pessoais ainda antes de ter ficado sem pele. Em breve, se tudo correr bem, terei um ouvido interno desligável à vontade. Aposto que há um mercado para isso. Quem não está farto da penosa babugem dos nossos colegas humanos?

Matemática

Conto os dias que faltam para me ir embora; cada um vale um milhão deles. A matemática do tédio só muito ligeiramente é menos má do que a do desespero.

10.3.13

Metacentros, lua cheia

Há dias assim, em que de repente o repente se vai e fica apenas o que apenas tem de ficar. Nada mais. Dias nus, limpos de dor, de incertezas, de núvens; dias em que as mamas voltam a brincar com as mãos, as mãos com as peles, as peles com os olhos, os olhos com o mundo e por aí abaixo até à origem do mundo. Dias em que os Velvet Underground parecem uma banda de meninos de coro, em que o mundo parece fugir para o esgoto e nada fica se não o que deve ficar: nada. Nada. A ausência de dor vale a dor da ausência; tudo se equilibra. A altura metacêntrica do mundo volta a ser positiva. Uma esfera não tem metacentros longitudinais ou transversais. Tu és o metacentro do mundo, tu és positiva. 

Tudo é positivo, hoje: desde a areia na praia até à ausência de riso no mundo. É funesto, o riso em dias de chuva. Corre-se o risco de molhar a língua, insuficientemente protegida por estes lábios vorazes.

Sorvo a vida. A qual se deixa sorver com uma facilidade desconcertante.

Faz como a tartaruga. Refugia-te na concha, rebola com o mundo. A altura metacêntrica acabará positiva. Acaba sempre. Tudo acaba por se desvanecer no som de um mar desafinado, rouco de tanto gritar por ti. Mas tu não ouves. É impossível ouvir o mar, quando estamos na piscina. É impossível ver o dia, quando estamos na cama ocupados a calcular alturas metacêntricas de corpos esféricos. As mamas, por exemplo. os teus olhos. As nádegas, semi-esferas perfeitas.

Hoje a lua cheia bateu-me à porta. Entrou antes mesmo que eu lha abrisse. Queria, disse-me, libertar-me da dor de ser eu. Dor antiga, conhecida, com a qual convivo há aproximadamente duzentos e cinquenta anos. Recusei, polida e gratamente. Que restará de mim, se me tirarem esta dor? Que serei, quando tu não fores? Prefiro o positivismo, a certeza, o conhecido. O desconhecido inquieta-me. Não sei o que será de mim quando essa porta se fechar. Em que abismo me deixará?

Mandei a lua cheia passear e ela voltou vazia; tudo se foi, explicou-me. Só fica o que tem de ficar: tu e a minha sombra, vazia de luz.

Retratos implausíveis

Sempre acreditou ser uma personagem de romance, até que aos 30 anos percebeu que era ela quem o estava a escrever.

Mais, ao acaso




Do baú, outra vez





Do baú





"Para que servem os elevadores"

Do António Cabrita.

Patrick Chamoiseau

"Solitude c'est famille liberté. Isolement, c'est manger pour serpents."

"En d'autres jours, il dut creuser de manmans-trous et partir en récolte d'os qu'il mesurait sur lui-même avant de les jeter. Il crut souvent reconnaître un tibia de Ninon. La argeur de son bras. La courbe d'une de ses côtes. Alors, ils le posait à part, pensant reconstituer sa douce."

In Texaco.

Tabula rasa

A tabula rasa não existe. Somos e seremos sempre o que fomos, menos o que queremos ser, ou seríamos, se pudéssemos. Mas é uma tentação permanente, constante. Curiosa, não é, esta necessidade de acreditar em algo que há milhares de anos se sabe não existe?

Pior - em algo que inúmeras experiências passadas nos dizem não existe?

Ditaduras

Por alguma - às vezes compreensível - razão as pessoas tendem a desculpar algumas ditaduras, a aceitá-las como inevitáveis, ou até boas. A "ditadura do amor", por exemplo; ou a do bem; ou outra qualquer do mesmo género. 

Não é verdade. Não há ditaduras boas, sejam elas do que forem - políticas, de amor, do bem ou do mal, da estupidez ou da inteligência, do vício ou da virtude. Todas as ditaduras, sem excepção são intrinsecamente más. Só a liberdade vale.

9.3.13

Blogocoisas

Um dos problemas da blogocoisa é que está carregada de coisas que lhe são exteriores, estranhas, externas. Um gajo escreve a e é lido b, c, d, e, f e tudo por aí abaixo até z.

Telefotos


Le Marin, Martinique


Le Marin, Martinique


Le Marin, Martinique




Fort-de-France, Martinique


Parnaíba, Brasil

Opções, coisas

À medida que o tempo vai passando, um gajo pode optar por uma de duas vias: ou pensar que as coisas são o que são e é tudo o que são: ou, ao contrário, pensar que elas são o que são mais o que foram e serão, menos o que poderiam ter sido vezes uma constante chamada "inconstante da vida" a dividir pela quantidade de vidas que espera viver. Falta por aí algures uma raiz quadrada e uma potência qualquer, estão decerto escondidas nalgum recanto das coisas.

Verdades, mentiras

Há muitas verdades; não só uma. Há verdades verdadeiras, verdades construídas, ficcionais, assim assim, temporárias, verdades de empréstimo, de aluguer, concretas e abstractas. 

Tal como mentiras, de resto.

Cumes, abismos

Esquecemo-nos muitas vezes, mas ao lado de cada cume há um abismo. Ou vários.

8.3.13

Palavras, tracinhos

As palavras deviam morrer, se as queremos conter? Sim, sem dúvida. Há porém uma que jamais morrerá, jamais será contida. É um substantivo, e quando se conjuga o respectivo verbo leva um pronome pessoal reflexo no fim. Ou, dito de outra maneira, um tracinho te.

Dia das mulheres

Hoje é o dia do Mundo. Parabéns a todas as mulheres, todas.

Assimetria

Amo-te porque quero amar-te é incompreensívelmente mais poderoso do que Não te amo porque não quero amar-te.

7.3.13

Dor

Num conto de O'Henry - um autor americano que passou alguns anos na prisão, injustamente esquecido, na minha opinião - um ladrão de cofres lima as unhas - a parte superior delas - até à carne para sentir melhor a combinação de números. 

A dor tem esse efeito - torna-nos mais sensíveis, faz-nos ver coisas que de outra forma não veríamos. É uma bênção.

Adenda - conheço uma escritora portuguesa cujos contos, por vezes, me fazem lembrar O'Henry. Chama-se Ana Vidal. Mas nunca esteve na prisão, felizmente, de modo as suas personagens vêm de outro meio social. 

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda






Calor.

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Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda





Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda




Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda



6.3.13

Barragem

Uma barragem contra as palavras só é eficaz se elas, as palavras se afogarem, desaparecerem todas. Sonho com cadáveres de palavras a flutuar numa água parada, podre, escura. 

Tentar contê-las mantendo-as vivas é uma perda de tempo.

Tocar no fundo?

O fundo de hoje é o tecto de amanhã.

Religião, bondade

De certa forma percebo a necessidade de religião. Um homem bom (o que está longe de querer dizer que todos os teístas são bons) não ganha muito com a bondade, neste mundo. Melhor acreditar no outro.

Resiliência, pecado

Uma amiga de há muito e muito querida dizia-me hoje que o que mais admira em mim é a capacidade de me reconstruir, de me refazer a cada cataclismo - ela assistiu a algumas das piores catástrofes pelas quais passei, e ajudou-me muito em algumas delas.

Qualquer marinheiro está habituado a lutar contra - ou melhor, a lidar com - forças que não controla (por isso de vez em quando os versos de Leornard Cohen no Sisters of Mercy - "You who must leave everything that you can not control / it starts with your family, but soon it comes around to your soul" me fazem sorrir um pouco, docemente). Lidar com o vento, o mar, o tempo, as correntes - não controlamos nada disso, mas lidamos com todas essas forças e não abandonamos.

Acontece que não abandonamos porque temos uma técnica, um saber, instintos que nos permitem sobreviver e, pior ainda, gostar do que fazemos (se bem gostar não seja o verbo adequado; mas isso agora é um pormenor).

Não sei, contudo, lidar com outras forças igualmente incontroláveis: o acaso, o infortúnio, o azar. Apesar de, verdade seja dita, serem minhas companheiras de jornada há muitos, incontáveis anos. Aos cinquenta e cinco anos ainda não aprendi a lidar com essas forças - não sei se alguém jamais aprendeu, de resto. Eu não.

Mas só conheço uma forma de reagir a tudo o que é mais forte do que eu: lutar, resistir, não me conformar, não deixar ir, não abandonar. Perder é não ir à luta, não é sair derrotado.

Só perde quem não quer voltar a ser feliz. Mesmo se, como continuam os versos acima citados, "your loneliness says that you've sinned".

St. John's, Antígua e Barbuda



St. John's, Antígua e Barbuda



St. John's, Antígua e Barbuda





St. John's, Antígua e Barbuda




5.3.13

Cacos

A vantagem dos seres humanos sobre as jarras é que quando se partem podem ser colados sem que se note. Pelo menos do exterior.

Uma proa - II


Maré vazante

A maré baixa, e quando baixa pouco há a fazer se não esperar a baixa-mar; depois começa subir - e tudo o que há a fazer é não ter ilusões: não vai durar sempre.

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda