31.12.12

Great Harbour, Jost vand Dyke, BVI, Reino Unido, 31-12-2012

A baía de Great Harbour está mais cheia de embarcações fundeadas do que o parque de estacionamento de um supermercado aos sábados. Para cima de cento e muitos. Ainda não fomo à baía ao lado, White Bay, mas deve ser a mema coisa.

Jost van Dyke, uma pequena ilha das BVI acolhe dois bares famosos na região: o Soggy Dollar - assim conhecido porque a maioria das pessoas chega lá a nado, com o dinheiro todo molhado - e o Foxy's, onde ontem comi um bife medíocre pelo qual esperei aproximadamente duas horas.

Não percebo esta necessidade de ir para onde vai toda a gente, mas é obviamente uma necessidade bastante partilhada.

O Foxy's é igual a todos os bares de praia da região;  o outro não será decerto muito diferente. Foi lá que se inventou o Painkiller, cocktail bastante bom, forçoso é reconhecer.

Ao lado dee mim está uma mesa de brasileiros. Deixou de ser raro encontrar brasileiros nestas paragens. É isso que é notável.

E pouco mais. Não sou muito de rebanhos, nem de festejos de fim de ano. Resta esperar que isto passe.

Paráfrase

Que Deus me proteja dos bons, que dos maldosos trato eu.

29.12.12

Rater

Il avait tout raté, sauf sa vie. Impossible de l'admettre à l'Académie des Vrais Ratés.

Redhook Bay, USVI, EUA, 29-12-2012

Christmas Cove é uma baía relativamente grande no sotavento de uma ilhota das USVI.

O dia acaba muito devagarinho. E., o armador, dorme no poço; C., a mulher, nada com G., um jovem suíço que começou por pedir boleia em Miami para as ilhas e acabou por se tornar indispensável. Ou quase, que isto de gente indispensável estão os cemitérios cheios, como dizia o Napoleão.

Pela primeira vez desde que cheguei a Miami tenho um momento para mim. É curto, mas vale ao menos a maravilha que é: o vento a cair, o sol também, a praia deserta com o verde a encher-se de cor-de-laranja. Estamos numa bóia, perto da praia. As bóias estão bastante afastadas umas das outras. A sensação de paz só não é total porque descubro - ou relembro? - que não há paz com distância. Só contigo ao lado estou em paz.

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Não sou muito dado a Natais, nunca fui. Mas o de 2012 vai ficar-me na memória: bolina cerrada (assistida pelo motor, sem o qual S. não bolina nem folgado) frio, chuva e aguaceiros, o vento a mudar como um boxeur bêbedo, duas paragens do dito cujo motor, um incêndio a bordo (o primeiro da minha vida) - combatido logo no princípio, ainda só havia fumo, acre e tóxico -. Foram precisos dois extintores (pequenos) para lhe pôr fim. O piloto automático avariou, o motor tinha uma fuga de água, não tínhamos frigorífico nem gás de cozinha. Se é isto um Natal.

O sol pôs-se; daqui a meia dúzia de minuta será noite. Os nadadores voltaram para bordo, encantados com a variedade e quantidade de peixes; em breve serão horas de começar a preparar o jantar.

(Peitos de frango marinados em sumo de lima, chipotle, noz moscada e "épices boucanées"; cebola frita muito lentamente com "graines à roussir" e bois d'Inde).

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A mecânica do erro é uma coisa misteriosa: um gajo pode saber que não é o primeiro e não será o último, que não há quem não os faça, que isto e aquilo. "But it still sucks", como tão bem resumiu G., o jovem suíço que todos os dias revela um bocadinho mais de qualidades.

Fiz uma asneira de palmatória, um erro de principante, de bater com a cabeça nas anteparas (a bordo não há paredes) até a partir em mil bocados - sabendo que isso não apaga a vergonha, só a atenua.

De maneira estamos de novo fundeados em Redhook Bay, de onde saímos hoje de manhã depois de uma intervenção do mecânico, à espera do mecânico. Por minha causa, minha única e exclusiva causa, cansado ou não.

A verdade é que estou exausto, e saber que tenho três dias entre este "charter" e o próximo não ajuda. O próximo é curto; pode ser que depois consiga descansar.

Hoje mandei a diaba ao diabo e bebi gin tónico, painkillers, rum; até metade de uma cerveja bebi. Felizmente era Budweiser e só consegui beber metade. Já de painkillers vou servido. Quatro metades. Não há dor que resista a esta mistura de rum,sumo de ananás e de laranja e leite de coco (mais pormenores aqui).

Há: mas não importa.

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A rapariga é novinha, quase tem as faces rosadas da Paulinha do Baralto de há 34 anos. E faz-me pensar na empregada de bar de New Orleans de há 35. Em comum têm pouco: ser americanas, loiras e jovens. E trabalhar num bar ao qual vim parar por acaso. Em New Orleans o que primeiro me atraíu foi a música - era boa, não aqueles enlatados para turistas que se ouvia na Bourbon Street. A rapariga veio por acrescento. Simpatizámos - ela estava a trabalhar ali para juntar dinheiro e prosseguir a sua viagem para o sul; eu estava de regresso a Portugal, o fim de uma viagem que me fizera ver, logo desde o início, não ser feito para a marinha mercante.

Um dia fomos (o primeiro-maquinista e eu, calhara levá-lo lá) abordados por duas senhoras bonitas e, mon Dieu, avenantes. Falámos muito, bastante - até que a minha amiga se sentiu na obrigação de me avisar que não eram mulheres. As senhoras eram homens, afinal.

Elizabeth - é o nome da empregada que nos serve - é mais jovem, mais naïve: e mais tudo o que é menos.

Pouco me importa. Daqui a pouco volto para bordo, dormir em cima da asneira que fiz hoje. Hoje é um erro atroz. Amanhã será uma história.

22.12.12

Puerto Plata, República Dominicana, 22-12-2012

A primeira vez que vi a costa cubana quase não a vi: umas sombras ao longe (não era assim tão longe) durante o dia e algumas luzes dispersas, à noite. Gostaria de ter visto mais. A minha história tem uma longínqua e indirecta relação com Cuba.

Jovem oficial da Marinha Mercante, o meu Pai fazia uma linha que transportava açúcar de Cuba para Londres. Penso, mas não tenho a certeza, que as grandes plantações estavam no sul do país; eu passei pela costa norte. Pouco importa. De qualquer forma quero um dia parar aqui e conhecer a ilha. Se possível depois da morte de Fidel Castro - ou melhor durante, para poder celebrá-la in loco.

Em Londres, a minha Mãe estudava enfermagem. Uma amiga comum apresentou-os, e um ano e alguns meses depois eu nascia, primeiro de cinco irmãos. Somos vagamente irmãos; o meu Pai morreu, a minha Mãe há muito que não é enfermeira. Da Cuba de Baptista, onde o meu Pai carregava açúcar e resistia aos assaltos das herdeiras dos grandes plantadores (se não tivesse resistido, eu seria um outro qualquer, provavelmente a viver na Miami de onde larguei há quatro dias) ficou uma costa que mal se vê, luzes dispersas, e uma tristeza difusa. Gostaria tanto de falar com Ele hoje sobre Cuba, sobre os portos onde ia e que eu quero visitar, e mais uma série de coisas que não ficaram por dizer, mas ficaram por comprender, de parte e outra.

Depois de Cuba veio Haiti. Ainda tinha menos luzes, e quando o vento mudou e passou a SE trouxe com ele um cheiro a madeira queimada que me assustou. Não era o cheiro de um incêndio, mas o de lenha que se queima para cozinhar, um odor que conheço bem de Moçambique, do Burundi, do Zaire. Eram três da manhã, e apesar de a Lua estar em quarto crescente a noite era negra de breu: vinha chuva, e para vante a escuridão era tal que não distinguia a linha da costa, a escassas duas ou três milhas.

"Quem raio está a cozinha em terra a esta hora? E para quantas pessoas? Porque não vejo a luz do fogo?" Acabei por me habituar; deve ser o cheiro da terra, tal como o Algarve tem o seu, tão bonito, quando se dobra o cabo de S. Vicente. Ou a Córsega, tão parecido com o do Algarve. Cada região deve ter um cheiro específico, embora só nos apercebamos de alguns, por causa do vento e da ausência de outros cheiros.

O teu, por exemplo, que tanta falta me faz, pela manhã antes do do café, e pela noite, antes do do sono.

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Vamos fazer uma escala técnica em Puerto Plata, na República Dominicana. Para fazer bancas, velha expressão da marinha mercante que significa meter combustível. O meu Pai gostava da vida de mar, e só a deixou a contragosto - a minha Mãe tem uma certa capacidade de persuasão, quando quer. Dessa vida trouxe com ele o vocabulário - durante dois anos disse "vamos fazer bancas", ou "vou guinar a estibordo (ou a bombordo, claro)" ou - a minha favorita - "vou atracar ali" quando guiava o automóvel; um hábito adorável (pegar no prato de sopa e levantá-lo para comer) que fazia a minha Mãe dar-lhe pontapés se por acaso acontecia durante um jantar de cerimónia e muitas histórias. Não me lembro de nenhuma passada aqui.

Eu tenho uma, demasiado longa para contar agora. Mistura uma praia, uma cabana com um banda a tocar merengues, uma simpatiquíssima família local, alguns ouriços e muito rum. E um maço de cigarros Marlboro cheio de erva até acima, coisa que me poderia ter mandado para a prisão "quinze anos, antes de ser julgado" avisou-nos o Capitão antes da chegada.

Apanhei uma das maiores bebedeiras da minha vida e a erva voltou intacta para bordo - risco dobrado.

Desta vez não tenho motivos para grandes aventuras - vai ser chegar e meter combustível, se a bomba ainda estiver aberta. Ou passar uma noite tranquila, caso contrário.

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Caso contrário. Como temia a bomba está fechada; abre amanhã às oito da manhã.

A marina é um horror, tanto tanto técnico como estético, de um kitsch como já há muito tempo não via. Felizmente é pequena.

Os locais endinheirados prezam-na muito, para os aniversários, casamentos e outras festas. Num dos dois restaurantes havia uma celebração; por coincidência - ou porque estávamos demasiado cansados para procurar o outro - foi lá que jantámos.

Não é efeito, ou defeito, da memória: as pessoas são realmente adoráveis, simpáticas. Mas o restaurante não servia um único prato local. Só pechisbecadas - mexicanas, brasileiras, alemãs - sem qualquer interesse.

Penso no restaurante que uma das minhas irmãs teve no Alentejo, que só servia comida alentejana aos fins-de-semana: "os alentejanos não saem de casa para comer comida alentejana", explicou-me R., com uma lógica imparável.

Mas a lógica devia considerar a localização; um restaurante - por sinal sublime - em Viana do Alentejo não devia servir para explicar um outro, medíocre, numa marina da costa norte da República Dominicana.

Ou talvez sim. 

17.12.12

Ontem

Ontem foi o último dia dos restos da tua vida.

16.12.12

Onde está Keynes quando precisamos dele?

"Os políticos amam (...) Keynes porque ele trouxe respeitabilidade intelectual àquilo que eles mais gostam de fazer: gastar o dinheiro dos outros. Keynes era também inimigo de aumentar os impostos quando as economias estavam fracas, mas os seus supostos herdeiros estão a esmagar consumidores e negócios com taxas cada vez mais pesadas..." (A tradução é minha, e não é literal).

Steve Forbes, no editorial da Forbes Magazine desta semana.

Vingativa, generosa

É vingativa, a vida? Sem dúvida. Mas também sabe ser generosa. Mais vale não pensar muito nela e viver, simplesmente. Com ou sem vírgula.

Miami, Florida, EUA, 16-12-2012

Acontece frequentemente chegar a uma cidade e não ter tempo para a visitar: esta vez é uma delas. S., uma soberba goeleta de 62' cujo desenho foi inspirado num Morgan 60 tem vinte e nove anos; não é bem uma caixa de surpresas, porque não é surpresa. Repara-se uma coisa e descobre-se que as quatro ou cinco que lhe ficam a montante também precisam de ser reparadas e, ou, mudadas. Por isso, de Miami tenho a vista matinal quando vou para o estaleiro, e a nocturna, muito mais bonita, quando dele regresso.

À noite os prédios da baixa estão iluminados e o fundo é o clarão do resto da cidade. O efeito parece um cenário de filme de ficção científica, como se estivéssemos a chegar a um aeroporto de uma cidade noutra galáxia.

Em Maio terei tempo de conhecer melhor esta cidade. Gosta de se fazer passar por um transplante sul-americano no lado norte do continente, mas não é: o espanhol fala-se em todo o lado, pode viver-se aqui - e muitos fazem-no - uma vida sem falar inglês, mas se se quiser ir um bocadinho mais longe do que a superfície das coisas mais vale falar inglês e perceber o mecanismo.

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Se soubesse que havia patrões como os donos do S. teria, há muito tempo, procurado um emprego fixo. E seria capaz de usar a palavra patrão sem hesitar dez segundos.

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Amanhã largo para as BVI. A última vez que estive no mar foi no dia 1 de Outubro. Dois meses e meio é muito tempo, uma eternidade.

Chega até para encontrar um trabalho permanente, de longo prazo, com um programa pré-estabelecido (no verão vamos para a Nova Inglaterra - se formos, mas isso é outra história). E ser feliz, de novo.

9.12.12

Falmouth Harbour, Antígua, Caraíbas 09-12-2012

Por onde se começa quando se volta ao princípio?

Voltei a casa. É um lar incompleto, faltam-me cá os que amo, mas não deixa de ser um lar por isso.  Falmouth Harbour deve ser o melhor sítio do mundo para se estar sozinho. Fui recebida com muito carinho, e os que cá me faltam também. Ainda não vi todos. Faltam-me, sobretudo, Sandra (a alma do Skullduggery durante a semana) e R., o segurança jamaicano que tem cara de anjo e trafica marijuana. E falta-me um trabalho que foi, afinal, o que me trouxe aqui. Mas tenho-me a mim, e já não é pouco. Até vir o trabalho (que, se Deus quiser, não há-de demorar muito), estou comigo, com os que cá estão e com os que me faltam. Sempre com os que me faltam.

A viagem à Martinique foi uma série de coincidências felizes, que só acontecem a alguém com, perdoem-me a expressão, o cu virado para a Lua. Só viajei uma vez sem ser à boleia. No último dia  dormi como uma pedra no veleiro do R., uma experiência "à antiga", não fosse o barco mais velho do que eu e o seu armador um cavalheiro como já não se fazem. Depois do último planteur da ilha no Mango Bay, jantámos no barco de um adorável casal de venezuelanos lúcidos e, consequentemente, antichavistas. Vivem na Isla Margarita e, com o que eu gasto em gasolina para encher o depósito em Portugal (cerca de 70 euros), conduzem um ano inteiro. A definição perfeita de choque civilizacional para mim -- agora fazem sentido os relatos de que, há uns anos, a gasolina na Venezuela era usada para lavar carros.

Decidi, para me despedir, conhecer Les Salines, uma praia indescritível de que o Luís me falara com uma admiração sentida --  tão grande que andou mais de uma hora para chegar à praia e outra para voltar, pingando suor, e me fez sentir estúpida por não ter ido com ele. Caminhei uma hora e depois, vendo que ainda estava longe, decidi apanhar o taxi-co. O motorista avisou-me de que só me levava até a uma povoação perto da praia, e desejou-me courage quando saí, um presságio que decidi ignorar. Comecei a andar e a pedir boleia às senhoras que via (todos os outros carros tinham homens e a minha confiança na Providência tem limites). Nada. Passados uns 15 minutos parou um carro à minha frente. O rapaz que conduzia perguntou-me onde ia e o que fazia ali àquela hora (eram 17h15, o sol estava a pôr-se e, nos trópicos, a noite cai mesmo como uma pedra num charco). Respondi-lhe que queria conhecer Les Salines e riu-se, chamou-me louca. Levou-me lá porque trabalha no Marin, de onde eu vinha e todos os dias, para evitar os engarrafamentos de regresso a Fort-de-France, dá um passeio de carro. Chegámos à praia e disse-me: «Se te despachares levo-te ao Marin.» Nem queria acreditar. A praia tinha quatro carros de turistas que já sacudiam a areia dos pés, um vendedor de gelados e uma de accras que se preparavam para voltar a casa. Vi a praia e, em dois minutos, apaixonei-me, percebi a falta de palavras e esqueci o medo que tinha sentido ao fazer aquele caminho -- eu sabia que a noite cairia, mas pensei que já que tinha começado, mais valia continuar e alguém, a tal Providência, havia de me ouvir. F. voltou a receber-me no carro atulhado de ferramentas e, como se não bastasse levar-me de volta à cidade, levou-me a ver o resto da praia, fez-me uma visita guiada, voltou a parar para acabar de comer o gelado à beira-mar. Fiquei com o seu número de telefone. Se conhecer alguém que precise de trabalhos em fibra de vidro no Marin, não o deixarei pensar duas vezes.

No dia da partida, a caminho do aeroporto carregada como um burro -- uma mala com uns 16 quilos, uma mochila com cinco e uma guitarra que não toco -- pergunto a um senhor onde se apanha o taxi-co. Diz-me: «Vais para o aeroporto? Espera um bocadinho que eu vou só pôr o Euromilhões e deixo-te lá.» Espero que o ganhe. Mais uma vez, nem queria acreditar. Como quase não acredito que conheci a M., que cantava na fila para o check-in para espantar a má-sorte de ter uma bagagem muitos quilos acima do peso permitido (um donativo de velas para uma igreja em Barbados), uma mulher interessantíssima que diz que a sua maneira de mudar o mundo é fazer lavagens cerebrais aos miúdos que ensina na sua escola; ou que encontrei L., músico jamaicano de grande corpanzil vestido com um uniforme do Jah Army, que pegou na minha guitarra e me cantou com uma voz de manteiga uma coisa da qual nunca me esquecerei, no meio do aeroporto de Barbados; ou que aterrei na Dominica, cuja pista colada ao mar nos faz sentir que entrámos dentro da ilha por uma autoestrada.

Depois de uma viagem tão longa para uma distância tão curta (a Liat tem voos directos até cada uma das suas diversas paragens, celebrei a chegada a Antígua no Skullduggery com um bolo de chocolate e um rhum punch. Depois voltei a celebrar com um rhum punch no Mad Mongoose, uma conversa com gente boa e a certeza de que o gato Lager continua feliz. E, como se não bastasse, celebrei outra vez com um rhum punch em casa de amigos, até às dez da noite, que aqui são quinhentas. Hoje bebo água, mas ainda estou embriagada. É bom voltar a casa, mas faltam-me os que me faltam, isto é, quase não me falta nada para me faltar tudo.

6.12.12

Le Marin, Martinique, Antilhas Francesas, 06-12-2012

Se tivesse respeitado o desejo de só postar aqui quando tivesse boas notícias teria tido de esperar até hoje (enfim, ontem, para ser mais preciso): encontrei, finalmente um trabalho que é simultaneamente óptimo e fixo.

Juntar finalmente e trabalho fixo soa estranho. Afinal, com dizia ontem o meu amigo R., "foram só trinta dias" (referia-se aos dias difíceis em Palma). Mas a verdade é que a ideia de encontrar um lugar estável já me vinha a perspassar pela mente há algum tempo, mesmo antes desse maldito mês em que tudo dava ideia de conjurar contra mim. À chegada ao Marin tive uma proposta, mas era péssima e estava com pouca vontade de a aceitar.

Esta não. Sei pouco dela, no fundo: é normalmente paga, o barco é um 62' com vinte e nove anos (uma qualidade, para mim) que vai ser substituído por um catamaran em Maio; no Inverno vamos navegar pelas Caraíbas e no Verão pelas Bahamas, Flórida e - maravilha das maravilhas - Nova Inglaterra ; pouco mais, duas ou três condições - todas boas - um armador que ao telefone parece simpático e promete uma vida fácil e com poucas exigências a bordo.

Não sei se a realidade vai confirmar isto, ou se se vai dar ao trabalho de escaqueirar as expectativas com a desculpa, assaz esfarrapada, de que aos 55 anos não devia acreditar em Pais Natais. A ver vamos, como dizia o outro - é demasiado cedo para chamar para aqui o ceguinho.

Amanhã embarco num avião para Miami. Faço uma escala em San Juan mas não terei tempo de sair do aeroporto. Tudo isto me aparece envolto em perguntas, em dúvidas, em - porque não dizê-lo - medo. A verdade é que nunca quis ser skipper de proprietário porque a bordo não sou um modelo de tolerância e flexibilidade. A única hierarquia que reconheço é a do saber, não a do dinheiro ou da posição na pirâmide social. E sempre pensei que não há dinheiro que pague a liberdade de poder dizer vou-me embora.

Agora o desafio é manter o emprego (o meu recorde está em um ano e foi no Burundi, o emprego de que mais gostei até hoje), tentar aceitar que quem me dá trabalho tem uma palavra a dizer e não necessariamente errada; e sobretudo, lembrar-me de que a relva do jardim do lado é mais verde por causa de uma ilusão de óptica, só.

Esta é a parte mais fácil, e é o que me encoraja.

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Não sou grande fã de praia, mas Les Salines não é uma praia, é uma excepção, e ontem fui lá. Cinco quilómetros a pé à ida, três (é uma estimativa) à volta: a boleia sem a Tatiana não funciona tão bem como com.

Estava a precisar de mar, viesse ele como viesse.

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A vinda ao Marin revelou-se inútil, em termos de trabalho. Mas gostei de passar por aqui, rever paisagens e amigos, provar boudins e accras. Hoje vou mesmo autorizar-me um ti punch, em guiso de despedida. Tanto mais que o nível da substância no sangue voltou ao normal.

Da p... da substância, deveria dizer. Ainda por cima é uma coisa da qual não gosto e que quase não como.

4.12.12

Vinganças

Vingativa é a vida, que nos devolve dobrado aquilo que lhe fizemos singelo. É preciso desprezá-la, a vida; ignorá-la, marimbar nela e continuar fazendo aquilo que queremos, ser aquilo que somos. 

Não se pactua nem se cede a vingadores.

2.12.12

Le Marin, Martinique, Antilhas Francesas, 01-12-2012

A Martinique em geral e o Marin em particular acolheram-nos bem: uma boleia inesperada, um excelente jantar no Vieux Foyal, beijos, abraços e uma proposta de emprego ao ano. A ver se conseguimos os papéis e a vontade para ele.

De resto, está tudo na mesma; S, a diminuta e roliça dona do restaurante A la Maison, no Marché Couvert, ainda se lembrava do meu nome: "Louis, como o meu marido". O frango estava delicioso; e uma porção deu para os dois. Só tenho pena de não poder preceder a coisa com um ti punch, mas enquanto determinados níveis de determinadas substâncias no sangue não voltarem ao normal não há ti punch. Deus (se existisse) e muitos proprietários de cafés, bares e restaurantes por esse mundo fora sabem que não me tenho preocupado muito com o corpo. Mas no outro dia em Palma apanhei um susto, e o meu médico adorado diz-me "e vai apanhar mais como esse, se não tomar cuidado". De maneira agora "tomo cuidado": ando muito, como menos, e resisto ao apelo do ti punch.

No Mango Bay também se lembravam de mim. J., o proprietário, fez-me a habitual declaração de amor; as empregadas são quase todas as mesmas e deram-me muitos beijinhos; a vista para a marina, cheia a abarrotar, continua única.

Não é Antigua, mas está lá perto. Com um bocadinho de sorte terça-feira temos uma boleia para St. Martin; e de St. Martin a Antigua é um pulo.

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Esta história das qualificações é uma seca; bem podia ter esperado uns anitos para tomar esta envergadura. Até para deckhand pedem Yacht Master Offshore! Um curso da Escola Náutica e trinta anos de experiência pesam muito pouco, quase nada.

Eu percebo, claro. E a metade má de mim até concorda; mas a boa metade, a anarquista, caótica, vagabunda, apaixonada pelo mar - a metade livre, numa palavra - continua a resistir. A ter vontade de "os" mandar a todos para a pata que os pôs. De fazer, como sempre, o que lhe dá na gana e só o que lhe dá na gana. Algo me diz que essa metade vai, em breve, ter de engolir alguns sapos.

Se ao menos os pudesse acompanhar por um ti punch bem puxado...

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Sei perfeitamente onde é a minha casa: um veleiro a mil milhas da costa mais próxima. O cemitério é na piscina, o que demonstra o extraordinário e criativo espírito reciclador do arquitecto. E não tem jardim, seja Deus louvado.

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Às vezes penso nos carrinhos de choque parados no meio da pista, quando se acaba a volta. Iam todos a caminho de um sítio qualquer, ou nenhum; mas acabou-se-lhes o tempo e por ali ficam, quedos e tristes até alguém pegar neles outra vez, a electricidade voltar e eles poderem recomeçar as suas inúteis voltas e choques.

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Qualquer dia estou no mar. O resto é conversa de tantes. (É bom, regressar ao francês).

Le Marin, Martinique, Antilhas Francesas, 01-12-2012

Chegámos em aviões separados. O site da Air Caraïbes permitiu-nos fazer uma reserva para a Corsair e a que fizemos ao balcão era mesmo para a Air Caraïbes, num voo que partia praticamente à mesma hora. Depois do pânico inicial (e se o meu lugar afinal não está reservado? E se um dos aviões cai?) estabeleceu-se uma certa calma: duas horas de espera, por conta de uma avaria no avião, à conversa com S., um jovem chef que faz a época de Inverno num restaurante próximo de Fort-de-France e que lembra com saudade um bacalhau à Brás que comeu, feito pela a avó de um dos seus companheiros de casa em Montpellier.

Apesar do atraso e do cansaço de uma noite nos assentos superreclináveis (o tanas) do trem-hotel Barcelona-Paris, o meu voo foi magnífico. Passei-o sem dormir, a deliciar-me com o sistema Horizon, através do qual assisti a três filmes (Le Magasin des Suicides, uma animação genial e divertida, The Last King of Scotland e Mystic River, simplesmente brilhantes) e me pus in the mood, com um álbum de Bob Marley e algum zouk de boa qualidade (coisa que me tinham assegurado que não existia). Mais de metade da classe turística jogava ao Quem Quer Ser Milionário? no pequeno ecrã, a outra metade dormia. Houve gargalhada geral quando o comandante anunciou a temperatura na ilha. O sol, já bem posto àquela hora, deixou a beira-mar de um azul fluorescente do qual já não me lembrava.

À chegada, esperei meia hora pelas malas, à boa maneira dos trópicos. Troquei contactos com S. e encontrei-me com o Luís, que me esperava tranquilamente (o que me surpreendeu, pois chegara duas horas antes) no único cibercafé do aeroporto. Depois de percebermos que a Martinique não é bem Saint Martin, ou seja, não se alugam carros sem cartões de crédito de plafonds inalcançáveis para pobretanas como nós, fomos saber os preços dos táxis. 70 euros por 38 quilómetros, mesmo depois de  regatear, pareceu-nos imoral. De sacos às costas, fomos para a saída do parque de estacionamento pedir boleia (estranhamente, a sugestão foi minha; afinal, estou a aprender a ter 25 anos). Um senhor muito gentil desviou-se do seu caminho e, em vez de ir directo ao Lamentin, onde vive – uma localidade muito próxima do aeroporto – levou-nos à capital, a uns 15 quilómetros dali. Agradecemos-lhe efusivamente os 30 euros que nos poupou.

Chegados a Fort-de-France, e como não podia deixar de ser, fomos directos a um bar/restaurante de que o Luís, uma espécie de páginas amarelas-guia gourmet ambulante, se lembrava. A proprietária, ao ver as nossas bagagens, perguntou-nos se nos estávamos a mudar. Ajudou-nos a encontrar um estúdio por uma noite, no outro lado da rua. Do jantar há pouco a dizer e muito a recordar. Músicos excelentes, com quem tive a sorte de cantar algumas canções e perceber que tenho muito a aprender, um chatrou (polvo estufado) delicioso, um prato crioulo inesquecível e um planteur (rhum punch para os amigos) que me fez sentir em casa.

Estou em casa e não estou. Porque a nossa casa são, também, as pessoas que nos fazem falta.

Ontem chegámos ao Marin e procurámos imediatamente trabalho. Uma hipótese exige-nos uma visita aos affaires maritimes para podermos, com as nossas qualificações, obter equivalências para trabalhar em França.

Entretanto, vou conhecendo os lugares onde, sem saber, te conheci. O Mango Bay (cujo dono está descaradamente apaixonado por ti, coisa que não me surpreende), o Marché Couvert (onde comi ontem das melhores refeições da minha vida) e esta baía sem mar, que nos dá a impressão de estarmos, ao mesmo tempo, protegidos e limitados.

Tudo indica que a vida aqui deste lado não mudou. Eu sim, e não juro que tenha sido para melhor.


Acorda

Quando acabares de ler esta frase o teu futuro começou.

1.12.12

A picareta falante diz, tardia mas finalmente, qualquer coisa de jeito

Pense-se o que se quiser do senhor - e eu penso muito mal - a assumpção de responsabilidade por Guterres não deve ser minimizada nem ridicularizada. 

Ah, la Fraaaaaance, la Fraaaaaance

O Governo francês chegou a um acordo com o grupo ArcelorMittal. Basicamente o grupo faz o que queria fazer (fechar dois fornos); em troca compromete-se a investir 180 milhões de euros em cinco anos naquelas instalações (até aqui investia 30 por ano; aposto que não vai mudar muito) e a não despedir os quase 700 funcionários que trabalhavam nos fornos.

Até aqui nada de especial - enfim para França, claro. Eu pergunto-me o que fará uma empresa investir na Gália sabendo que as suas decisões de gestão podem ser contestadas pelo governo, por exemplo.

Realmente engraçado é a formulação do acordo: "perenizar e reforçar as actividades ligadas ao sector frio" (a tradução é minha); ou "o grupo garante a sua permanência [ancrage] em Dunkerque e em Fos-sur-Mer".

O que não é mau, se pensarmos que um palhaço chamado Arnaud Montebourg, ministro da Renovação Industrial (gosto deste ministério e tento sempre pensar nele quando preciso de rir e não encontro melhores motivos) - um senhor que acha, entre muitas outras coisas (é um senhor muito achista) que "desmundializar" é o melhor caminho - queria expulsar a ArcelorMittal de França.

Venturas

Não concordo com o a de aventura: aventura é um excesso de ventura, não uma carência.

Liberdade, nunca é de mais recordá-la

Um grande post.

Claro que se pode lamentar ter sido necessário escrevê-lo, ou lê-lo (acrescento "em 2011", fica sempre bem). A verdade é que se o homem não mudar muito - e nada indica que vai mudar muito, e ainda menos depressa - daqui a mil anos ainda será necessário escrevê-lo. E haverá meia dúzia de bloggers de então a aconselhar-lhe a leitura.

Os grandes desastres da humanidade nascem quando alguém quer impor "a verdade", seja ela científica, em nome de uma humanidade melhor, ou seja do que for que uns sabem e acham que os outros devem saber também.