30.5.12

Marigot, St. Martin, 30-05-2012

Não me atrevo a dizer "Hoje é o último post de Saint Martin". Isso quereria dizer que perdi a esperança de voltar -- ainda não, porque a esperança é uma doença quase incurável. Direi, por isso, "Até Outubro, St. Martin", se Deus quiser

O armador saiu um dia depois do que tinha anunciado, para desespero de toda a tripulação e restante criadagem. O dia de ontem, aquele em que não partiu, foi interminável -- como têm, de resto, sido todos os meus dias aqui desde que esta viagem começou (resta-me perguntar se o conceito de viagem inclui isto que fazemos, não ir praticamente a lado nenhum, ficar nos lugares que já conhecemos sem os viver, não tirando deles mais do que uns minutos de vento que não é, felizmente, igual em todo o lado). Fiz uma bolognese impressionante no micro-ondas (impressionante exactamente por ter sido feita no micro-ondas), deixei cozer a massa de mais, comi todo o chocolate que o Luís me trouxe (não foi do Brasil, suponho que tenha sido do aeroporto) e mais algum que consegui encontrar. A ansiedade dá-me para comer, a angústia para não comer. A angústia já passou.

Os senhores despediram-se de mim com um «see you soon», como se me fossem ver na próxima "viagem". O pedido de desculpas não veio, claro, e o salário também ainda não. Há três coisas nesta família que me deixarão saudades: o sorriso do bebé quando lhe digo um disparate qualquer; o acenar do outro bebé pela manhã, que sabe que não falamos a mesma língua mas quer, ainda assim, comunicar; poder ficar com as caixas da Hermès que eles deitam fora como se não fossem peças de design extraordinárias para guardar pares de meias ou elásticos de cabelo, sei lá.

K., o cozinheiro, deu-me um abraço tão apertado e comovente que levou S. a dizer «get a room!» (às vezes sinto-me outra vez no liceu, só que ainda mais desajustada do que quando não sabia responder às piadas parvas da miudagem com quem nunca me identifiquei). Também vou ter saudades dele, e de ver M. atirar-se à água de cuecas porque perdeu uma aposta com o patrão.

O barco que vou deixar vai passar metade do Verão em Antígua, a terra que eu, em tão pouco tempo, aprendi a amar como se fosse a minha, onde fui mais feliz do que na minha, onde gostaria, um dia, de ser mais feliz ainda -- a esperança, já o disse, é uma doença quase incurável. Será que voltarei a sentar-me ao balcão do Mongoose e beber o melhor rum punch do mundo preparado com carinho pela Connie ou pelo Junior? Verei outro fim de dia do gazebo do Reef Gardens contigo e o gato Lager ao pé? Comerei outra refeição magnífica feita pelo Serge no Rum Baba? Abraçarei a Ilaria por me ter contratado com um ano de antecedência para cantar na noite de São Valentim? Ouvirei o clarinetista John tocar no Café Club enquanto seduz uma ou outra senhora à frente da mulher? Conhecerei mais mil pessoas diferentes que me sorrirão como se fôssemos amigas desde o princípio dos tempos, como aquela senhora adorável que adora Sintra e dança como se tivesse um Fred Astaire dentro dela mas ao mesmo tempo lhe faltassem os parafusos todos?

Na segunda-feira parto. Daqui para Charlotte, na Carolina do Norte, onde passo a noite; na tarde seguinte, de Charlotte para Toronto, onde vou estar duas horas com a minha querida L., que não vejo há tanto tempo, desde que emigrou; no mesmo dia, de Toronto para Ponta Delgada, onde chegarei na manhã do dia seguinte; à tarde, apanho um voo para a Horta onde espero embarcar no DARK HORSE, se Deus quiser

Por favor.

26.5.12

Gustavia, Saint Barthélemy, 26-05-2012

-- You are reckless! This is your salary, did you know that?

Limpar sanitas de ricos não é uma humilhação. Nem sequer apanhar as suas cuecas do chão. Muito menos o é ver o trabalho (duro, sem folgas) de um mês comparado com um objecto caro e piroso desenhado por uma das mais famosas casas de moda da nossa praça. A humilhação não pode ser infligida, apenas sentida. Aprendi isso nos últimos cinco dias (felizmente, só demorei 24 anos a aprendê-lo). Quando somos adultos e a nossa consciência funciona, não podemos ser magoados, apenas sentir-nos magoados. Parece um pormenor, mas faz toda a diferença. A humilhação que sofri só é real porque a senti. Saída da boca do meu patrão não é nada; só existe quando entra nas minhas células e causa a reacção de nojo que me causou. Isto é válido para a maioria dos sentimentos (vergonha, abandono, até amor), a menos que sejamos crianças. Quando somos crianças, o que os outros nos dizem é tão real como aquilo que sentimos. É por isso que educar uma criança é a tarefa mais difícil e mais subvalorizada de todas. A maioria dos pais faz o melhor que pode (aposto que os pais do meu patrão fizeram o melhor que puderam), e mesmo isso não parece suficiente. «You who must leave everything that you cannot control/It begins with or family but soon it comes round to your soul», canta Cohen. Ter-me libertado da humilhação que senti quando ouvi aquelas palavras significa que é possível controlar o poder das palavras dos outros. Resta-me aprender a controlar o das minhas.

Os barcos são meios de transporte. Uma pessoa pode chamar a um barco a sua casa, fazer dele a sua casa, mas isso não modifica o seu carácter: um barco é um meio de transporte. Se uma casa for sacudida por um terramoto, há uma possibilidade de os objectos que ela contém caírem e se destruírem. No mar existem ondas, equivalentes para um barco a pequenos terramotos. É por isso que a maioria dos mega-iates (usados como casas, como hotéis) têm tudo pregado ou colado às superfícies. As mesas e os sofás estão presos ao chão, os candeeiros às mesas, os objectos decorativos às prateleiras. Quando as coisas não estão coladas e o barco está em movimento, colocam-se num lugar onde se acredita que não se vão partir. Na última vez que viajámos, coloquei o objecto que se partiu entre dois almofadões de uma poltrona, onde sabia que estava seguro. Quando voltei ao camarote, onde o dono tinha estado, o objecto estava no chão. Parti do princípio de que, ainda que estivéssemos em movimento, o dono não queria o objecto onde ele estava, e preferia que estivesse no chão. Passei a colocá-lo sempre no chão. Fez algumas viagens curtas sempre no chão, sem se partir. Ontem partiu-se e o armador passou-se, perguntando-me porque não o tinha posto em segurança. É claro que não me deixou responder.

Acredite o leitor, se quiser, que não se perdeu nada. Tive mais pena das orquídeas que estavam no vaso e se despedaçaram com o impacto do que do vaso em si, da perda do dono ou do trabalho que tive a limpar a merda da carpete manchada de terra húmida. Sempre que olhava para a coisa achava que o mau gosto não tinha limites, ideia que só confirmei quando o armador terminou a "conversa" com a boca sobre o meu salário.

Disse ao capitão o que me fora dito, que o armador queria falar com ele. Informei-o de que estava mais do que disposta a abdicar do meu salário, mas que se o caso fosse esse desembarcaria no momento, porque não só não podia ser acusada de um acidente como não via necessidade de pagar com o meu salário e com o meu trabalho. Para meu espanto, quando o capitão voltou anunciou que o armador lhe tinha pedido desculpa pela maneira como falou comigo e que não queria tirar-me o salário. Não tentarei, sequer, perceber porque não me pediu desculpa a mim.

Desde que Gianni morreu que a Versace nunca mais foi a mesma.

21.5.12

Não vale a pena mudar nada

Anos e anos de sindicalismo dão nisto. E depois não querem que as coisas mudem. Acham que estão bem assim. 

"Dois terços dos trabalhadores em Portugal ganham menos de 900€" (Verdade seja dita que a maioria dos portugueses prefere 900 garantidos a 2000 incertos, e provavelmente é por isso que os ganham).

Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 21-05-2012

Hoje é o último post de St. Martin. Depois do almoço largo para o Reino Unido, via Açores, no S/Y DARK HORSE, um magnífico Southern Ocean 60. Se tudo correr bem, dentro de duas a três semanas estarei na Horta, a beber um gin tónico.

20.5.12

Perguntas, respostas e dúvidas


"Que fazer num domingo pluvioso?" pergunta algures no ciber-espaço uma jovem senhora. É uma pergunta legítima (todas o são, menos as que incidem sobre a idade das jovens senhoras e dois ou três pormenores inconvenientes de todos nós) e cuja resposta tem vindo a ser dada há milénios, suponho (desde que há domingos, pelo menos; ou sábados, ou sextas-feiras).

Suponho também que a resposta de um velho gordo e careca será substancialmente diferente da que uma jovem e bonita senhora procura.

Ou seja, este post não é uma resposta àquela pergunta em particular, mas à abstracção daquela pergunta.

Deverei começar por dizer que aqui em St. Martin o dia está bonito, ventoso, ligeiramente nebulado como convém à época? Talvez, não sei. Na verdade detesto praia, e apesar de ter à portée de pied meia dúzia (pelo menos) de praias lindas a ideia de ir a uma delas só me passaria pela cabeça mil anos depois de gastas todas as outras opções.

E quais são, essas opções?

a) Ir para a cama com a pessoa amada, caso esta esteja à portée de main;
b) Ir para a cama com uma pessoa de quem se gosta, caso haja alguma nas imediações disposta a isso;
c) Ir para a cama com uma pessoa que se suporta, idem;
d) Ir para a cama com uma pessoa que se detesta, ibidem;
e) Ir para a cama sozinho;
f) Beber uma bela golada de rum da garrafa que se guarda no quarto para situações de emergência e optar por uma qualquer das alternativas anteriores;
g) Aproveitar a chuva e o rum para tomar decisões sobre o futuro próximo: Maldivas, Panamá ou Inglaterra;

Notas:

  • As alíneas d) e e) são intercambiáveis. Isto é, dependem muito da idade da pessoa que deve fazer a escolha. Normalmente, quanto mais novo mais d) e quanto mais velho mais e);
  • Não sei porque é que a chuva ajuda a tomar decisões, mas é uma coisa que se vê em todos os filmes e livros sérios que abordaram a questão. O rum ajuda, sem sombra de dúvida;
  • A alínea f) devia ser anterior a todas as outras, mas se fosse não conseguiria dar-lhe a forma que, ao fim de muito pensar, encontrei e me parece adequada.

Claro que cada uma destas alternativas tem várias objecções de várias ordems: moral, prática, exequibilidade, interesse, etc.

As alternativas c) e d), por exemplo serão decerto o objecto da ira de muita gente; de mais gente ainda, a b); e) será aprovada por uma multidão e desaprovada por outra, quando na realidade será a única, de qualquer foma.

Tudo isto enquanto se deve pensar no futuro próximo: Inglaterra, Maldivas ou Panamá?

A única maneira de resolver é uma boa golada de rum, seguida de outra boa golada de rum, e assim por diante até se acabar o rum. Nessa altura a solução deixará de nos aparecer como uma solução, e apresentar-se-á como uma evidência, que é um dos destinos das soluções.  

Porque hoje é domingo

Alberto Gonçalves.

19.5.12

Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 19-05-2012

Todas as marinas têm um restaurante cujo mercado são as pessoas que nela trabalham, os marinheiros entre dois embarques, todos aqueles que não estão de férias. Na marina Royale, em Marigot, esse restaurante chama-se Le Sous-Marin e hoje fui lá jantar. Inequívoco sinal de que aterrei em St. Martin, e estou em casa. E em França, a França de que gosto, a França do bom gosto barato, da simpatia real, humana - por oposição à simpatia profissional, pré-fabricada, quero dizer -.

O senhor do Sous-Marin - um lugar um bocadinho tristounet, verdade seja dita, mas onde se come muito bem e barato - é casado com uma portuguesa de S. Pedro de Alva. Não sei onde fica S. Pedro de Alva, mas algo me diz que na segunda-feira vou saber: ele mostrou-me uma brandade de morue e eu respondi-lhe com um bacalhau assado no forno. Não que seja dado a saudades, mas a ideia de ter uma senhora a fazer-me um bom bacalhau no forno enche-me as medidas todas, tão por baixo que elas estão, coitadas.

A felicidade é uma sucessão de momentos que se devem agarrar, um a um; e acumular antes que fundam como chocolate ao sol, o que inevitavelmente acontecerá.

Procuro um trabalho para o verão. As possibilidades são muitas: desde o Pacífico às Maldivas, passando (claro) pelo Mediterrâneo, pela Alemanha (é o destino de um barco que vai sair em breve dos Estados Unidos com o qual estou em negociações) ou, mais modestamente, Trinidad, aqui ao lado. Não sei qual delas prefiro. Nenhuma, na verdade: todas me atraem igualmente. Preciso de navegar, só. Onde e porquê interessa-me pouco. [Vou ter de dizer não ao da Alemanha, apesar da viagem ser magnífica: "...up the eastcoast to New Foundland, Greenland, Iceland, Faroes, Shetland, Norway into the Baltic to Germany". Paciência. Não estou - nunca estarei - em maré de partilha de custos, excepto com amigos, e próximos].

Ou seja: o mundo desfila-nos à porta como um metro com um condutor bêbedo.  Às vezes o senhor lá consegue acertar com uma paragem e abrir as portas; às vezes essas portas abrem-se à nossa frente; às vezes nós damos o passo em frente antes de o condutor bêbedo do metro as fechar de novo. E lá vamos, numa viagem de que não conhecemos o fim; mas sabemos que tudo é melhor do que estar na paragem do metro à espera que passe o próximo.

Acredito muito no destino que fazemos, e pouco no que sofremos. 

Redifusão

F. - Breve e fragmentada biografia

Ainda hoje se está para saber se F. tinha aquilo a que, muitos anos mais tarde, se viria a chamar "uma visão integrada do mundo": um conjunto coerente de ideias sobre a luz, o mar, o amor ou, por exemplo, um arco-íris que por vezes via de manhã, redondo e perfeito como a vida de alguns santos, e suspeito (de falsas promessas) como as de algumas putas. Que pensava ele das montanhas verdes e crespas como o cabelo de um negro que lhe enquadravam os dias? Veria uma relação entre elas e o enorme vazio do céu, que hoje está, por exemplo, de um cinzento incolor e sem sombra de sombra como alguns futuros, e muitos passados? Que pensava F. da empregada de bar pequena e empertigada, magra e malcriada a quem um dia oferecera uma cerveja para que "engordasse um bocadinho e se tornasse enfim fodível" (esta história, provavelmente apócrifa ainda hoje percorre os bares da América Central)?

F. tinha opiniões formadas e firmes sobre algumas coisas: as senhoras passam à frente nas portas e atràs nas escadas, por exemplo; um cabo empandeira-se de uma determinada forma e não de outra; vento forte é melhor do que ausência total de vento; mais vale amar do que ser amado ("é mais fácil, ao contrário do que parece, e menos sujeito a erros", explicava).

Apesar disso a dúvida permanece: teria F. uma visão integrada da vida?

Pessoalmente duvido. E se tinha tentava (e conseguia) de tal forma dilui-la numa mistura aleatória de vinho, cerveja, rum, whisky e sexo (em doses extremamente desiguais) que era como se não tivesse.

Quando uma mulher o atraía F. criava, isso está mais do que estabelecido, a ilusão de ter essa tal coisa da visão "integrada". Numa mulher com nome de flor, por exemplo, via um tratado de botânica, um compêndio de metafisica e um manual de química pura; numa outra com nome de rainha via um futuro claro como cristal e um presente negro como um poço num dia de chuva. ("Quando cessará o presente e começara enfim o futuro?", perguntou-se um dia. Para F. presente era o que via do seu cubículo estreito com um pequeno guichet, frente ao qual desfilava o tempo e aquilo a que um jovem jornalista chamou, um dia, "vida". F. vivia na bilheteira de um teatro, e nenhum jovem jornalista resiste a um bom cliché).

As diferentes vidas de F. - nao me refiro às diferentes componentes da sua vida, refiro-me às suas diferentes vidas (por exemplo: social, afectiva, profissional) - eram, ou pareciam, caóticas, complexas, fragmentadas. Terá ele conseguido integrá-las, ele que tanto desejava dar-lhes uma unidade coerente, sólida, direita como o mastro de uma embarcação de vela ou o membro erecto de um homem?

Ainda hoje não se sabe. F. nutria pelas mulheres um amor constante e uma atracção irregular; vivia por vezes na paisagem e doutras não se apercebia sequer da existência de um mundo exterior; um dos seus magnéticos sorrisos tanto podia ser dirigido à pessoa com quem falava como a uma longínqua memória que lhe tivesse aflorado a mente.

F. morreu ontem. Não deixou nada escrito; e como nos últimos meses se recusou a dirigir a palavra a quem quer que fosse - uma pedra no caminho arrancava-lhe mais palavras do que a presença dedicada da sua irmã, que vagamente entrevia (e claramente ouvia) à cabeceira da cama; dos seus colegas e inúmeros amigos - tão pouco se lhe recorda uma afirmação, uma opinião, uma pergunta, uma dúvida.

Sabe-se que F. integrava em duas categorias distintas as mulheres magras com grandes seios e as gordas com eles pequenos, como se não fossem da mesma espécie (o que apesar de tudo lhes conferia uma certa unidade, um eixo comum horizontal - as mamas - e outro vertical: o desejo, de passagem se diga). Conheciam-se ainda de F. as opiniões sobre o vento ideal - superior a quinze nós e inferior a trinta e cinco; o mar - deve ser mais quente e mais azul do que o ar; as nuvens - "cumulus bom, tudo o resto mau", sintetizava. Sabemos igualmente que preferia as mulheres de olhos abertos às que os usam fechados, mas ainda não sabemos a que chamava "olhos abertos".

Nutria bastantes dúvidas sobre a capacidade desalterante da água; gostava de ler (mas passava por vezes meses seguidos sem tocar num livro, para logo de seguida ler quatro por semana).

Como unificar tudo isto?

As dezenas de biográfos de F. (um grupo heterogéneo que incluía as mulheres, os primos, os irmãos, alguns amigos e quase todos os inimigos) tinham opiniões divergentes.

F. escrevia e por vezes falava na rádio ou na televisão, mas tentava economizar o que dizia. "Só há duas coisas que merecem e devem ser poupadas, porque são os únicos luxos: a água doce e as palavras". Percebia claramente a relação entre o sexo e o aparecimento posterior de crianças ou chatices. Ou entre o vento e o movimento de alguns corpos; entre o som e o movimento de outros; mas teria por exemplo percebido a relação entre o vento, o som e o amor? Nada é menos seguro: era pouco dado a pensamentos complexos, não se sabe se por gosto se por incapacidade.

E que pensava ele da relação, hoje estabelecida como inevitável, entre o desejo, o acto sexual e o amor? Não sabemos. Tão pouco sabemos se reconhecia o fastio como um dos possíveis motores do desejo.

F. morreu jovem, pouco mais de cinquenta anos. Mas teria tido tempo de deixar obra: uma biografia, um panegírico, uma explicação, uma visão, uma (ou várias) listas.

Não deixou.

A minha vida sexual (algumas notas para uso posterior, salvo seja)

A vida sexual de um talhante tem muito pouco interesse. Não sei, portanto, porque há tantas pessoas (de ambos os sexos) a pedir-me que a conte. Como já devo ter dito sou proprietário de um talho numa cidade média do interior do país. Sou extremamente rigoroso - até comprei uma balança Mettler-Toledo, apesar do seu preço -; e casado com uma senhora chamada Teresa que, antes de eu a proibir de trabalhar fora de casa era psicóloga e agora escreve coisas num sítio chamado Facebook e noutro chamado Blog (não leio nenhum deles, nem nenhum outro, de resto; a informática não me interessa. Gosto de coisas com cheiro e sangue).

Mas a verdade é que as pessoas pedem-me e, como é meu hábito, eu digo que sim.  Foi desta forma que juntei um apreciável tesouro de guerra - dizendo "sim, minha senhora" (e às vezes "sim senhor", há cada vez mais homens a viver sozinhos e a fazer compras). Por isso aqui deixo uma breve descrição da minha vida sexual, salvaguardando, claro, todos os dados comprometedores (e excluindo liminarmente a minha vida conjugal, porque todos conhecem a Teresa).

Ora bem: é preciso começar por dizer que a minha vida sexual tem pouco interesse. Sou um homem rigoroso, e o rigor, dizem-me por vezes algumas senhoras, não vai bem com a actividade sexual. Eu acho que sim, que o rigor vai bem com tudo; mas algumas das senhoras discordam, e eu não as contradigo. Antes pelo contrário, digo "sim, querida" e cada um vai à sua vida.

Por exemplo, a questão das posições. Identifiquei dez posições de que gosto, e mudo-as todos os domingos. Se uma senhora quer variedade, basta-lhe começar por exemplo a um sábado e ficar comigo até segunda-feira. Raras são as que aguentam tanto tempo (dizem elas; por mim, três dias passam num instante); mas as que ficam gostam e elogiam-me bastante.

Devo dizer que é muito raro não ter "uma senhora". Penso que aquela mistura de precisão e de sangue, de carne viva, excita a líbido de muitas das minhas clientes, que me deixam, imaginem, números de telefone no meio das notas com que me pagam (em francês isso vê-se logo, basta atentar na semelhança entre bite e bidoche: a mesma primeira sílaba, a mesma letra final). Eu ligo a quase todas - basta não serem demasiado magras ou demasiado gordas, demasiado altas ou baixas, novas ou velhas. Sou um homem mediano e quero manter-me assim. Só abro excepções se elas o merecerem, ou eu estiver um bocadinho a seco. Porque também tenho necessidades, não se pense que lá por ser talhante (há quem me chame açougueiro, mas eu acho o termo inadequado e incorrecto) estou isento delas.

Outra coisa importante: a conversa. Eu sou contra a conversa. Acho que as pessoas se encontram com um determinado objectivo, e esse objectivo deve ser atingido o mais depressa possível. Raras, porém - se bem existam - são as senhoras que partilham esse ponto de vista. Como sempre e em tudo, eu acedo e falo com elas. Mas falo o mínimo necessário para as satisfazer. Nada de conversa de chacha, comigo. Querem conversa, têm-na; têm conversa que chega, eu calo-me (descobri que uma maneira de chegar a esta fase rapidamente é falar-lhes do prazer que a minha profissão me dá, e contar-lhes um máximo de pormenores).

Práticas: quer queiramos quer não, sexo consiste na penetração de uma vagina por um pénis. Tudo o mais é redundante; off topic, como dizem alguns ingleses que eu conheço. Mas algumas senhoras insistem e querem fazer-me coisas. Eu deixo, mas aviso-as sempre "não haverá reciprocidade" (não gosto de surpresas, seja de fazê-las ou de as sofrer).

Quantidade: é o único ponto em que todas as senhoras (pelo menos até agora) concordaram imediatamente comigo. Ainda não tive uma opinião divergente: a penetração deve ocorrer um mínimo de três vezes e um máximo de cinco por noite (é verdade que algumas senhoras exprimem uma certa insatisfação devido à - na opinião delas - "monotonia das posições"; mas isso diz respeito a outro tema. Na questão da quantidade tem havido uma agradável unanimidade). Porquê um máximo, perguntar-me-ão alguns?  Porque acima de cinco penetrações por noite a vagina da senhora fica muito dorida e ela deixa de ter prazer.

Estes são os aspectos da minha vida sexual que acho mais interessantes. Espero ter satisfeito todos aqueles dos meus clientes que me têm pedido "conta, conta". E, sobretudo, que voltem ao talho, claro.

Teologia francesa

O Reblochon é um queijo da Haute Savoie; o Camembert é feito na Normandie; o Brie na Champagne e o Maroilles no Nord Pas de Calais. 

E há pessoas que duvidam que Deus é francês. Ou era, quando existia.

Anatomia teológica, ou teologia anatómica

Os homens nunca sabem onde pôr as mãos; é por isso que Deus pôs seios nas mulheres.

(O que demonstra que era homem e heterossexual, mas isso é outra história).

Origens

Cada vez mais lisboeta e cada vez menos português.

Coisos, espumas e debates

Os portugueses, é sabido, emprenham pelos ouvidos. Preferiram como primeiro-ministro um delinquente a uma senhora séria porque ela falava mal (e era feia, característica relevantíssima para um primeiro-ministro); e, de forma geral, inflamam-se muito com a forma das coisas,  e pouco com o seu conteúdo.

Depois admiram-se, queixam-se, lamentam o estado do país e a qualidade dos políticos.

A razão é, provavelmente, que não sabem reconhecer a qualidade quando a têm pela proa; por isso refugiam-se no pechisbeque, nos coisos. É como se em vez de discutirem cervejas discutissem as respectivas espumas (sim, na terceira pessoa; cada vez mais na terceira pessoa).

18.5.12

Fechado

Não gosto de estar fechado dentro de coisas, nem de pessoas. Nunca estive fechado dentro do que quer que fosse, ou de quem quer que fosse. 

Enfim, talvez tenha estado; mas não me lembro.

17.5.12

Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 17-05-2012

Apanhei o avião na Segunda-feira dia 14, à tarde; ele chegou uma hora depois, mas eu só aterrei ontem. Un léger décalage, diria um francês. Três dias a décaler: accras, boudin créole, colombos divers, assiettes créoles, vinho tinto e branco, pastis (enfim, Ricard), rhum vieux, rhum blanc, tartines, civilização sob todas as suas formas, tudo isto culminou ontem num braai a bordo do J., o mega-iate onde a metade pensante de mim trabalha muito, de mais, e se diverte um pouco.

Um braai para um sul-africano é muito mais do que um barbecue para um francês, um barbeque americano, um churrasco em Portugal. É identitário; a comparação que me parece mais próxima é a do churrasco gaúcho. Um dia em Kindu propus aos pilotos - uma equipe sul-africana - que fizéssemos um braai. Andy, o co-piloto, olhou para mim zangado e respondeu "com que direito usas a palvra braai?" As condições eram dificeis, é preciso dizê-lo; quase todos os dias nos atiravam para o avião, e se bem nenhuma bala tenha furado a blindagem o barulho (um blang surdo, que me fazia pensar nos livros que li sobre submarinos e de como eles recebiam o bling dos sonares) acabava por se tornar maçador.

Disse-lhe que era de Moçambique, e fui aceite.

Ontem o braai estava magnífico. Estava também a tripulação de um monocasco de 74' lindo e consegui, finalmente, tirar de mim o Brasil.

........
Preciso dizer que a viagem de avião foi muito bonita: na primeira parte, de Belém para Guadeloupe, havia praticamente todas as nuvens do catálogo. Não vi cumulo-nimbus (felizmente); mas de resto estavam todas.

No dia seguinte, da Guadeloupe para St. Martin, o reflexo do sol fazia do mar um tapete brilhante, prateado, sulcado pela ondulação como se estivesse lavrado. Nessa folha branca, ou cinzenta muito clara, brilhante, havia por vezes um buracos, crateras negras, claramente demarcadas em três dimensões - era a sombra das nuvens.

Por vezes não havia nuvens, e os buracos negros tinham realmente três dimensões - eram ilhas, não ilusões de óptica fascinantes, hipnotizantes.

........
De maneira já fomos a duas entrevistas e já temos emprego  para Outubro. Agora basta encontrar qualquer coisa até lá. Podia ser pior. 

Risos

A nossa esquerda, que tanto troçou da história das viagens de avião em classe económica, e achou completamente secundária a multa de Soares vai de certeza rir às lágrimas com estas: "...des déplacements en train autant que faire se peut et un strict respect du code de la route".

14.5.12

Prioridades, ordens

Em caso de dúvida, ouvir sempre primeiro aquilo que se sente, e depois aquilo que se pensa. O contrário não funciona, anyway.

Incompreensões

Não percebo porque é que a imagem do drunken sailor é usada para fins tão depreciativos. Afinal contribuímos para as economias locais, não?

Dissonância cognitiva, uma tentativa de definição

Almoço na Guadeloupe enquanto leio as notícias sobre a Grécia.

(PS - É bom ser esquizofrénico.)

Não política

Ou seja, padres e militares?

Le Gosier, Guadeloupe, Antilhas Francesas, 13-05-2012

Bye bye Brazil? Eu já devia saber que no Brasil qualquer tentativa de gastar menos dinheiro resulta invariável e inevitavelmente em duas coisas: a) gastar muito mais do que o custo inicial e b) perder uma quantidade de tempo completamente desproporcionada quer com o custo inicial quer com o custo depois da "poupança".

Em São Luís lembrei-me de que estava no último dia do meu visto de turista e por conseguinte era necessário prolongá-lo. Como sempre estas coisas acontecem à última da hora do dia da partida. Apanhei um táxi e aí fui, a chicotear o motorista como num filme de cowboys. O trânsito naquele dia estava realmente infernal e demorei uma eternidade a chegar; pelo sim pelo não pedi ao senhor para me esperar, porque não sabia quanto tempo ia demorar e não queria arriscar-me a ficar sem transporte para a volta.

O processo foi de uma rapidez tal que eu devia ter desconfiado. O agente da Polícia Federal, onde estas coisas se tratam, perguntou-me quando é que eu saía do Brasil, eu disse "amanhã [sexta-feira] ou domingo", ele respondeu "então é melhor pagar a multa, porque se eu lhe fizer agora o prolongamento você vai pagar muito mais", eu perguntei "quanto é a multa?" "oito reais por dia" "e o visto?" "sessenta e sete reais" e eu pensei nos sessenta euros de táxi que ia pagar, mai-los sessenta e sete reais de visto e pensei "vou pagar a multa". Mas manda a verdade que antes de tomar essa decisão estive vai não vai para dizer ao senhor "não, eu prefiro pagar a multa"; mas depois pensei "porra, com um bocadinho de sorte ainda me vou embora amanhã e se calhar nem pago nada ou então pago oito reais e na pior das hipóteses pago vinte e quatro" e disse "ok, obrigado, nesse caso pago a multa".

Em Belém fui fazer o check in e a senhora disse-me que eu tinha de ir à Polícia Federal porque tinha excedido a estadia e eu disse que sim claro e ela sorriu "eu fico com o seu cartão de embarque porque só lho posso dar depois de você ter regularizado a situação" ao que respondi "não faz mal é sempre um prazer rever uma senhora bonita" e ela sorriu outra vez e eu fui à Polícia Federal, que é na outra extremidade do aeroporto. Quando lá cheguei o agente da Polícia Federal, a simpatia em pessoa disse-me que só podia fazer os trâmites depois de eu ter o check in feito e que tinha de ir buscar o cartão de embarque; eu expliquei-lhe que a senhora etc. e tal e ele respondeu tal e etc. e eu fui buscar o cartão de embarque.

Quando regressei iniciou-se um diálogo exploratório: eu queria saber exactamente as alternativas todas e as alternativas são de uma simplicidade aterradora, a saber:

a) "Só há dois sítios onde pode pagar, um banco e a lotérica" [mas hoje é domingo e estão fechados];
b) "Pode pagar no seu país se no país onde vive existir um Banco do Brasil" [não vivo em país nenhum, mas em algum por onde passarei qualquer dia haverá decerto uma agência do Banco do Brasil];
c) "Pode regressar ao Brasil e pagar na entrada, mas vai ser uma complicação muito grande, o seu passaporte vai ficar retido e vai ter de ir pagar" [e eu imaginei-me logo a viver uma de Catch 22 tipo não pode entrar no Brasil enquanto não pagar e não pode pagar porque não pode entrar no Brasil].

Bom, seja como for é preciso fazer o auto e o senhor agente, que é, insisto, de uma simpatia arrebatadora pergunta-me o nome do pai, da mãe e a morada. "Qual morada, a minha ou a dos meus pais [o meu pai já morreu, mas não lhe vou dizer isso porque não quero introduzir mais energia no sistema]. "A sua". Dou a do Reef Gardens, de qualquer forma foi a última e quem me dera fosse a próxima em breve.

Três quartos de hora depois - não é uma imagem, na realidade foi um bocadinho mais de três quartos de hora o senhor agente apresenta-me cinco ou seis folhas de papel para assinar. Havia um termo de notificação, um auto de infracção (cada um destes em dois exemplares, um GRU - Guia de Recolhimento da União - e (na mesma folha) um recibo.

Uma vez assinados estes papéis o senhor agente teve de pedir a três colegas, dois dois quais que por milagre tinham acabado de entrar no escritório da Polícia federal, para assinarem também, porque o auto e o termo requerem quatro assinaturas - uma do agente que os faz e três testemunhas.

Na posse dos papéis todos ele, senhor agente diz-me "agora quando pagar ande sempre com o recibo" e eu digo-lhe "sim, claro" mas faço uma cara de estranheza, pois se aquilo está pago e ele lê a minha expressão e diz "é que isto não é pagar e depois fica liberado. Ainda leva dois meses, ou três, às vezes um ano para sair do sistema". Perguntei-lhe como é que é possível e ele fez uma cara de sofrimento e explicou-me que aquilo ia para Brasília e etc. e tal. "e durante um ano o seu nome vai ficar aqui nos sistema como tendo excedido a estadia".

O montante da multa é vinte e quatro reais, aproximadamente nove euros.

E quem não acreditar nisto pode ir ao site do Banco do Brasil e tentar encontrar uma cotação de câmbio. O percurso até se chegar à dita cotação é um monumento à incompetência, à doença mental, só um doente é capaz de organizar um percurso como aquele num site.

Bye bye Brazil? Não tão depressa, meu caro.

Durante um ano vou ter de andar com o recibo no passaporte (isto admitindo que um dia encontrarei onde pagar a malfadada multa, não vá dar-se o caso de ter que cá voltar, coisa que espero do fundo dos meus fundos não aconteça, pelo menos tão cedo para já).

O Brasil é uma gigantesca anedota, é uma potência mundial no campeonato do absurdo, e se isto é a quinta potência mundial eu sou a Miss Galáxia. E, ainda por cima, não é o meu país. Porque quando nós andávamos a dar cartas neste campeonato - e Deus sabe que demos e ainda damos muitas, Simplex ou não - eu pelo menos no meu país posso gritar esbracejar e ser sarcástico e lixar-me ainda mais por causa disso, mas que se lixe, fodido por fodido pelo menos que dê um bcadinho de gozo. Aqui não posso, claro, é comer e calar e agradecer ao senhor agente a simpatia.

.........
É fácil perceber a alucinante variação dos preços do bilhete na Air Caraïbes. Quando reservei o lugar, quinta-feira ao fim da tarde, havia, num avião de cem lugares, pouco menos de vinte ocupados; quando saímos, no Domingo, havia trinta livres. Cinquenta lugares vendidos em dois dias.

Em Cayenne o voo enche. Há duas escalas: uma em Cayenne, outra em Fort-de-France. Esta deixa-me um certo engulho, porque podia ter passado a noite na Martinique em vez de Guadeloupe. Enfim, não é uma tragédia. A verdade é boa e é que continuo sozinho na minha saída de emergência, com espaço para as pernas, para dormir e para ir para a janela quando levantamos ou aterramos. Podia ser infinitamente pior.

........
A chegada à civilização não foi exactamente como eu tinha esperado. Por causa de uma conjunção azarenta entre o meu desinteresse por dinheiro e a minha por vezes excessiva generosidade (excessiva em relação às minhas posses, claro; porque o pessoal da Pousada Portas da Amazónia, onde passei um mês e quase meio, merecia muito mais do que o que eu lá deixei de gorjeta) cheguei à Guadeloupe com muito pouco dinheiro. Na minha cabeça as coisas passar-se-iam assim: um terço para o táxi, um terço para o jantar e um terço de reserva.

O táxi começou por me levar ao hotel mais longe do aeroporto que conhecia; o qual estava fechado. O seguinte também estava fechado; o terceiro exigiu o pagamento à chegada, pelo que tentei um quarto hotel. Neste - já a factura ia a mais de metade das minhas magras disponibilidades - disse-lhe para me deixar.

Mas a senhora da recepção foi inflexível: só dorme depois de pagar. Estava a ver-me a andar para trás no tempo, para aqueles tempos em que dormíamos num barco qualquer  da marina porque éramos novos e aquilo fazia parte do zeitgeist (enfim, do nosso zeitgeist. Não tenho a certeza de que os armadores o partlhassem a cem por cento).

Ainda por cima estava vesgo de fome. Desisti de tentar convencer a senhora da recepção (gostaria que houvesse um inferno só para poder desejar que ela lá ardesse até ao Armaggedon) e fui jantar. Já era tarde (quase onze da noite, o que para estas bandas é tardíssimo, tanto mais agora que estamos na época baixa).

Foi aqui que as coisas começaram a compor-se. Nada corre bem quando estamos com o estômago vazio. O jantar foi um colombo de frango ligeiramente inferior ao meu, mas mesmo assim muito bom. E depois tudo foi ao lugar: graças à colaboração da metade pensante de mim consegui encontrar um hotel que me acolheu sem pré-pagamento; o jovem do restaurante onde jantei deu-me boleia até à porta do dito e abençoado hotel; e - oh bondade divina! - o quarto é esplêndido.

Prometi ao jovem Jonathan que amanhã voltava a almoçar no seu restaurante; agradeci mil vezes a Ronald, o recepcionista do Canella Beach Hotel (e amanhã deixo-lhe uma gorjeta, de menor envergadura do que a da Pousada, mas que o não fará arrepender-se de me ter acolhido). E agora vou dormir, porque gosto muito de montanhas russas mas das a sério, não das metafóricas que se escondem num dia para nos fazer pensar que os contabilistas e os funcionários internacionais talvez não estejam completamente errados.

13.5.12

Bye bye Brazil

Até à próxima, viu?

J'arrive

Une portion d'accras de morue et une autre de boudin, s'il vous plaît. Et un punch pour tout de suite. Apres un blaff de poisson et un pichet de blanc. Merci.

Domingo

Porque hoje é domingo.

Pseudo-pacotilhas

Uma vez fui comprar o jornal e na banca encontrei uma senhora com quem tinha uma ténue e mais ou menos afastada relação profissional. Ela pediu o Diário de Notícias e eu o Público. "Ah, você lê Público?" perguntou. "Pois. É o jornal dos pseudo-intelectuais".

Aceitei a designação, claro. Não sou intelectual de todo e não tento passar por tal. Sou tão pseudo-intelectual como pseudo-advogado, pseudo-engenheiro ou pseudo-homem do lixo.

Hoje, uma senhora por quem tenho uma certa estima, apesar de não a conhecer pessoalmente chamou-me liberal de pacotilha (e duvidou da capacidade da categoria para educar crianças. Como tenho dois filhos muito bem educados, graças a Deus e à mãe deles, posso desde já asseverar que há pelo menos um liberal de pacotilha que conseguiu educar dois filhos correctamente).

As duas senhoras não têm nada em comum, rigorosamente nada, excepto talvez o facto de serem ambas verdadeiras: verdadeira intelectual uma, verdadeira empresária a outra. 

Aceitei  designação, também, obviamente. Não sou um filósofo político, não escrevo livros sobre o liberalismo e não contribuí em nada para a construção ou consolidação da teoria. Só não percebo é como conseguem assim tão rapidamente identificar-me como pseudo-pacotilha. Deve ser um sexto sentido como aquele que permite aos anões reconhecerem-se ao primeiro olhar.

Cidadania, limpeza etc.

"Mais de 50 crianças" limparam ontem a praia de Carcavelos. Talvez pudessem exportar a ideia aqui para o Brasil. 50'000 crianças seriam mais do que suficientes. Por praia, claro.

12.5.12

De passagem

Quando é que José Pacheco Pereira se muda para o Jugular? Pelo menos elevaria o nível da oposição.

Belém, Pará, Brasil, 12-05-2012

O dia foi de passeio. De manhã para os lados do rio, do mercado, do centro; de tarde para o lado oposto. 

Esta cidade é magnífica. Ver-o-peso deve ser dos mercados mais bonitos, maiores, mais apaixonantes que conheço - e é sem dúvida o que tem melhor vista. É enorme; divide-se por várias áreas, por vários edifícios, pelas ruas. Cheira bem, cheira mal, não cheira, fede, vende tudo e mais alguma coisa e mais ainda. Uma das áreas que não cheira mal é a do peixe, o que pelo menos prova que o peixe é fresco. O resto é uma sequência de barracas, stands, bancas - as da carne são lindas - pessoas aos gritos, música aos gritos, cores aos gritos, tudo grita naquele mercado, mesmo ao lado do rio Guajará, um dos muitos braços do delta do Amazonas. O rio - largo, lento, majestoso - é a única coisa silenciosa naquele mercado.

À tarde foi a vez das ruas largas, passeios larguíssimos - há quanto tempo não via passeios assim - mangueiras grandes e frondosas com as copas a tocarem-se num túnel alucinante, ruas pejadas de autocarros, uns atrás dos outros como só na Londres de antes da taxa vi.

Foi também dos esgotos a céu aberto, dos passeios nos quais não se pode andar a olhar para o ar sob pena de perna partida, ou pior, dos carros com sistemas de som que chegam para pôr um quarteirão inteiro a ouvi-los. Aquilo deve ser a versão brasileira de pôr as canções de que gostamos no Facebook, suponho. Mas no Facebook ouve quem quer, e a música daqueles selvagens ouve-se a centenas de metros - e é má, ainda por cima.

Há aqui um dissonância cognitiva: não consigo imaginar um país assim quinta economia mundial; não bate a bota com a perdigota.

Enfim, amanhã estarei na Guadeloupe, ou seja em França. Vinha a pensar que ali a dissonância é outra: como é possível gostar tanto de la France, e detestar ainda mais la Fraaaaaannnnce? Felizmente é para a primeira que vou, nela que me desloco e respiro; a outra só me chega pelos jornais e pela televisão, que só raramente vejo e leio, graças a Deus. E na qual não penso, porque la France enche-me as medidas todas, faz-me esquecer tudo o mais. Amanhã vai ser dia de vinho tinto, accras de morue, boudin créole, ti'punch e planteur. Dieu est grand et français, tu verras.

A televisão anuncia mais um escândalo com dinheiros públicos. Não há dia, não há jornal que não tenha o seu escândalo; nem o do Cachoeira - um bicheiro que tinha metade da classe política comprada - ofusca os outros. Não sei qual será o resultado disto; de vez em quando matam um jornalista - acho que a conta vai em seis nestes últimos anos - mas, verdade seja dita e honra lhes seja feita, os jornais e telejornais continuam a expor aquilo tudo. É um poço sem fundo.

O fantástico para mim não é que o façam; não sei quando começaram, sequer. É a dimensão e a profundidade da podridão. Esta classe política vê os cargos públicos como um atalho para o enriquecimento imediato; não espera, como a nossa e muitas outras, pela saída do governo para arranjar uns tachos valentes.

Demain la France.


Vida, cabeça (auto-crítica*)

O debate político em Portugal é uma mostra das diferentes formas de histeria. Não acredito que venha a mudar. É o género de coisas que não muda. As pessoas demasiado educadas para o suportar - as únicas que poderiam mudar alguma coisa - tendem a emigrar, ou a arranjar empregos que lhes permitem viver sossegadas e aproveitar bem tudo o que temos de bom. Quem tem tempo de antena é quem não tem vida. Ou cabeça, ou as duas.

* - Injusta porque não eu tenho tempo de antena.

Ah ah ah lol lol lol :-) :-) :-)

Aqui está uma piada fantástica, cheia de graça, fina e subtil, elegante. Foi, acreditem se quiserem, provocada por este discurso (o video está no fim). Aqui, quem estiver interessado pode ler uma crítica inteligente ao mesmo discurso.

11.5.12

Bequia, Grenadines, 26-02-2011


A coincidência foi eu ter pensado à tarde no facto de um gajo ser pago para ser ele próprio – o que não se aplica só aos charter skippers, claro; nada impede um, sei lá, funcionário internacional de ser pago para ser o que é (e ser muito mais bem pago, evidentemente) – e ao jantar, uma bolognese feita pelo Hollie, eu ter contado a história do jantar de Ancona e a Kathrin ter concluído “isso és tu”.

Já por aqui contei a história de Ancona: reduzida à moela, três suecos ricos dão-me boleia em Itália para Ancona e no carro eu conto-lhes o que fazia em Itália e como vivia.”É impossível viver com esse dinheiro por um dia; é o que cada um de nós gasta numa só refeição”. Palavra puxa argumento, argumento desafio e chegados a Ancona eu tenho a missão de lhes mostrar que sim, é possível. Na piazza vejo um grupo de velhotes a jogar a versão local da pétanque e peço a um deles, no meu então aceitável italiano, que me indique um restaurante bom e barato. Para reforçar, conto a história dos suecos. “Estás a ver aquela porta?”, pergunta um deles apontando para uma porta castanha, anódina, anónima. “Estou”; “então aparece às sete e meia (às dez apanhávamos todos o barco para a então Jugoslávia) com os teus amigos. Aquele restaurante é o que procuras”.

Quando abri a porta e entrei caíram-me duas partes constituintes do aparelho reprodutor até ao chão: era visivelmente um restaurante de luxo, e eu nem comendo pão com manteiga durante dez dias compensaria aquela despesa. À medida que o jantar se foi desenrolando as coisas continuaram pelo chão. O dono (por coincidência o senhor que me tinha indicado “aquela porta castanha”) preparara um menu para nós. Foi uma das melhores refeições da minha vida: lembro-me dos spaghetti al ucellini do primo piatto, do Barolo (creio; e se foi, foi a primeira vez que o bebi), da grappa com que terminou o jantar, mesmo antes de se propor levar-nos ao cais.

A conta foi: “o Luigi é meu convidado; para os senhores, cada jantar custa –“ e diz um montante que devia ser um décimo, se tanto, do preço normal daquele jantar e se integrava perfeitamente no valor que eu tinha dado aos suecos como sendo o preço médio das minhas refeições. Imagino que para os suecos ainda hoje devo ser uma espécie de deus da Itália, capaz de comer num restaurante de luxo, ser levado ao porto pelo proprietário em pessoa e pagar o preço de uma pizza nas tascas rascas que então (então?) frequentava.

"Isso és tu”, diz a Kathrin. Não creio. “Eu” é o tipo que é pago para ser skipper, para vos levar a ver a vida nocturna de uma sexta-feira em Bequia, para vos desenrascar quando metem o pé na argola no mercado, para vos reservar uma mesa no Gingerbread ou vos comprar uma lagosta de dois quilos e meio e com isso fazer uma salada para sete pessoas que não, não estava tão boa como vocês disseram, devia ter ficado duas horas no frigorífico antes de passar à mesa, mas enfim, estava comestível e quase se sentia a lagosta; não é o tipo a quem os deuses põem a mão por baixo e decidem oferecer uma flor, uma lindíssima e inesperada flor.

E agora na varanda do Captain Mack's Bar and Galley, um primeiro andar em Bequia com vista para a baía, que de tantos barcos com as luzes de fundeadouro acesas mais parece um prolongamento da cidade – e o prolongamento mais habitado – lembro-me de outra frase a meu respeito, na Ilha de Moçambique, estávamos todos, um bar bonito – acho, mas não tenho a certeza, que também era uma associação cultural – e começou a tocar uma música africana e a Karen diz “this man can move, given the right stimulus”, e eu pensei “o problema, Karen, é que só sei mexer-me se tiver os estímulos certos e eu queria aprender a mexer-me também com os estímulos errados”, e isso é muito mais “eu”.

De qualquer forma a verdade, a verdade única e verdadeira é que quero que a memória vá pentear macacos, apesar de estar sempre a pensar nela e nas coisas que me traz. A memória e não só, claro, há muitas coisas de hoje que também quero que vão para o diabo que as carregue, antes mesmo de passarem a soleira da porta da memória; como a miúda hoje no Mack's, a dançar comigo daquela forma completamente lasciva que elas aqui têm, e eu a certa altura tive de dizer-lhe “stop”. Ela parou logo, verdade seja dita, e aproveitou para me pedir uma cerveja; que lhe dei, claro.

Há festas por todo o lado, hoje, e os restos mesmo assim bastante altos das diferentes músicas chegam a bordo um bocado entrecortados pelo vento. O tempo continua uma porcaria e não é quase de certeza amanhã que saímos para Canouan. Paciência; vou directamente para Mayreau, e se houver tempo (não vai haver) paramos em Canouan à volta. Na quarta-feira temos de estar aqui para tirar os pontos ao Bernie e subir para o Marin com o vento que tem estado vai ser uma tourada.

II

E assim é: mais um dia neste porto do qual um poeta local diz

...Bequia on the world
chart provides a wide deep harbour, not small
or obscure, a trade wind port-of-call
for sailors from around the world

of all persuasions: on the lam
or on the loose, wealthy or poor,
of every creed, language or colour.
I know them. I am one of them
...

III

Há pouco chegou um gajo que se pôs na bóia ao lado de mim; vi que ele pediu ao barco do pão - há um centro comercial flutuante em Bequia, tenho de contar isto - que o levasse a terra e claro que o homem parou no JINGLE quando o chamei.

O tipo - um branco dos seus vinte e muitos trinta e poucos - estava com uma cara de chateado de fazer dó e mandei-lhe uma piada, tipo "vais fazer a volta do padeiro". "Pois, e eu que pensava que ia para a terra", respondeu de mau-humor; a conversa continuou assim até que ele me disse "vou mas é trabalhar como boat boy aqui em Bequia, estes gajos fazem mais dinheiro do que eu". Estava realmente zangado, o rapaz, e ainda mais o ficou quando eu retorqui "good for them". Há provavelmente milhões de brancos a ganharem milhões de dólares mais do que ele, mas que um preto ganhe a sua vida isso é que não.

Isto dito é verdade que Bequia é caro, ultrajosamente caro, e dar quase três euros por uma coisa a que, só por ser feita de farinha (e é do tamanho de um papo-seco) eles chamam pão dói.

Mas as coisas são o que são, chove desalmadamente e o pão - e o tomate e o manjericão e tudo, com a santa excepção do rum - é caro. Consequências sem dúvida do aquecimento global, que tem provocado uma das épocas mais frias dos últimos anos e do mercado, isto anda tudo ligado.

O centro comercial flutuante em Bequia é composto por uma série de botes, o mais das vezes mas nem sempre a motor, que nos trazem pão, fruta, gasóleo, água, gelo, lavandaria, colares e produtos artesanais, peixe, lagosta e levam o lixo (1,30 euros por saco).

I know them. I am one of them.

Novas indignações

O pessoal da indignação está, oh tadinhos, estrangulado de novas indignações. Então não é que há uma pessoa, Primeiro Ministro ainda por cima, que em vez de prometer obras absurdas, jobs for the boys, roubos à fartazana, que em vez de mentir descaradamente, de se intrometer em tudo quanto é negócio, de se abifar com umas maquias boas vindas ali do deserto, de ameaçar jornalistas que não lhe sejam favoráveis, que em vez de enterrar o país em dívida e mais dívida diz - segurem-se - que há demasiada aversão ao risco na sociedade portuguesa e que o desemprego pode ser visto como uma oportunidade?

Oh Deus do céu, oh Diabos todos do inferno, oh maldade!!!! Eu próprio, só de pensar nisso, falta-me o ar. Uma nova oportunidade? Mas quem é que quer novas oportunidades? Riscos? Mas quem é quer correr riscos? Quem é que tem o descaramento de brincar assim com o sofrimento alheio? Todos nós sabemos que a nossa estrutura produtiva estava o mais up to date, pardon my chinese que é possível; que não era preciso mudar rigorosamente nada na nossa economia - excepto talvez fazer mais meia dúzia de autoestradas, um ou dois TGV, em T, em L em S e eventualmente também em R de regabofe.

Estou, uma vez mais, solidário com os indignados. Estou cheio de pena deles. Sinto-me um deles. Wir sind alles indignated. 

Como se pode ser tão cruel, tão maldoso, tão inumano? Quem é que consegue imaginar uma oportunidade num momento tão doloroso, momento que pode durar anos, momento durante ao qual uma pessoa só tem forças para ir buscar o cheque da segurança social e pouco mais? Quem pode imaginar que é bom correr riscos?  Só, está bem de ver, um desumano, um ultra-neo-hiper-mega-liberal sem coração, um robot ao serviço do Mal.

(Novas oportunidades? Essa expressão tem copyright. Ainda por cima associá-la a algo que não seja um aldrabice é descaramento a mais.)

Ryannews

Belém, Pará, Brasil, 11-05-2012

Há três coisas que gosto de fazer: navegar e cozinhar (e escrever e fotografar, e andar de bicicleta e passear a pé e ler e ouvir música e ir ao cinema... estas listas nunca ficam completas). Hoje cozinhei, pela primeira vez em muitos meses. Enfim, cozinhar é um exagero grosseiro: fritei um chouriço - mau - mexi uns ovos aos quais acrescentei duas malaguetas, cortei um pepino em rodelas (e ainda assei um pimento para logo à noite). Foi tão bom que até lavar a loiça deu gozo, e tive de me conter para não lavar tudo outra vez. Há não sei quantos meses que não me aproximo sequer de um fogão.

Um hostel, que antigamente se designava por albergue de juventude é basicamente uma pousada muito barata, com menos serviços ainda do que uma pousada barata mas com três coisas a mais: limpeza, cozinha e hóspedes simpáticos. Esta nem papel na casa de banho tem - cada um que traga o seu, se quiser. Mas é barata, está bem situada, o Heloísio (o dono) é uma simpatia e os lençóis estão limpos. Pouco mais há a pedir de um sítio onde se vai dormir três noites.

Desta vez não há professoras universitárias de alterações climáticas, coisa que me deixa cheio de pena.

Quando acordar da sesta terei estado em Belém vinte e quatro horas. Há pessoas que se queixam de que o tempo passa depressa de mais...

........
Ao fim do dia o mercado Ver-o-peso fecha e as pessoas deslocam-se para as esplanadas que dão direcatmente para o rio. Há tanta gente de um lado e tão pouca do outro que pensei que aquilo ia virar-se e despejar os clientes para o rio. Não virou, claro; e consegui ficar ali um bom bocado, a ver o pôr do sol, as pessoas a conversar e a comentar o dia que se prepara para acabar, as centenas de bancas desertas, quase todas elas.

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Reencontro, meio por sorte meio por orientação, um bar onde me lembrava de haver jazz. Há, mas só às quintas-feiras. O bar é giro (chama-se Cosanostra e fica na Travessa Benjamin Constant 1499, se por acaso) mas desconcertante. Tem uma atmosfera de bar, uma decoração de café e um barulho de cervejaria à hora de ponta. Lembro-me que já da outra vez fui no dia errado; apesar disso fiquei contente. Pareceu-me um sítio normal. No caminho de regresso vi dois miúdos de roller skate  na rua e aí sim, tive a confirmação.

Vista de longe São Luís aparece-me como aquilo que me perguntava se era vista de perto: uma cidade balofa e vazia, mal-cheirosa e pedante.

Enfim, exagero um pouco: era pedante, sem dúvida; e mal-cheirosa. Mas tinha o seu interesse. Na verdade isto ocorreu-me muito antes do Cosanostra. Num dos cantos do jardim estava uma banda a tocar. Seria talvez o equivalente local da banda que todas as noites empesta a rua da Tia Dica e do Raimundo (mas paga por eles os dois).  As principais diferenças eram:

  • O local é mais bonito e não cheira mal;
  • A música é melhor;
  • O público muito mais interessante (não havia bêbedos, pedintes, putas, travestis, crackados nem o resto da fauna habitual do Reviver);

Claro que o facto de Belém ter mais gente explica muita coisa; mas não explica tudo.

Fui a uma loja de jornais e o senhor sabia o que era o Economist; infelizmente tinha-os vendido todos. A continuar assim ainda vou encontrar atacadores para os sapatos.

10.5.12

Belém, Pará, Brasil, 10-05-2012

Belém, finalmente. A cidade é maior, mais bonita e mais limpa (o que não significa que seja limpa - é menos suja) do que São Luís, e infinitamente mais interessante. Vim para o hostel onde fiquei quando por cá passei em 2010. O homem reconheceu-me, o que me parece surpreendente.

Hoje já fui dar um passeio, tirar-me de São Luís, ou tirá-la de mim. A saída foi digna dos meus tempos aúreos das viagens de avião. Uma vez telefonei para um check in a pedir-lhes para não fecharem, que estava quase a chegar. Não estava: ia no metro a caminho de Heathrow. Prometo que a senhora não se mostrou surpreendida; não devo ter sido o primeiro a fazê-lo. Tambem não me lembro de reacções especiais nos meus vizinhos. Se calhar eram ingleses, como a hospedeira com quem falei. E sim, o check in estava aberto.

Hoje de manhã foi assim, excepto que teria sido impossível ligar para o balcão, claro. em Londres telefonei para as infomações, pedi o número do aeroporto e ecco.  Aqui só teria falado com as informações depois de o avião aterrar em Belém. Saí da pousada uma hora e cinco minutos antes da descolagem, ou seja cinco minutos antes da hora à qual devia chegar ao aeroporto. O trajecto dura vinte minutos, aproximadamente, portanto nessa altura ainda não estava muito ansioso.

Mas o trânsito em São Luís estava pior do que o costume; a caminho do aeroporto houve um acidente... Enfim, passo os pormenores: a verdade é que consegui embarcar. Cheguei ao balcão quando a senhora se preparava para o fechar. Pouco mais de uma hora depois estava em Belém e, para minha grande surpresa, a bagagem também.

De maneira só precisei de tirar de mim a ansiedade de hoje e o mês e pouco que ficou para trás. Foi fácil. Perto do hostel há um jardim grande e bonito, clássico (e que à noite se transforma no ponto de encontro de muitos jovens e afectuosos senhores, mas passons); percorri-lhe as alamedas, largas, claras; e em menos de um quarto de hora estava em Belém, finalmente.

Faltam dois dias e meio para me ir embora. Vou andar muito, de novo. Lembro-me bem dos passeios que por aqui dei, sempre bonitos, fascinantes, intrigantes. Nunca tinha visto ruas arborizadas com mangueiras, por exemplo. Lembro-me do mercado de Ver-o-peso, perto do qual assisti a uma repugnante cena de abutres (ou outra qualquer espécie necrófaga) a disputar uma quantidade enorme de peixe morto; dos restos de um antigo porto transformado em vasto espaço de lazer e onde um simpatiquíssimo senhor faz um delicioso chocolate artesanal.

Belém é a cidade mais importante da foz do Amazonas e tem-se nela a permanente sensação de que estamos a ver pouco mais do que uma porta entreaberta. Por trás - e para trás - de tudo o que se vê há - e houve - coisas de cuja existência só se vêem breves e fugazes sinais. Descobri-las, decifrá-las, seria tarefa para muito mais do que três dias; o melhor é mergulhar no mistério e nele nadar sem grandes preocupações, se não a de manter os olhos abertos e percorrê-lo o mais possível.

No hostel havia duas alemãs, jovens, que davam aulas numa universidade local. Eram professoras de alterações climáticas. Até as encontrar eu pensava que na universidade havia aulas sobre clima, e nessas aulas se estudavam as respectivas alterações; mas não. São um objecto de estudo de per se. Disse-lhes que era um bocadinho céptico a respeito das alterações - ou, melhor, das suas causas. Uma delas era alta, magra e bonita; a outra parecia o resultado de um cruzamento entre um camionista e um bulldog. Um dia convidei a mais bonita para jantar; olhou-me desconfiada, mas eu garanti-lhe que o objectivo era conversar um bocado e passar um bom momento, nada mais. Fomos a um sítio muito giro, perto daqui, chamado Babette (não tenho uma boa memória: vi o nome há pouco). Acedeu; a outra não rosnou, pelo menos em público.

Defendiam as duas que a maioria das pessoas é céptica em relação às alterações climáticas; viam o trabalho delas como uma cruzada (um bocadinho dificultada pelo facto de estarem fartas do Brasil e dos brasileiros até à medula, mas isso é outra história). Fiquei surpreendido; disse-lhes que não era essa a ideia que eu tinha: "se perguntarmos a cem pessoas na rua, aposto que noventa e cinco acham que o clima está a mudar, e que os homens são os culpados". "Nada disso, etc." (passo os pormenores, são de todos conhecidos). A baixa era a mais agressiva das duas. Depois do jantar esperou-nos na sala; devolvi-lhe a simpática amiga e fui deitar-me. Pouco mais falámos, até eu me ir embora.

A próxima etapa é Pointe-à-Pitre, na Guadeloupe, uma cidade que não conheço; vai ser bom rever V. e R., se tiver oportunidade disso. Foram eles que nos rebocaram, à Lena e a mim, quando trazíamos o A. de Grenada para Antigua e se partiu um vau (os dois vaus estavam partidos, mas eu não sabia. O dono do barco não achou necessário dizer-mo). Passámos quatro horas no dinghy a rebocar o barco até que a SNSM chegou. R., o skipper fez a mais bonita manobra de atracação que jamais me foi dado ver, comigo de braço dado e trinta centímetros entre nós e as embarcações atracadas aos pontões da marina.

Um regresso que se vai fazendo saltando de memória em memória, a caminho de um futuro do qual se vê uma frincha, uma pequeníssima frincha. Que interessa? O futuro é um buraco negro, vamos lá parar quer queiramos quer não.

Bequia, Grenadines, 24-02-2011


Comecei a escrever estas linhas nos Deux Pitons; continuo e acabo em Bequia (pronuncia-se Bekway, nunca é demais lembrá-lo).

Se eu tivesse o pior emprego do mundo seria fácil descrever os cinco últimos dias. Infelizmente (enfim, “infelizmente” deste ponto de vista) não tenho; tenho o melhor emprego do mundo. E assim é muito difícil descrever tudo.

O grupo chegou sorridente, amável, afável. “Conhecem-se todos bem”, pensei. “Não é a primeira vez que navegam juntos”. Feitas as apresentações, escolhidos os camarotes (à sorte, os três que restavam: eu já tinha escolhido o meu, do lado estibordo porque as tradições são para se respeitar), depositadas as bagagens fomos jantar – ao Mango, claro. Não é o melhor restaurante do Marin, mas é a melhor forma de colocar as pessoas “no banho”, como dizem os franceses, tão bem.

Ficou combinado que decidiríamos os pormenores da viagem no dia seguinte, pelo que ao jantar se falou de tudo e mais alguma coisa menos de percursos, trajectos, datas e quejandos. Dos seis, só um fala inglês razoavelmente; três falam assim assim a cair para o muito pouco; e dois não falam de todo. Mas o bom humor continuou. Eu esperava um bando soturno, cansado da viagem, desconfiado; fiquei servido: saíu-me o contrário.

No dia seguinte tive a surpresa da minha vida: um grupo de alemães que me diz, depois do meu discurso sobre as ilhas e o esquema de viagem e não sei que mais “escolhemos o primeiro destino da viagem. Os seguintes, vamos escolhendo onde estivermos”; não é só que isto não corresponde à imagem que todos temos dos alemães - é que não corresponde de todo à minha experiência daquele povo.

Domingo foi também dia de compras e à noite fiz-lhes um Colombo um bocado improvisado. Tive sorte (e eles também): foi o melhor Colombo que fiz até hoje, apesar da improvisação. Ou talvez por causa dela: em vez de colombo usei caril... (e acertei finalmente na quantidade de açúcar, mas isso são contas de outro rosário).

Dupla sorte: durante o briefing o dono da empresa disse-me que não tinha que me preocupar com a solidez do barco, porque realmente os primeiros modelos saíram um “bocadinho fracos”, mas forma modificados depois; e o JINGLE, apesar de ser dos primeiros modelos, foi modificado também. Boa notícia: não tenho de andar rizado desde que o tipo dos ventos arrota com um bocadinho mais de força.

E segunda-feira largámos, como previsto, rumo aos Deux Pitons, em Sta. Lucia. É onde escrevi estas linhas. É aqui que se torna difícil explicar que tenho o melhor emprego do mundo. Mas enfim: difícil não é impossível, e nada impede de tentar, quanto mais não seja. Começo pelo ambiente a bordo, porque ou eu me engano muito ou vai ficar assim até ao fim. São três casais que se conhecem há muito tempo, e já fizeram cruzeiros destes no Mediterrâneo e no Báltico. A forma de comunicação mais frequente é o riso – sobretudo quando uma das senhoras fala. Cada vez que abre a boca todos se desmontam a rir. Infelizmente é uma das que não fala inglês de todo, e os outros estão demasiado ocupados a rir para traduzirem o que quer que seja. São todos de uma simpatia inexcedível; integraram-me como se eu tivesse estado nos cuzeiros todos que fizeram. Está tudo dito.

Não, não está: um deles é mixer de cocktails, ainda não percebi se amador se profissional. Agora sim, está tudo dito.

Saímos às nove da manhã, ou nove e meia, como previsto; força 4 pela alheta. O barco não anda, ponto final parágrafo. Os cascos têm barbas de velho muçulmano, e quando chegamos aos 8 nós – enfim, não chegamos. Ficamos-nos pelos sete, e às vezes 7 e meio. No que diz respeito a velocidade estamos conversados. Eles ainda não sabem, mas nas Tobago Cays espera-os uma sessão de esfreganço de cascos - pelo menos espero.

Chegámos aos Deux Pitons depois de rasarmos a baía anterior (Soufrière) para escolhermos onde fundear. Foi unânime: Deux Pitons. Deux Pitons para sempre.

Os montes, montanhas ou o que for que  dá o nome à baía são duas formações rochosas de origem vulcânica, uma com 777 e outra com 743 metros de altitude que caem directa, verticalmente no mar. Vistos de longe, os Deux Pitons são uma experiência estética; de perto - de debaixo deles - são uma experiência metafísica, existencial, religiosa, telúrica, mística. A baía é profunda - estamos a 100 metros da praia e tenho 60 metros de fundo - pelo que a água do mar é azul de alto mar. Combinado com o verde que nos rodeia - só não há vegetação em alguns bocados mais rochosos e absolutamente verticais das montanhas - tenho a sensação de estar no meio das forças todas da terra: o mar, as montanhas, a vegetação, o vento.

Um amigo tinha-me dado, ainda no Marin, o contacto de um tipo local que faz refeições e organiza passeios pela ilha. Encomendámos-lhe um jantar e um passeio. 60 euros por pessoa (a multiplicar por seis. O skipper não paga). O jantar dava aproximadamente para uma tribo de 50 pessoas em jejum há dois meses: frango, peixe (bonito), arroz, legumes locais, massa, salada – tudo isto em quantidade para dez pessoas, cada uma das coisas por si. Acompanhado por vinho tinto, branco, precedido por uma série de cocktails e sucedido por um rum seco; mais uma faceta da natureza  a juntar-se às outras todas.

Raramente vou nos passeios a terra; a terra chateia-me, não a compreendo e acabo sempre por me aborrecer. Foi o que aconteceu neste: o jardim botânico era lindo e de uma riqueza fantástica, mas as quedas de água banais e o vulcão não acrescenta nada a quem esteve três anos nos Açores. Contudo a tripulação adorou. De cinco em cinco minutos ouvia "Wunderbar. Es ist schön, schön. What a fantastik tay, what a fantastik tay".

Dia que acabou comigo a tomar banho nos tanques das quedas de água, a olhar para o Petit Piton e a pensar que tenho o melhor emprego do mundo, finalmente.

Na viagem para Bequia, Bernie - o homem dos cocktails - escorregou e fez uma ferida na cabeça. Pelo que fiquei a conhecer também o hospital da ilha (Bequia é uma ilha com 18 km2. A "cidade" chama-se Port Elizabeth). Fomos atendidos mal chegámos por uma médica que estava sentada à porta e fez um trabalho que à primeira vista me parece soberbo. Vamos ver como cicatriza. O acidente ocorreu quando nos preparávamos para rizar. Esperei um monte de recriminações, mas só ouvi elogios - a verdade é que ele escorregou, e contra isso não posso fazer nada. Limitei-me a pôr um bocadinho de ordem na confusão que se seguiu, e pouco mais. Os primeiros tratamentos foram feitos pela mulher - a senhora que desmonta os outros à força de gargalhadas - que não o largava. Tudo o que tive de fazer foi tentar chegar o mais depressa possível a Bequia - e chegámos aos oito nós.

O que me fascinou no hospital - uma construção térrea mais pequena do que muitas casas de férias que conheço - não foi apenas a beleza ou a eficácia da médica (talvez devesse usar a ordem inversa...). Quando quis saber quanto custava o tratamento a senhora disse-me que não cobravam dinheiro, mas aceitavam donativos. Perguntei-lhe do que necessitavam mas as explicações foram demasiado vagas. Pelo que hoje na farmácia, depois de uma consulta à "Finanz Direktor" sobre o valor da donação (acordámos 50 euros, nos quais eu também participei)  perguntei à farmacêutica qual a sua opinião sobre as necessidades do hospital - e ela fez o mais racional: telefonou à médica. Levámos os remédios e voltamos ao hospital daqui a uma semana, para tirar os pontos. Felizmente a data calha bem com o cruzeiro - três antes do fim do charter.

Não me canso de Bequia. Hoje descobri que não sou o único: há inúmeros marinheiros que decidem vir para aqui quando acabam a vida de mar, ou pelo menos a vida de viagens. Ou seja: um tipo cansa-se de tudo, e descansa em Bequia.

Escrevo do primeiro andar do hotel onde há sete anos vinha para a net. Chama-se Gingerbread. À minha frente, metade da área da janela é ocupada por uma copa de palmeira. A outra metade, em partes muito desiguais, pela água, pela montanha e pelo céu. Está calor, mas o vento, o bendito vento refresca tudo. Gosto de Bequia. Nunca me cansarei do que faço, mas quando me cansar de tudo o que não fiz virei para aqui, descansar.

Coitados

Os coitados dos nossos cineastas deviam inspirar-se na música portuguesa e perceber que aquilo que lhe falta não é dinheiro público, é talento. Onde há talento há público, e não faz falta o apoio do governo, tadinhos.

9.5.12

O odioso e o cómico

Há coisas que começam por ser irritantes; repetem-se e tornam-se francamente desagradáveis; mais uma vez e ficam desesperantes; insistem e ei-las odiosas. Mas deste ponto, se por acaso voltam a acontecer, só há uma saída: ficam cómicas.

Le Marin, Martinique, 19-02-2011

Os antecedentes dos Diários de Bordos são um série de posts que escrevi no Don Vivo com o título de Livro de Bordos. Tinha há algum tempo a intenção de os passar para aqui. Começo agora, mantendo a ordem.

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Hoje começa o meu primeiro charter. Esta longa espera chega ao fim. Foi longa e apetece dizer "chega ao fim, finalmente". Os clientes - três casais de alemães de idades entre os 45 e os 65 anos - vão chegar às seis e meia da tarde. Às duas vou receber o barco, e um briefing.

Já houve uma breve troca de mails com os clientes. Querem ir para as Grenadines e depois Grenada - é a chapa 5 dos cruzeiros do sul das Caraíbas. Hoje apercebi-me de que foi há sete anos, mais mês menos mês, que fiz a mesma coisa, com o meu amigo Júlio Quirino, grande arquitecto e criador de cães d'água portugueses, e uma tripulação fantástica. Espero que este charter se passe tão bem como aquele.

A embarcação é um Orana 44. Chama-se "JINGLE". Até hoje não encontrei uma única pessoa que me tenha dito bem deste modelo da Fontaine Pajot. A regra vai ser, portanto, não puxar pelo bote. Não há nada mais aborrecido durante um charter do que ter uma avaria grave, das que obrigam a escalas mais longas do que o previsto ou a despesas inesperadas.

Hoje ao jantar far-se-ão as apresentações, definir-se-ão vontades e ideias de percursos. Amanhã vai ser dedicado às compras, e segunda-feira largamos. "Segunda-feira largamos": é difícil transmitir o prazer profundo que estas três palavras suscitam.

É o que vou tentar fazer com esta série de posts, sobre este e outro charter que farei antes de ir para o Brasil. O próximo vai ser completamente diferente - será como trabalhar no McDonalds da vela. Uma empresa que faz charter à cabine a preços abaixo da linha de água, e que é rentável porque a) os salários são baixos (muito baixos) e b) os barcos têm taxas de ocupação dementes.

É contudo uma experiência que me interessa bastante; por um lado pelo desafio em termos de relações humanas - 10 passageiros (e quase sempre franceses, qui plus est) num monocasco de 50 pés durante uma semana exigem prodígios de psicologia aplicada - e por outro pela operação em si. Assisti ao nascimento da Switch e participei com gusto em todos os debates sobre a viabilidade ou não viabilidade da empresa. Sempre defendi que ia vingar, e vingou. Agora vou ver por dentro o mecanismo. Ontem falei com um amigo daqui que trabalhou dois anos e meio como responsável pela manutenção. Contou-me que chegaram a mudar motores num dia.

Não é o tipo de charter que me interessa, claro - mas creio que é uma experiência importante. Um pouco atrasado, mas aquilo que me fez vir para as Caraíbas realiza-se. Graças à eficácia e à preocupação de um funcionário público francês, para quem eu "poder exercer a [minha] profissão" foi um motivo suficientemente importante para me dar uma equivalência em dois dias úteis.

Segunda-feira largamos.

São Luís, Maranhão, Brasil, 09-05-2012

É a minha última noite em São Luís, ou penúltima quando muito. Dei por mim a pensar que fui injusto com a cidade. É-se sempre injusto com aquilo de que não se gosta - sobretudo quando não se gosta porque se foi injusto, mas isso são considerações a posteriori. Paciência. As coisas são o que são, e uma coisa que elas não são é justas. Soirée de quarta-feira na AVEN - hoje com pouca gente e com uma carne do sol absolutamente sublime, a melhor que comi desde que cheguei ao Brasil, em 1500; juntaram-se a nós três uruguaios, que estão a levar um motor-sailor Swan (menciono a marca porque juro que não sabia que a Swan tinha feito motor-sailors e muito menos há 30 anos). O skipper vive na Florida, tem uma empresa de moldes em carbono. Vão para Punta del Este com aquele enorme chaço - ninguém imagina o choque que é, a surpresa, o espanto poder (e dever) chamar chaço a um Swan -.

Fui jantar à tia Dica. Ando há não sei quanto tempo a pedir-lhe que me faça uma picanha só para mim, mas ela iniste que a dose é para duas pessoas. Hoje consegui demovê-la. A picanha estava excelente, a caipirinha melhor do que nunca. Até a música na rua estava boa; pelo menos pareceu-me. A tal ponto que daqui a pouco voltaria para lá, se não estivesse com tanto sono.

Assim vão os dias, e as noites. Fiz aquilo que devia fazer, apesar de nem sempre nas melhores circunstâncias. Talvez volte, um dia; talvez não. Pouco me interessa, na verdade; hoje corrigi uma injustiça e confirmei outra: o que é é o que somos; "o mundo é mais pequeno do que o viajante que nele viaja", como diz James Baldwin ("Voyagers discover that the world can never be larger than the person that is in the world"). Ainda bem. Que seria um mundo sem injustiças, que seríamos se não pudéssemos corrigir algumas delas?

Em breve estarei em St. Martin. Suponho que agora esteja mais silenciosa, com a época dar os últimos suspiros. Gostava de ir para o México, mas não sei para onde me mandará a vida, essa patroa bela e injusta. 

8.5.12

Viagem ao inferno

Eclipse

"Ne jamais se flatter 
 d'avoir fait sa descente aux enfers 
 car un voyage aux enfers, 
 en plus cruel encore, 
 est toujours à refaire."

Michel Leiris

Redifusão

A night in Paris, 04-12-06

Le Petit Baigneur., 10 rue de la Sablière, 75014

A chacun ses armes
Mon voisin drague la femme à sa table en faisant abondamment recours à l'histoire de son grand-père, prisonnier des allemands pendant la deuxième guerre mondiale. La femme, dont je ne vois que les cheveux, blonds et beaux, très beaux (cela ne va pas toujours ensemble) et le dos, banal comme tous les dos, est - je le soupçonne au départ et le confirme après - Russe. Elle doit être sensible à ses arguments, elle devrait, mais ne le montre pas trop. Il parle très fort, elle répond d'une voix très mince, très basse, inaudible.

Numa outra mesa um casal de maricas fala, olhos nos olhos, numa interacção não-verbal digna de manual: ambos sentados obliquamente em relação à mesa, as linhas dos ombros paralelas, as faces viradas para o mesmo lado (um olha para a esquerda, o outro para a direita). Braços simétricos, o esquerdo sobre a mesa, o direito erguido, com um cigarro na extremidade. Tudo é simétrico neles, menos as faces, que olham na mesma direcção. O meu vizinho muda, outra vez, para a geopolítica.

La décoration do Petit Baigneur est nettement meilleure que celle du Cana'Bar; pour la raison simple et irréfutable que celui-ci n'en a pas.

Sinto-me num filme francês: um restaurante popular, com russas, homens em pleno engate público, maricas e, num canto, um velho que rabisca furiosamente num calepin Clairefontaine 9 x 14 cm, 192 pág.

Por vezes, gostaria de deixar de ouvir o meu vizinho. S'il veut draguer, ne pourrait-il pas se limiter à sa table? Il fait des digressions et des digressions et des digressions, mais revient, régulièrement, à ce qu'il croît être ses points forts: la deuxième guerre mondiale (c’est-à-dire, son grand-père) et la géopolitique. Il a peut-être raison, mas o envolvimento corporal da jovem senhora não o mostra: ela continua reticente.

Uma das mesas levanta-se, e vejo de repente uma mulher que ainda não tinha visto. Faz-me imediatamente pensar na Christine L. Isto não é um restaurante, é uma tranche de vie. A empregada, descubro agora, é portuguesa. No Cana'Bar é, claramente, de origem africana (sorry for the jeu de mots dégueu).

Tranches de vie, ou Comparaison n'est pas raison. Só poderei ajuizar definitivamente depois de ver a conta do Petit Baigneur. Vejamos: a empregada está a milhas (para baixo. É impossível, de qualquer forma, estar a milhas para cima). A cozinha é equivalente. Não há casais de amantes, e as mulheres não são tão bonitas. A decoração é melhor. Os preços iguais. Resultado: um dia um, um dia outro.

Merde, j'ai raté le visage de la voisine, qui s'est levée pour aller aux toilettes. Son engagement corporal a nettement, radicalement, changé. Le gars, sa géopolitique à la mormoilleneux et son histoire de famille à dormir debout ont gagné. Je suis heureux pour lui.

Case study: y a-t-il eu une relation entre la visite aux toilettes et le changement de disposition? (demander à S.)

O dia começa finalmente a dissolver-se no vinho e na Mirabelle; hoje começa finalmente a dissolver-se no amanhã. E o amanhã é bonito. Parece-se cada vez mais com o futuro que estou a construir há meia-dúzia de passados, com o cuidado de um pedreiro desajeitado e inábil, mas perseverante.

O vizinho ganhou. A atitude corporal da rapariga mudou, e o resto também. Parabéns! Tenho doces lembranças de raparigas russas. Uma ligeira ponta de inveja, muito ligeira, aparece. Je l'écarte immédiatement. Não sou invejoso, nunca fui e nunca o serei.


Zagou - Bar-Restaurant du Voyage, 58 rue Daguerre, 75014

O termo viagem, apercebo-me agora, é feminino em português e masculino em espanhol, francês e italiano (talvez em alemão também, mas o meu alemão, que nunca passou do estágio de recém-nascido, é agora uma espécie em vias de extinção). O Zagou tem uma música simpática e um cocktail (Singapore Sling) assim assim.

La Belière, 74 rue Daguerre

A rue Daguerre é uma das minhas favoritas neste Paris de agora. La Belière apresenta-se como um bar de jazz. Uma rapariga, de chapéu e sobretudo pretos, passa por mim. Adoro bruxas, mesmo que sejam jovens e bonitas. O jazz é uma merda (Beatles e  Eric Clapton), mas a Piña Colada é sublime.

Let's, my dear me, go to bed.

Seja Deus louvado.

Redifusão

Estendes a pele na cama e pedes-me que me estenda nela. Acedo e acedo a ela, a ti; aceso, acendo-te. Não falaria nunca da tua pele como uma planície, ou o mar, o tempo ou o chão em chamas. Não falaria nunca do vento que te percorre a pele, nem da luz, dessa longa fita de desejo que começa em mim e em mim acaba depois da volta ao tempo, ao mundo, ao mar, à vida. Não falaria nunca de desejos que irrompem em chamas das entranhas da terra, de nádegas como dois quartos crescentes que não sabem como não crescer, de mãos inábeis, impacientes. Não te falarei nunca de lábios ansiosos, de olhares infinitos, dessas banais tretas todas: o silêncio é uma sorte irrecusável.

Sorte, 09-08-11, (muito ligeiramente editado, claro).

A ler

José Rentes de Carvalho, aqui.

7.5.12

Definição

A insónia é uma puta que se engrossa antes de ir para a cama com o cliente, e depois nem fode nem deixa de foder.

São Luís, Maranhão, Brasil, 07-05-2012

"O país é  vosso, façam dele uma lixeira, se quiserem". Estou num dos sítios mais bonitos de São Luís, encontrado anteontem, se tanto. É uma esplanada à beira-rio que eu pensava estar aberta só à noite, mas não: abre às cinco da tarde. 

A vista é sublime. A baía de São Marcos abre-se ao pôr-do-sol como uma flor cor-de-laranja, cortada por uma vela ou duas, uma canoa, uma biana. O continente (São Luís é uma ilha) não está muito longe, mas quase não se vê, porque é baixo e por causa da evaporação. A esplanada esta rodeada por um relvado, apinhado de lixo: copos vazios, garrafas, guardanapos. Pedir à senhora para me deitar fora um minúsculo saquinho de plástico transparente parece-lhe um absurdo.

É. "Mas é feio, isso tudo cheio de lixo". Ela encolhe os ombros. "O país é vosso..." Ela leva o saco para dentro.

O Nordeste brasileiro é uma imensa lixeira, insuportavelmente ruidosa, nalguns dos locais mais belos do mundo. É uma permanente contradição. Talvez afinal eu não seja tão esquizofrénico como pensava: para gostar disto há que ter uma personalidade dividida em dois, uma das quais totalmente cega, surda e sem olfacto.

Estava para me ir embora amanhã, mas já não vou. Fico mais uns dias. Pessoalmente acho indecente, mas fui eu que aceitei, ou quis, não sei. Acho-me indecente, é o que é. Quero ir-me embora, quero ir ter contigo, quero um trabalho como deve ser, quero navegar, quero que a minha vida se transforme, de repente, num largo rio tranquilo. Dir-me-ás que não faço nada por isso e terás razão; mas também não fiz nada para que fosse este curso de água turbulento, agitado, irrequieto que é. Há pessoas que definem vidas, e vidas que definem pessoas; ainda não sei - é grave, aos cinquenta e quatro anos - em qual dessas categorias estou.

Já me despedi da Rosa; vou ter de voltar atrás. A única coisa que detesto mais do que reencontrar alguém de quem já me despedi é reentrar no porto que acabo de deixar. Foi a única pessoa de quem me despedi, verdade seja dita. É ela que me dá de beber quando acordo da sesta e vou acompanhar uma cerveja com três reais de castanha salgada. É uma tarefa nobre, bonita, apesar das pilhas de cadeiras de plástico, apesar das mesas de plástico, da música de plástico. A Tia Amélia (mãe da Rosa) e a esplanada cujo nome desconheço à beira rio são os meus locais, agora. E continuarão a ser.

Gosta da razão que me faz cá ficar: é uma tarefa de sedução. Talvez tenhas razão. Talvez não: preciso de seduzir a vida, todos os dias, mais do que pessoas. Mesmo sabendo que a vida é feita de e por pessoas. Não são elas que puxam por mim; é ela. Seduzir a vida é uma vida em si; deixar-se seduzir por ela outra. Gosto das duas.

6.5.12

Marigot, Saint Martin, 06-05-2012

O armador saiu e vinte minutos depois já estávamos no jacuzzi, fazendo de conta que o barco era nosso. Decidi que só vou fazer mais uma saída com ele, depois demito-me. Uma das razões para a minha demissão é a necessidade absoluta de tentar, pelo menos, cumprir o objectivo que me trouxe até aqui (que não era trabalhar num mega-iate); outra, ou talvez a mesma, é algo de que já falei: desta vez estavam dez hóspedes a bordo, da próxima estarão doze. «Não foi p'ra isto que eu vim cá» e preciso de mudar de isto, porque isto é de mais para mim. As pessoas devem saber reconhecer os seus limites; eu passei dos meus demasiadas vezes e acho fundamentalmente desonesto fazer algo de que não gosto -- e aborrecido fazê-lo outra vez.

21h, Paradise Plaza Casino. Cheap-Date-Tati (porque segundo o capitão bebo dois copos de vinho e fico arrumada), S., J. e Mat, um taxista improvisado haitiano que se ofereceu para nos levar ao casino no seu carro e a quem pagámos 60 dólares, ida e volta (mais barato do que teria sido num táxi, 18 dólares a cada um só para a ida). Nunca tinha ido jogar a um casino e pedi aos rapazes que fôssemos. Concordaram porque a época está no fim: já quase não há barcos em St. Martin e os bares que acolhem os yachties (os da música-pastilha-elástica, rum punch da treta e engate fácil) estão fechados. Mas resmungaram o tempo todo.

Consegui a proeza de sair do Casino com o mesmo dinheiro com que entrei, apesar de ter jogado bastante. Saímos com S., que tinha perdido 40 dólares, a acusar-me de ser viciada; e com bastante vontade de ficar -- não é vício: as bebidas são grátis para quase todos, as empregadas não discriminam os clientes que, como nós, se sentam nas máquinas cuja aposta mínima é um cêntimo de dólar. Enquanto jogava, conheci um local que me contou que os seus compatriotas vão muito a casinos (há dezenas na ilha), estoirar o dinheiro do salário, porque a vida na ilha é aborrecida e não há muito que fazer. Eu digo que vão porque os casinos estão ali. Se não existissem, as pessoas arranjavam outras coisas com as quais se desaborrecer.

No bar, cheio de gente a assistir a um combate de boxe pela tv, passava-se uma cena que, embora eu classifique de indescritível, é boa de mais para que não a tente descrever: um jogo de dominó violento. Sim, o jogo que os velhotes de todo o mundo jogam pacificamente ao fim da tarde, à sombra de uma árvore num jardim público, disputado por quatro matulões zangados a uma rapidez alucinante, que batiam violentamente com as peças na mesa de cada vez que as jogavam. Devo ter ficado dez minutos com cara de parva a olhar para a situação, e quando os rapazes me chamaram para sair o tipo mais bruto de todos tinha acabado de bater com uma peça na mesa e dado um soco no ombro do jogador do lado, dizendo-lhe alguma coisa agressiva, que não compreendi. Não consegui evitar e dei uma gargalhada. E continuei a rir enquanto saía, sem conseguir deixar de olhar para eles. Subitamente sereno, o brutamontes-mor olhou para mim com um sorriso e perguntou «do you like this?».

«Yes, very much!»

Michelle (l'autre)

I
- Viens, on va guincher.
J'aime les nanas qui ont de la suite dans les idées; je me suis levé. Je la connais de vue, elle bosse pas très loin d'où je vends de la quincaillerie, la journée. Et quand elle sort en boîte je la vois aussi.

Elle est petite, sèche, noiraude et a un joli minois. En dansant elle presse ses nichons, durs et ronds comme deux petites oranges, contre ma poitrine. Elle n'a pas de soustang. Bientôt je le lui rends bien: sous mes falzards la bite durcit et je la presse contre elle, tout contre. Elle s'en écarte, mais pas très vite. "Tu veux faire la fête, ma bibiche", me dis-je.

Mais il a fallut tchatcher des heures durant avant de pouvoir lui fourguer rien que les paluches. Heureusement après tout a roulé très vite et en moins de deux j'étais dans la moule.

Elle n'est pas une allumeuse, remarquez. Seulement "entre la boîte et le plumard il y a un espace qu'il faut remplir, tu comprends?"

Elle voulait dire remplir avec des mots, avec les bons mots, des mots justes. Moi je m'en fous. C'est quoi un mot juste? Suis pas très bavard, moi, juste ou injuste; et plusieurs fois j'ai voulu laisser tomber. Mais elle me zieutait grave, avec de lampions comak. Elle voulait, juste pas trop vite.  Ça j'ai pigé de suite. Question de poireauter un peu, parlapater un peu, peu vite tout ça.

Michèlle bosse dans une banque. Haute pointure, la nana. La semaine je vends, en ville, des conneries faites par mécolle. Les nuits de vendredi et samedi je vends des hotdogs devant une des boîtes de nuit du bled. C'est comme ça que je l'ai rencontrée - de temps en temps je rentre juste pour mater un peu. Le videur est un cops.

- Purée tu schlingues.
- Je vends des saucisses.
- Viens, on se casse.

Trois plombes du mat. A cette heure il n'y a que le Café du Commerce qui est ouvert. C'est craignos, mais c'est le seul. J'avais un peu la dalle et ai demandé un hamburguer; elle n'a rien clapé. Quand nous sommes partis elle voulait casquer. Je lui ai dit non. Je suis fauché, mais pas paumé. Ma bouffe c'est moi qui me la raque. A chacun sa merde, comme disait mon vioque.

Du troquet nous sommes allés chez elle. Grosse bagnolle, grosse baraque.

- Entre. Désacque-toi. La douche est ici. - Michèlle n'avait visiblement pas l'habitude de recevoir des ordres. - Magne-toi, je t'attends au salon.

C'était sept heures passées quand j'ai finalment réussi à lui fourrer les luches dans les lolos. À sept heures et demie on niquait. On a passé le dimanche au pieu.

II
J'aime bien ce lascar. Il n'est pas lourdingue. Je le vois vendre ses berloques (enfin, pas les valseuses,  ne vous gourez pas; celles-là il se les garde bien gardées) sur la place. Je bosse juste devant. Et ses hotdogs à la mormoileneux devant la disco les weekends.  Il est calmos, posé, les crocs toujours dehors. Jamais l'air d'être à côté de ses pompes. Il assure, ne s'excite jamais, parle angliche avec les amerloques et allemand avec les casques à pointe. Un peu maigrelet, grand, beau gosse. Je me suis toujours demandée ce qu'il foûtait là.

J'ai 36 berges, je suis cadre sup dans une banque. J'ai grimpé à la verticalle; jamais eu besoin de m'allonger pour monter. Une gonzesse jeune et seule dans un monde de vieux schnoks. Pas de grandes histoires: depuis la fac plus jamais de longues amours. Un coup à gauche, un coup à droite; que de l'hygiénique. Les mecs n'aiment pas les greluches qui ont de la pogne; et ceux qui faisaient mine de me supporter étaient plutôt aprés mon fric. J'en ai dérouillé, ne pensez pas. Mais je me sens bien, maintenant.

Antoine m'a tapé dans l'oeil d'abord parce qu'il présente pas mal; en boîte il n'a pas accepté que je lui paie les verres; ensuite on est allés dans un troquet immonde, et il m'a prévenu: "chacun douille sa bouffe".

Je l'ai fait moisir un peu avant de passer au pieu, histoire de ne pas le laisser croire qu'il suffit d'être beau et pas tapeur pour avoir partie gagnée.

On est resté piautés tout le dimanche; et on a continué de se voir après. Je ne savais que dalle de lui: il était visiblement bien eduqué et cultivé; tambouillait et baisait comme un dieu; parlait très peu, et encore moins de sa pomme. On n'allait pas au restaurant: il ne voulait pas que ce soit moi à casquer et je la lui retribuait bien. En revanche on cassait souvent la croûte chez lui; je profitais pour lui amener une bouteille d'un bon rouquin, qu'il appreciait visiblement.

Peu à peu - ce n'est pas une formule, ce fut ainsi qie les choses se passèrent - j'ai appris à le connaître, à respecter ses silences, à apprecier sa vaste culture. On se fendait bien la gueule, remarquez. Il avait un bon sens de l'humor et je me poirais avec ses blagues. Des fois il m'arrivait de partir en voyage de travail. Rares furent les villes pour lesquelles il ne donnât pas une indication, soit d'un gastos, soit d'une rue ou d'un musée. Il avait voyagé et il avait eu du fric. Pourquoi vendait-il de la quincaillerie et des saucisses dans la rue?

Deux, trois, quatre mois. Antoine me semblait "l'homme qui n'était pas là". Ça me convenait, faut le dire: c'était comme avoir un jules et ne pas en avoir, en même temps. Des fois il m'offrait un bouquin, des fleurs, un collier de ceux qu'il faisait.

Un jour je lui ai dit "tu me donnes tout sauf des paroles". "Jacter n'est pas mon fort". Le lendemain il m'apportât un disque de Hildegarde von Bingen et dit "tout est là". Je ne sais pas si vous avez déjà tiré un coup en écoutant de la musique sacre du Moyen Age; ne le faites pas, les frangines. Ca risque de vous ramollir.

Une fois il a commencé "je t'..." et s'est arrêté. J'eus envie de lui répondre "moi non plus", mais je me suis ecrasée. L'amour n'était pas prévu et encore moins le bienvenu. Un jules comme Antoine ça allait; mais l'amour?

Ça a duré jusqu'à ce quil me fut impossible de le nier: j'étais amoreuse de lui.

Ce soir-là je suis allé chez lui - c'était un vendredi, il préparait ses saucisses - et lui ai dit que je partais. "L'amour n'était pas au programme". Je lui ai laissé un gros talbin.

"Prends-le", me dit-il. "Je vais le déchirer". "Je sais. Fais-en ce que tu veux, il est à toi".

"Ciao". "À la revoyure".

La dernière chose que je lui ai entendu dire, très bas, fut "moi aussi".


III
Quitter Antoine m'a fait découvrir la vrai dimension de ma solitude. Les coups hygièniques ont perdu leur intérêt. Le boulot cessa de me remplir les mesures. Il m'a fait découvrir un monde dont je ne soupçonnais même pas l'existence, ou ne voulais pas en entendre parler: le mien. Il y avait une greluche en moi, muette depuis longtemps. Elle sortait, maintenant. Impossible de lui fermer sa gueule.

J'ai pas mal chialé, pris quelques cuites et quatre mois plus tard je me mariais à un collègue d'une autre banque.

Y a pas photo: six mois après le mariage je m'emmerdais ferme. De temps en temps je sortais seule. Je laissais Christophe-Louis à la maison et allait faire la ronde. Un soir je suis retournée à la boîte où j'avais rencontré Antoine. Il était toujours devant avec son chariot, ses saucisses, son sourire aimable mais distant. Je ne l'ai pas regardé, mais je savais qu'il m'avait vue.

IV
- Viens, on va guincher. - J'ai reconnu sa pogne dans mon épaule avant même de comprendre ce qu'il me disait.

Christophe-Louis n'ai jamais compris pourquoi j'ai voulu divorcer. Ni même avec le disque de Hildegarde von Bingen que je lui ai amené, en disant "écoute-le bien, tout est là".

Ce soir-lá j'ai pioncé chez Antoine. Dès que l'autre a déguérpi de chez moi Antoine a amenagé. Nous avons un accord: on ne parle pas fric à la maison, comme d'autres ne parlent pas de politique ou de cul. Dans un tiroir j'ai toujours le talbin que je lui avais laissé, déchiré en dizaines de morceaux; il les a mis dans une matière transparente et arrangés en quelque chose qui ressemble vaguement à un bracelet.

"Pas pu les foutre loin", m'explica-t-il. "Je sais combien tu respectes le pognon".

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Enfin: je ne parle plus le français quotidiennement depuis longtemps. Les mots s'en ressentent, la syntaxe encore plus. On s'en fout. On n'est pas d'ici. Demain on s'en va.