21.2.12

Tratado de saber viver para jovens casais que decidam emigrar para, ou viver temporariamente em um país africano ou semelhante (cont.)

Nesta segunda parte deste breve tratado de saber viver, etc. vou abordar alguns aspectos infungíveis (é uma palavra bonita que aprendi recentemente) da vida nos países africanos ou similares.

A primeira coisa a ter sistematicamente presente no espírito é que ninguém é obrigado a emigrar ou a viver temporariamente noutro país. As pessoas vão para países diferentes dos seus porque querem. Que eu saiba não há guerrilheiros barbudos armados de Kalashnikov forçando-as a irem para onde quer que seja. (Isto aplica-se igualmente aos "cooperantes" e aos "humanitários", que regra geral fazem mais mal do que bem mas estão cheios de boa vontade e pensam que por causa disso podem fazer o que querem.)

Não devemos esquecer-nos, portanto, de que estamos num país que não é nosso; somos hóspedes. E não compete aos hóspedes ensinar aos anfitriões como governar a sua casa. Isto é tão importante como difícil (sobretudo para nós, portugueses, que sempre vimos nos estrangeiros que nos visitam - se forem do Norte, claro - seres superiores, civilizados, melhores do que nós; e esperamos semelhante antitude quando visitamos "os pretos").

Um erro muito comum é pensar que uma pessoa, só porque não fala correctamente português (ou inglês ou francês) é burra. "Estes pretos são estúpidos, um gajo diz-lhes as coisas e eles não percebem". Não são, e muitas vezes não percebem, ou exprimem mal que perceberam, pela razão simples de que a língua que falamos não é a deles. Habituados que estamos a julgar a inteligência das pessoas pela forma como se exprimem - o que é um erro - pensamos que não saber exprimir-se é sintoma de burrice. Não é.

Igualmente frequente é pensar que por não terem o nosso sistema de educação "não sabem nada". Isto é duplamente falso: por um lado os nacionais dos países que nos acolheram têm conhecimentos que lhes permitem sobreviver naquele contexto (em muitos países, a sanção por não perceber como funciona o sistema não é a assistência social ou o RMI. É a morte); por outro, bastas vezes, têm conhecimentos formais ao nível dos nossos - é frequente em África encontrar engenheiros formados na Rússia ou em países do leste europeu, por exemplo. Vítimas da guerra fria, é certo; mas não ignorantes.

Lembro-me com particular acuidade de assistir a um diálogo no Zaire entre um jovem suiço de vinte e cinco anos, acabadinho de sair da universidade e um engenheiro zairense sobre um problema de pistas de aviação. Quando acabaram, o jovem suíço afastou-se, orgulhoso e satisfeito com a sua generosidade; o engenheiro - uma das pessoas mais competentes com quem tive o prazer e a honra de trabalhar - sorriu-me, encolheu os ombros e continuou a fazer o que fazia como sempre fizera, claro. Mais tarde tentei explicar ao jovem que aquele senhor era engenheiro, tinha mais anos de experiência do que ele de vida, que era local e conhecia o país melhor do que, etc. Não serviu de nada. (Poucos meses depois o jovem suíço foi evacuado, fomos todos; e o engenheiro lá ficou).

Por fim (por hoje e quiçá mais): deve ter-se presente que a estupidez é o melhor escudo. Toda a gente acha detestável a maldade, mas desculpa (mais ou menos)  a estupidez. Portanto, uma pessoa que depende de outra para viver e não tem muitas formas de se defender das agressões, violências (físicas ou não) que sofre - ou, tantas vezes, para se vingar delas, pura e simplesmente - opta pela "estupidez". É um escudo fácil, eficaz e rende bastante.

A este respeito lembro-me de uma história que se passou - não acredito que se tenha passado; penso que é um mito. Mas gosto dela - durante o primeiro choque do petróleo, em 72 ou 73. Nessa altura o governo decidiu criar uma quota de vinte litros de gasolina por automóvel; mas um senhor, mais esperto do que os outros, conseguiu comprar dois barris - 440 litros, para quem não sabe - de combustível. Chegou a casa e disse ao empregado "faz um buraco no jardim e põe a gasolina lá dentro". Coisa que o funcionário fez, com a habitual diligência. Quando acabou bateu à porta de casa e perguntou ao patrão "a gasolina está nos buracos. Agora onde ponho os barris?"

Esta história era contada na então Lourenço Marque para ilustrar a "estupidez" dos pretos. Eu acho-a a mais bonita história de vingança que conheço.

Ou seja: devemos pensar que temos em face de nós pessoas inteligentes, que desenvolveram um conjunto de conhecimentos que lhes permitem viver onde vivem, que são nosso anfitriões - mesmo sendo nossos subalternos. Devem ser respeitadas e compreendidas. Tal como se deve aprender a língua do país para onde se emigra, deve aprender-se a conhecer a cultura e mentalidade dos seus povos.

1 comentário:

  1. Completamente de acordo. Nunca fui emigrante,mas vivi alguns meses fora, em locais diferentes e se bem que não tenha essa sua experiência, deu para perceber que assim é. Gostei muito do que disse. Há pessoas que não sabem olhar, entender e comunicar, normalmente por se acharem seres superiores ou oriundos de países e culturas "superiores". Verifica-se isso normalmente com gente pouco culta (cultura para mim, é para além de muitas outras coisas o perceber-se o outro, saber escutá-lo, uma espécie de poiésis grega) e fundamentalmente, muito pouco sensível.
    Também é fundamental conhecermo-nos bem, para melhor e mais disponíveis estarmos para conhecermos o outro. Não sei se concorda.

    ResponderEliminar

Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.