2.6.11

Gaudência - II (Fragmento)

Frequentei Gaudência mais de dois anos. Frequentar é o verbo certo. Ela deixava-se visitar como aquelas damas do séc. XVIII francês mantinham "um salão", com a diferença de não ter um dia certo. Normalmente telefonava-lhe à tarde para saber se estaria livre nessa noite; por vezes, num aceso mais cruel, ou urgente, de desejo telefonava-lhe à noite, ou de madrugada. Se estivesse sozinha dizia que sim. Morava num terceiro andar de um prédio antigo num bairro típico da cidade. Os vizinhos detestavam-na e chamavam à casa dela a "estação de metro da Madragoa". De casa via-se o Tejo, e ouvia-se tudo o que se passava no prédio. No prédio, naturalmente, também se ouvia tudo o que se passava lá em casa.

Gaudência gostava de dar instruções aos homens com quem fazia amor; eu estava livre disso, felizmente - muito do que ela sabia tinha sido eu a ensinar-lhe, devido às variadas origens geográficas, sociais e profissionais das senhoras com quem me acontecia ir para a cama (peço desde já aos leitores que não me confundam com o autor do texto, um lingrinhas pila-de-frango que de sexo só sabe o que os salesianos lhe ensinaram na terceira classe. Nunca nos devemos esquecer de que entre um texto e o seu autor há a vida, os pilares da ponte de tédio, um narrador e pelo menos dois leitores).

Trocávamos novidades: "põe-te assim", "deita-te assado", "levanta a perna direita", e assim por diante. Era bom ir para a cama com ela, porque não havia "amo-te", "estava com saudades de ti" e quejandos. Foder para Gaudência era um assunto técnico que devia ser resolvido com diálogos técnicos.

Não pensem  que não gosto de ouvir uma voz feminina dizer-me "amo-te". Gosto. Mas não na cama, nem sempre. A melhor coisa que posso ouvir de uma mulher é "estou a vir-me". Algumas acrescentam "querido", mas são poucas, felizmente. "Estou a vir-me" é a expressão mais doce, mais completa, mais tudo que uma voz feminina pode emitir - e se for eu o destinatário ainda é melhor. (Já daqui oiço o autor aos gritos. Ele casou-se com uma devota, daquelas que jejuam à sexta e vão à missa aos domingos. Imaginem a Quaresma do homem).

Gaudência não gritava. Arrastava o i de vir ("estou a viiiiiiiiir-me"), nasalava-o, sibilava-o - mas baixo, porque já lhe bastavam os protestos dos vizinhos quando era uma das suas visitas masculinas a conter-se mal. Por vezes fazia realmente lembrar um metro a travar na estação, mas não era, claro, por causa disso que os vizinhos tinham posto aquele epíteto ao apartamento do terceiro andar de onde se via o Tejo.

Havia coisas, é verdade, das quais não nos cansávamos: ela acariciar-me todo com os bicos das mamas, chupar-me o dedo grande dos pés, eu penetrá-la de costas, sentado na borda da cama enquanto ela se masturbava ("todos os braços são poucos", explicava-me, como se eu me importasse), deitarmo-nos em sentidos contrários - os pés de um na cabeça do outro. Eram posições e coisas que nunca desapareciam do léxico e nos faziam infalivelmente gozar.

Tinha um cabelo negro, muito denso, comprido. Por vezes passava-mo pelos testículos enquanto chupava aquilo que ela designava por "Senhor Bispo" (quando estava pronta, dizia "a capela está disponível para o senhor Bispo, se lá quiser rezar a missa).  Pouco depois vinha aquele "estou a viiiiiiiir-me", muito baixinho, muito longo, interminável - e vinha-se, a tremer como se tivesse castanholas agarradas ao corpo todo e as quisesse tocar todas ao mesmo tempo. E logo parava, imóvel, muda, paralisada. "Um gajo não se cansa disto", dizia-me, às vezes. Não sei de onde lhe vinha o hábito de se auto-referir como "um gajo", mas parecia-me apropriado.

Alguns dias era ela que me telefonava. "A capela está vazia e triste, à espera do senhor Bispo. Será que ele está disponível para celebrar o santo milagre da comunhão?". Normalmente estava. Não sou um predador sexual como ela era (e suponho que ainda seja, não sei). A única coisa que tinha em comum com ela era uma alergia à mistura de sexo e amor, que acho detestável (e se lhe acrescentarmos o casamento então é que não suporto de todo). Tenho, claro, as minhas aventuras, com senhoras das mais variadas proveniências e escalões sociais, como disse ali em cima. Mas são poucas e duram pouco tempo.

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