6.10.10

Um jardim zoológico tropeça na noite

Isto dito, não sei se já te falei da coelha. Andava com dois jogos de mamas: umas escondidas; era preciso procurá-las à noite no escuro. Outras caíam-nos nas mãos. "Nos". Quem, "nos"?

Naqueles tempos andávamos atrás das coelhas por toda a cidade, pelas autoestradas, pelos portos de contentores, pelos silos de cereais, pelos abismos marinhos, pelos abismos. Só queríamos coelhas, vá lá saber-se porquê.

Enfim, isto era no princípio. Um dia fartámo-nos de coelhas; mas não sei o que aconteceu depois, porque foi há pouco tempo e a memória ainda não teve tempo de sedimentar. Ou seja: lembro-me de dias cinzentos, ruas cinzentas, coelhas de pele cinzenta; mas não me lembro do que veio depois.

Também havia dias diferentes, claro: coelhas azuis em campos verdes no alto da madrugada, e assim, sem fim. E anão.

Porquê coelhas? Sei lá. Por que não gatas, corças, tigrezas, panteras, lobas, leoas; ou vacas, cadelas, ovelhas, minhocas? Não sei se já caçaram coelhos em noites de arco-íris lunares. Eu já. Faria tudo por uma noite de arco-íris lunar.

Há pessoas que preferem plantas a animais: rosas a coelhas. É uma preferência legítima. Eu gosto de rosas, orvalhadas pela manhã ou pelo fim da noite, com picos e olho para as outras plantas. E de coelhas, leoas, tigrezas, lobas e afins. O importante é que tenham dentes e mordam, ou espinhos e piquem.

Já alguma vez caíram num buraco? Numa toca? Numa gruta? Começa-se por cair. Depois acorda-se. Diz-se que não. Depois reconhece-se que a gravidade tem muita força. No fundo há raínhas, chapeleiros, animais para quem as palavras significam o que eles querem que signifiquem, reis impotentes. E rosas, e leoas potentes.

O fundo parece habitável, o whisky bebível, o mundo sem espinhas. E o mar: azul, límpido, violento, honesto, directo, tolerante para tudo excepto para a mentira. A noite tropeçou e caiu no mar. A vida tropeçou e começou no mar. O amor tropeçou e revigorou-se no mar. Hildegarde von Bingen tropeçou na vida e tudo isto faz sentido.

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