3.11.09

Luísa (cont.)

Luísa é uma médica de 38 anos. Está sentada ao pôr-do-sol no alto de uma falésia nas Azenhas do Mar. Tem dois filhos, um casamento a que atribui tanta importância como a que atribui à cor dos vestidos que leva para o trabalho: pouca, raramente, e nenhuma, a esmagadora maioria dos dias; e vários amantes. Desses, o seu favorito é Ricardo, um pianista cego que conheceu num concerto. Luísa acredita na liberdade, na independência, na soberania do individuo e passou uma vida – enfim, “pelo menos até agora” – a lutar por elas e a inculcá-las no espírito dos filhos – Pedro, de 13 anos e, e... - como hei-de chamar-lhe? Alexandra, pode ser? Gosto do nome: é bonito, evoca grandes feitos e grandes feitios. Fica Alexandra – Alexandra, de 11.

Já sabemos muito dela. Mas que sabemos, na realidade? Que se sabe de alguém? As pessoas são como um puzzle: se Deus existisse talvez Ele tivesse as peças todas todas; mas como não existe – pelo menos neste conto, pelo menos por hoje – elas estão espalhadas por muitas mãos, por muitos olhos.

Pelas, e pelos de Ricardo, por exemplo: para ele Luísa é uma voz, antes de mais nada. Uma voz grave, brincalhona, sorridente, com a qual diz maldades violentas sobre tudo e todos, conta piadas grosseiras e lhe sussurra asneiras quando fazem amor. É também uma pele; uma cabeleira espessa na qual ele mergulha as mãos; um par de seios do qual ele sente os mamilos, as auréolas grandes e duras. Para Ricardo Luísa é um som e um corpo – mas nunca, por exemplo, saberá como são olhos castanhos. Ele acaricia-lhos muitas vezes; beija-os, tenta ouvi-los (não consegue, claro. É uma brincadeira: “fecha os olhos, a ver se os oiço. Ouvi, vês? Eu não te dizia? Os olhos não são apenas o espelho da alma, são-lhe também o microfone”. “Não os fechei, idiota”).

Ricardo gosta da força com que Luísa o aperta quando se vem; e das felações que ela lhe faz – às vezes em locais ou momentos que ele desconfia não serem os mais apropriados (o que de resto lhe é totalmente indiferente: não ver é não ser visto - isto é, naturalmente, uma observação feita por quem vê). Conhece-a, no sentido em que, por exemplo, sabe como ela vai comentar uma notícia na rádio, ou uma conversa na mesa ao lado, ou responder-lhe a qualquer coisa que ele lhe diga; mas nunca a viu. Os comentários que ela faz às suas músicas são pertinentes – Luísa teve uma educação cuidada, é curiosa e não é pedante. Ou seja: pode ser, e é, culta. Ricardo sente-se bem com ela. "É mais", pensa, "do que dão muitos amores".

O marido faz dela outra imagem, claro: ele sabe que o casamento já não existe, mas pensa que Luísa deixou de o amar. Não lhe passa pela cabeça, preocupada apenas com automóveis “topo de gama”, roupas “topo de gama”, vinhos “topo de gama”, botões de punho “topo de gama”, resorts “topo de gama” que a mulher topo de gama que com ele vive nunca o suportou sequer, que se casou com ele porque fodia muito depressa e era palerma – coisa que ainda é, de resto. Durante alguns anos António pensou que ela se tinha casado por causa do dinheiro, mas foi obrigado a reconhecer – a realidade acaba sempre por se impor, mesmo que demore algum tempo – que tal não era o caso. Como muitos outros, aquele homem não tem bagagem intelectual suficiente para perceber que a estupidez pode ser a mais suave das prisões, a menos difícil das liberdades.

Sempre se sentiu inibido face à mulher: reconhece nela uma força – ou melhor, forças – que ele não apreende, nem controla. Um dia percebeu que os filhos tão-pouco lhe ligam: a mãe ocupou o seu, dele, vazio.

Para António Luísa também é um corpo; mas um corpo diferente do que é para Ricardo: um cabide com pernas onde pendurar os exclusivos modelos que lhe compra, para exibir nos restaurantes de luxo nos quais pavoneia a sua nulidade e dilapida o dinheiro da família (mais o que ganha como médico do jet set pindérico das revistas cor-de-rosa e de um clube de futebol desses que aparecem nos jornais todos os dias, tanto por causa do futebol como das patifarias dos seus dirigentes). António vê Luísa todos os dias, e às vezes à noite, quando vai ao quarto dela (de onde é imediatamente expulso), mas sabe menos dela do que Ricardo, ou alguns dos seus outros amantes: quem não sabe nadar tanto se afoga em meio metro de água como em alto mar.

Há muito tempo que António se adaptou a esta situação e não sente tristeza. Tem um círculo social do qual Luísa se excluiu totalmente, o que lhe permite engatar tudo o que lhe passe ao alcance do bolso e tenha menos de dois terços da sua idade ("um dia será metade", diz não sei se com apreensão se com orgulho). Não gosto de António, nada; e gosto muito de Luísa - é bem visível. Mas isso fica para depois.

Por agora só há uma pergunta importante: o que faz Luísa no alto da falésia? O que vai acontecer a seguir?

Luísa está apaixonada por Ricardo, mas não pode, ou não quer, reconhecê-lo; e ele por ela, mas não sabe dizê-lo. Seria a primeira vez, para ambos.

"Numa relação amorosa sabe-se como se entra, e não como se sai; e quando é ao contrário é pior: não se sabe como se entra mas sabe-se que acaba invariavelmente com lágrimas, baba e ranho, e choro. Num abismo, ao menos, sabemos como entramos e como acabamos: esmagados contra as rochas, que ficam cobertas de sangue e pedaços de carne. Para gáudio dos caranguejos, que se refastelam com o inesperado festim. Não sei se será melhor". Luísa olhava para baixo e a imagem não a atraía particularmente - excepto talvez a ideia que as vagas acabariam por tudo limpar. "Nada fica de nada. O mar limpa tudo; e se não for o mar é o tempo".

Mas é estúpido - aqui intervenho eu - suicidar-se nestas circunstâncias. Espero que Luísa não decida saltar, só porque está, ao 38 anos, confrontada com uma situação que sempre recusou, até hoje com sucesso. Ela deve pensar no resto: na profissão, da qual gosta e na qual se reconhece ("fazer bem a alguém que nem sequer se conhece e de quem não podemos, ou devemos, gostar"); nos filhos ("é estranho, como consegui estabelecer estes laços com eles, sem nada ter feito para isso"); em Ricardo ("como reagiria, se eu saltasse? Diria qualquer coisa como "coitada, esqueceu-se do pára-quedas", ou "estaria a olhar para longe e não viu o que lhe estava à frente do nariz?" e continuaria a tocar? Não creio"). Além de que olhar para um abismo real não é, nem de longe, a mesma coisa do que olhar para um abismo metafórico. E neste, pelo menos, tem-se algum prazer, enquanto se cai.

2 comentários:

  1. Concordo, Luís, que o melhor mesmo, na circunstância, é enveredar pelo abismo metafórico. ;-)

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.