13.10.09

Noite

Dedos ameaçadores, enormes, metálicos, a apontar obsessivamente para baixo: são escadas. Frias, baças, negras. Não se podem subir. Tremo. A noite rasga-se, aos bocadinhos. Alguém os lança pela janela, como se fossem confetti, migalhas de pão preto, cacos de uma esfera de vidro opaco que se partiu. Tremo. Um comboio desce as escadas, estremecendo como se tivesse malária. O fumo é feito dos pedaços da noite. Crianças agitam os braços à janela; não sei se dizem adeus ou pedem socorro.

No cais um velho pensativo está sentado num guindaste; um miúdo olha-o, sorridente. Não se encontrarão, nunca.

Escadas metálicas. Tenho frio. A noite rasga-se em bocados cada vez mais pequenos, como uma folha de jornal que se dobra em dois, quatro, oito, dezasseis, trinta e duas, sessenta e quatro. As letras escapam-se, com gargalhadas trocistas, ruidosas. As luzes apagam-se umas a seguir às outras. Nada fica, senão um cheiro repelente a pesadelo. É um deus louco, frenético, violento, caótico que rasga a noite e nos rasga em bocados pequenos, mudos.

As escadas dançam um French cancan. Oui cancan. O teu sorriso reaparece. "Estou melhor", dizes-me. A leste a manhã pesponta-se.

Acordo: dormes ao meu lado, tranquilamente, os seios em descanso, uma das pernas dobrada, a pele quente e macia como a paz, ou a solidão depois de um pesadelo.

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