23.7.09

Família (cont. e fim)

Como podem ver venho de boas famílias, com história e histórias. Claro que não sou perfeito, ninguém é; mas - digo-o sem falsa modéstia - sou a prova viva de que os genes não degeneram: evoluem.

Trabalho, como disse, num talho - o que desgostava bastante o avô Fachadas e faz rir a avó Feliciana; mas, apesar do meu magro salário, tenho um sonho (deixem-me esclarecer que ganho pouco: uma vez e meia o salário mínimo "até morreres ou te ires embora, o que acontecer primeiro", diz o meu patrão - a meu ver de uma forma pouco simpática para quem trabalha num talho). Mas tenho um sonho que me preenche a vida e isso é que conta.

Os meus primos e os poucos amigos que tenho riem-se de mim quando lhes conto este sonho, este projecto: fazer uma empresa de observação de baleias na Costa da Caparica. Uns dizem "não há baleias na Costa". Outros acrescentam "e em breve não haverá Costa". Pois bem, eu mantenho-me firme e mando-os passear. É verdade que hoje não há baleias nas nossas águas. Mas com o aquecimento global estou certo de que começarão a passar por cá, os grandes cetáceos. E quanto a essa balela da Costa ser levada pela erosão: que Governo o permitirá? Que Governo será suficientemente irresponsável para deixar uma zona tão bonita ir, literalmente, por água abaixo? Basta atentar no benefício que representa para a economia despejar areia na Costa para depois a ir dragar ao canal de acesso ao porto de Lisboa. Está em linha com as ancestrais tradições da governação portuguesa - e ainda nos permite dar uma lição àquele americano que dizia "em tempos de crise até cavar buracos e tapá-los a seguir é defensável": nós começamos por tapá-los, e escavamo-los depois. O que é muito mais complexo e rico (como vêem não me interesso apenas por genética e por baleias).

A verdade é: desde que este projecto se apropriou de mim a minha vida mudou radicalmente. A primeira preocupação foi, claro, assegurar a parte financeira. Fui a vários bancos e organismos, mas nenhum achou a ideia viável. Falta de visão, é outra pecha nacional. Pouco importa: desde que o avô morreu (e uma vez passado o choque, claro, e o desgosto) comecei a pôr rigorosamente metade de cada salário que ganho no banco, numa conta intocável. Ou seja: vivo com 0,75 (três quartos) do salário mínimo nacional. Actualmente isto representa aproximadamente 300 euros por mês (posso assegurar-vos que votarei no primeiro partido que prometer aumentar o salário mínimo, venha ele de onde vier).

Com este montante vivo: isto é, pago a renda e alimento-me. No fundo viver é isso, não é? Tudo o mais é supérfluo. Os meu primos - às vezes, não posso escondê-lo sempre, aborrecem-me um bocado - perguntam-me como é que eu faço. Eles, que têm uma boa vida e salários óptimos - um até trabalha numa ONG, dessas que paga salários mirambulantes - não têm projectos, nem sonhos. Eu fui o único a quem a fortuna do velho Fachadas teria servido para dar corpo a uma visão. Eles não: só pensam em automóveis e casas na praia, viagens a Londres e à China (meu Deus, à China! Fazer o quê? Que interesse tem aquilo?). Enfim, para eles a desilusão foi grande, mas a vida continuou. Para mim não: a mudança foi radical, violenta.

Comecei por negociar com os meus pais a renda do quarto (desde que comecei a trabalhar eles fazem-me pagar uma renda - a meu ver muito justamente). Prometi-lhes que começava a tomar banho de água fria, sempre; e em vez de o tomar todos os dias, passaria a um ritmo "dia sim dia não". O pai concordou imediatamente (ele não está muito de acordo com o projecto, e pensou que uns duches de água fria me fariam pô-lo de lado). A mãe opôs-se. Mas enfim, quem manda lá em casa é o pai, e a proposta foi aceite. A verdade é que tomar banho de água fria não custa nada: basta não ser friorento, e eu não sou (se fosse, como poderia trabalhar num talho?). Além disso, um duche de água fria espevita o sangue e as ideias. Já duchar-me em dias alternados é mais difícil, mas uma pessoa habitua-se - mesmo que levante alguns protestos dos colegas e dos primos e dos amigos (poucos, felizmente). Ando a tentar descobrir maneira de me lavar mais ou menos no talho - mesmo sofrendo a troça dos colegas, mas a isso estou habituado.

O mais difícil foi a parte da comida. Deixar de comprar discos, livros, viagens, flores para o quarto ou para oferecer, ou telefonar quando me apetece não foi difícil - de qualquer forma eram coisas que fazia muito raramente. Realmente penoso foi ajustar a alimentação (devo dizer que gozo de uma saúde de ferro, felizmente, e não preciso de remédios nem de médicos). Mas também a isso me habituei. Felizmente, suporto bem a disciplina férrea que um projecto desta envergadura exige. Comecei por reduzir a quantidade de cervejas que bebia quotidianamente (de 17 passei para 8); e a ir comer a supermercados: no máximo, 3 euros por refeição; estou a falar com a minha mãe sobre um almoço feito em casa e levado para o trabalho. Se conseguir, ganho um euro e meio, pelo que posso beber mais uma imperial por dia e ainda aumentar a poupança. E tive uma ideia genial: às segundas e sextas-feiras não almoço. Compenso aos sábados e domingos. No fundo, é uma espécie de mini-ramadan: só volto a comer ao jantar. É um regime óptimo, que até já me fez perder algum peso (pouco, infelizmente).

Outra fonte de poupança foram os transportes. Deixei-me de transportes públicos, passes e tudo isso. Desencantei uma velha bicicleta que o meu pai guarda desde os tempos da sua juventude. É antiga, mas em muito bom estado, que o pai sempre foi cuidadoso com o material. Emprestou-ma sem dificuldades: "pagas-ma com o dinheiro dos teus primeiros clientes", disse-me, com um orgulhozinho indisfarçável nos olhos (achei estranho, porque ele sempre se opôs ferozmente àquilo que chama "uma aventura sem futuro"). Afinal, estava a ver a sua city bike (como ele lhe chama. Os estúpidos dos meus primos chamam-lhe pastry bike) ser de novo utilizada. A bicicleta é, diga-se de passagem, muito bonita, se bem um pouco pesada. É nela que vou todos os dias para o meu trabalho: uma gloriosa descida de manhã, que à tarde se transforma em penosa subida. E é também nela que aos domingos vou ver o local da minha futura empresa.

Não o escolhi por acaso. A Costa da Caparica é dos sítios mais bonitos que conheço. É uma zona linda, semelhante àquilo que imagino ser Cannes ou St. Tropez - os prédios de um lado, o mar imponente do outro, e no meio uma longa promenade (só que lá ela é dos ingleses, parece, e cá é nossa e bem nossa). Lindo, moderno, os cafés todos iguais alinhados ao longo da promenade ("um bocadinho como em Londres, não é?" ouvi ontem um inglês dizer. Como se em Londres houvesse mar); as pessoas, lindas: famílias inteiras, dos avôs aos netos; os parques de campismo, tantos - fizeram-me pensar que assim deveriam ser os bairros da lata ou as favelas: é muito mais bonito do que aquelas barracas em chapa ondulada que vemos na televisão. E ainda dizem que um governo seria capaz de deixar aquilo ir por água abaixo! Aliás, é tão parecido com o Sul de França que anda-se um pouco e lá estão os pinheiros; e até tem uma praia chamada Riviera. Essa é que é essa.

Uma vida que a alguns pode parecer estúpida e sem sentido; não é. Pobre sim, indubitavelmente. Mas não estúpida ou sem sentido. E cada vez que vou à Costa da Caparica, montado na minha city bike, e vejo o futuro local do "Observatório de Baleias Gastão da Costa" (da Costa não é o meu apelido - é apenas uma singela homenagem ao local) compreendo finalmente o sentido daquele verso de Fernando Pessoa: "O sonho é ver as formas invisíveis" ("das baleias", acrescento eu comovidamente).

1 comentário:

  1. :-)

    Interessante definição: viver é ter (apenas) um projecto que preenche a vida?

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.