26.6.09

Cenas da vida quotidiana

A senhora que está sentada à minha frente no comboio tem um daqueles cães horríveis, pequenos, feios. Creio que é chinês, mas não tenho a certeza; não percebo nada de cães. Senta-se com os joelhos muito juntos, apertados um contra o outro, apesar de estar de calças. Tem um semblante carregado. Não é bem triste, é fechado, como se houvesse uma parede entre ela e o mundo. Parece-se com o cão, claro - todos os donos de animais se parecem com eles (não sei se os escolhem por serem parecidos ou se ficam assim posteriormente, numa espécie de zelligização animalesca). Mas não é uma parecença superficial, imediata: é profunda, quase psicológica.

Agora entrou outra amante de animais. Mal vê o cão dirige-se para ele com grandes sorrisos e gestos abertos. É pequena, franzina, feia. Começa imediatamente a tutear a dona do cão e fico a saber o nome ("Óscar") e a raça ("Pug") do animal. As cenas de ternura pelo cão são imediatas, melosas, exageradas, feias. Ficamos a saber que o Óscar (que horror!) dorme com a dona na cama, "ao lado". A recém-chegada explica que perdeu uma cadela, "arraçada de ridgeback", e que anda à procura dela - por qualquer razão suspeita que a cadela apanhou o comboio. A cada estação vai à porta e grita o nome da coitada da cadela, para quem a fuga deve ter significado, imagino, uma libertação comparável à de Paris pelos Aliados.

Há uns anos Portugal era um coio de rafeiros e ninguém ligava nenhuma aos animais. Hoje estamos pior do que os franceses. Enfim, talvez não tanto. Mas quase.

A senhora do Pug "Óscar" descontraiu-se: tens os joelhos afastados e sorri. Dá todas as explicações e responde a todas as perguntas que a outra lhe faz, mesmo as mais descabidas, como aquela de saber onde dorme o cão. A outra continua com manifestações exageradas, desadequadas, inconvenientes de ternura para com o "Óscar".

Tenho pena da cadela perdida, dos anos todos que teve de suportar tão feroz ternura; e sinto-me feliz por ela. Imagino-a leve, a trotar livre e anonimamente por todos os sítios que antes lhe eram interditos, sem abraços, beijos, festas e ruídos tão carinhosos como o de um sorvedouro.

Entra o revisor, e a senhora da cadela perdida não tem bilhete. Arma-se uma cena, porque no comboio está uma equipa de controladores e o revisor não pode, de todo, deixar passar. A senhora - pequena, franzina e feia - é malcriada, áspera. A doçura desvaneceu-se-lhe. Para ela, o facto de estar à procura do seu animal justifica que ande sem bilhete - passou o dia todo no comboio, "já viu o que isso não custa?"

A dona do Pug recupera o seu olhar e aperta os joelhos. Penso na canção da Annette Peacock, e na mãe que não a ensinou a sentar-se com os joelhos juntos (ou terá sido ao contrário? Não sei). Na estação a seguir saem os dois, o "Óscar" e a dona. A da cadela pedida está numa discussão violenta com o revisor e a equipa de controladores. O comboio fica parado um largo momento na estação. Pego na bicicleta e saio - pensei que a discussão se ia eternizar.

Mal emerjo do túnel vejo o comboio a partir. É domingo e são onze da noite.


1 comentário:

  1. Não vou falar da sua relação com os animais, tão diferente da minha (e não sou eu quem perde).

    Limito-me, a sorrir, a lembrar-lhe as extraordinárias páginas do genial Eça nas Notas Contemporâneas, com o título A Inglaterra e a França Julgadas por Um Inglês. O inglês é D. José, o seu pug, que, num risonho (este adjectivo é mesmo queirosiano e foi deliberado) séjour no Sul de França, numa carta à gata Pussy, que ficou na Inglaterra de nevoeiros e spleen, filosofa de maneira hilariante sobre as diferenças entre os dois países. E, claro, há essa fabulosa personagem que é o Amigo da Imparcialidade...

    Sempre que releio delicio-me. E rio como uma doida.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.