14.5.09

Catherine

I

Nada disto aconteceu, claro: ela não se chamava Catherine, não era guitarrista num bar de uma cidade qualquer que não era do Algarve. Era bonita, isso sim; e tocava bem, muito bem. Tinha o pior cheiro que me foi dado cheirar num corpo feminino em muitos, muitos anos - tantos pelo menos quantos levo de deitar corpos femininos numa cama, num beliche, numa mesa de cozinha ou num chão de sala de jantar.


II

Ontem estava a fazer umas arrumações em casa e encontrei um papel rasgado, um bocado de um daqueles tickets de café. Tinha umas palavras rabiscadas: "Thanks. C."

Chamava-se, como disse, Catherine; era guitarrista num bar de jazz de uma cidade qualquer do Algarve. Cheirava mal, e tocava divinamente. Encontrei o bar porque quando chego a um porto qualquer a primeira coisa que faço é fugir da Marina - aliás começo em geral por evitar entrar em marinas, só o faço se não houver alternativa. Mas se tiver que ser, nunca páro nas imediações, que são todas um horror, todas iguais, todas foleiras.

Não conhecia a cidade; enfim, não a reconheci: costumava ir para lá quando era miúdo, e depois passei mais de trinta anos sem a visitar. Não era a mesma cidade, naturalmente. Fora a loja dos doces tradicionais, a fortaleza e a estação de caminho-de-ferro não havia nada que conhecesse, ou me dissesse alguma coisa.

O bar estava escondido numa zona nova, uma coisa um bocadinho estranha, mais parecida com um café de quarteirão do que com um bar com música boa, e uma guitarrista croata, ou serva (ou eslovaca?) com uma cabeleira loira densa como alguns dias de chuva no Burundi ou no leste do Zaire, dias em que não se vê nada senão a vida, quando a chuva acaba, o sol regressa e as plantas se põem a crescer a olho nu.

Menciono o Zaire porque foi assim que a conversa com ela começou: um solo que me fez pensar em África, uma confirmação da parte dela (tinha lá vivido, em criança, ou tinha lá ido em adolescente - pouco importa, de qualquer forma nada disto se passou assim). Conversámos bastante e quando lhe propus que fôssemos para um hotel - não estava sozinho a bordo, e não me apetecia encher a embarcação, já de si pequena, com aquele cheiro - ela disse que sim com naturalidade. "Só te peço uma coisa: não me penetres, não tentes penetrar-me".

Pessoalmente penso que fizemos amor, mas deixo o debate aos técnicos. Tomámos duche juntos, um duche longo que se prolongou por um ainda mais longo banho na enorme banheira do hotel; deitámo-nos no chão da casa de banho (era verão, e o chão estava fresco) e acariciámo-nos, beijámo-nos, apalpámo-nos, mordemo-nos, virámo-nos e revirámo-nos e viemo-nos como se as comportas do céu se tivessem abertas (aí já estávamos na cama). Mas eu não a penetrei, e não sei se conta. Acho que sim, não é? Não sei.

Na realidade lembro-me mal de Catherine; só a vejo aos bocados: os mamilos enormes, o monte-de-vénus com pelos que nunca deviam ter visto uma tesoura na vida - quanto mais uma lâmina, ou cera -, os olhos quase transparentes de tão azuis, os cabelos, que por vezes me pareciam cobrir a cama toda, o quarto todo, o mundo todo. Não creio ter trocado mais do que três ou quatro frases com ela, depois daquele estranho pedido. Nunca percebi porque mo fez. Quando acordei ela já se tinha ido embora.

Nesse mesmo dia largava e não tive oportunidade de voltar ao bar. Guardei - mecanicamente, porque tenho o hábito de guardar tudo - o bocado de papel que encontrei na secretária do quarto. Estive quase para guardar também um dos cabelos amarelos com que a cama tinha ficado coberta. Não o fiz: pareceu-me de uma pieguice sem fim (não devemos temer a pieguice: quando é demais ela própria se encarrega de fugir de nós. Mas era demasiado novo para saber isso).

Encontrei o bocado de papel. Lembrei-me imediatamente de onde vinha: de uma mulher que não possuí, e me deixou uma das melhores recordações que tenho de uma noite de amor - uma noite que começou há muito tempo, e nunca há-de acabar.


III

Ontem não arrumei a casa.

2 comentários:

  1. Gostei muito de ler, Luís.
    P.S.: Não tendo uma perspectiva técnica na matéria, também penso que as personagens fizeram amor. Surpreende-me, no entanto, que o nosso herói tenha convivido tão alegremente com o cheiro, que podia ser apenas original, mas era, pelos vistos, péssimo, «o pior que lhe fora dado cheirar num corpo feminino em muitos, muitos anos...» Não posso falar por experiência própria, porque não tenho olfacto, mas toda a literatura romântica é unânime em considerar o cheiro um factor decisivo no desenvolvimento, por atracção ou repulsa, dos processos amorosos. ;-)

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  2. Luísa,

    o nosso herói era marinheiro. É quiçá uma circunstância atenuante (ou mesmo explicativa) para a sua de outra forma incompreensível capacidade de separar o cheiro da líbido.

    Além disso presumo que ele era capaz de imaginar como ficaria a senhora, depois de um banho. Não sei.

    Penso, contudo, que a velha frase "as aparências iludem" se aplica a todos os sentidos; e não só à vista, como é comum utilizá-la. Não sei.

    Obrigado: é bom saber que gostou.

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.