31.5.09

Solidões - II

Já o fim de um amor é mais facilmente explicável, perceptível. O que não significa, claro, que não seja um momento de solidão penosa, igualmente. Mas isso é outra história.

Solidões

Há no amor dois momentos de solidão profunda, dois momentos em que estamos irremediavelmente sós: na decisão de começar uma relação e nos orgasmos. Destes últimos não é muito interessante falar. Do começo de uma relação é impossível: ninguém nos compreenderia, de qualquer forma.

30.5.09

Textures, futur

Oui, mon amour, l'amour a une texture; comme la peau, les roses, le sourire ou le tissu de ces draps qui chaque jour nous accueillent et nous caressent; et nous caressons, en retour. Le futur aussi, en a une, quoiqu'un peu différente: on peut la sentir mais pas la toucher; la faire, chaque jour, mais pas la voir.


Verão

O verão chegou. Hoje o alarve, alvar, repasto sorriso da baía de Cascais, alvo de sol, prenhe de velas e de vento não enganava ninguém.

As frentes da luta

Tenho muitas vezes falado nas vantagens e desvantagens da luta em todas as frentes (por exemplo, aqui - parece-me que é a única, mas não faz mal). Uma das grandes vantagens, a meu ver insuficientemente explorada, é que permite variar - ou desviar, ou manipular - as fontes de tristeza, quando os problemas se acumulam em todas. É uma benção, poder jogar com a dor como um malabarista com bolas coloridas.

Rosas e lichies

Bom dia. Quero um ramo de rosas calmamente encarnadas, por favor. No outro dia comprei aqui umas violentamente vermelhas, lembra-se? Pois não serviram para nada. Agora vou experimentar um vermelho mais sereno, mais tranquilo, se tiver. O quê? Acha que o problema não está na calma ou na violência do encarnado? Você, o melhor vendedor de rosas do Universo e arredores acha que eu não devia oferecer rosas vermelhas? Que rosas aconselha então? Transparentes? Não quero rosas transparentes, meu caro. Quero-as encarnadas - profunda, infinita, serenamente encarnadas. E rugosas, por favor; se não fossem rosas, eu ofereceria lichies, que são os frutos mais enganadores que existem, não acha? São os melhores: afastam logo quem pára na superfície das coisas, quem não sabe que a verdade se descasca, também. Talvez devêssemos pôr uns lichies no ramo de rosas, pendurados nos espinhos. Sim, claro que quero que deixe os espinhos nas rosas. Obrigado. Amanhã dar-lhe-ei notícias. Ou daqui a um século, quem sabe?

Et puis merde, Francisco!

O Francisco Lobato encontrou finalmente o patrocinador que faltava (a Roff, que o sucesso a acompanhe, sempre), e já vai a caminho de França. Merde! é a forma tradicional de desejar boa sorte ou boa v... (ooops, esta expressão é proibida) a um marinheiro em França.

(A quem vir semelhanças com o teatro: não é uma coincidência. Os marinheiros, habituados a lidar com cabos e com imprevistos eram as pessoas que os teatros contratavam para gerir os cenários. Para lá levaram bastantes das suas tradições.)

Aqui fica a fotografia de um pequeno momento daqueles a que todos nós, marinheiros, cedemos de vez em quando: as coisas verdadeiramente importantes não são visíveis, muito menos mostráveis.


28.5.09

Torres

Regras

Não respeitar as regras: dar puns à mesa, palitar os dentes com os dedos, roer os ossos à mão, mastigar com a boca aberta, que sais-je?

Há, contudo, algumas regras que convém conhecer antes de desrespeitar as outras: a) Só o podemos fazer com pessoas de quem gostamos realmente e cujo afastamento, no caso de não apreciarem o nosso comportamento (por, mais frequentemente, o interpretarem mal) nos doer; b) só o podemos fazer (claro, mas nunca é de mais repetir) se soubermos que estamos a desrespeitar normas essenciais para a convivência civilizada e pacífica de humanos; c) não o devemos fazer frequentemente, e muito menos sempre com a mesma pessoa.

Desrespeitar as normas com pessoas de quem não gostamos é um desperdício, um excesso de respeito: as pessoas de quem não gostamos não merecem as nossas aparências, esforço, má-educação, mentiras.

27.5.09

Fotografia

Fotografar a vela é reconhecidamente difícil - e, durante muitos anos inútil, pensei. Depois mudei de opinião, naturalmente. Este site explica porque é que é bom mudar de opinião.

(Este também, mas não é só de vela - escolham o portfolio "Voile", em "Présentation / Portfolio").

Cansaço, tu

O cansaço espalha-se pelos interstícios todos dos músculos, como tu pelas sinapses todas. Como o vento fresco da manhã ou o teu olhar, apaziguado. Como a água de um duche frio antes de ti, ou antes do dia.

Bicicleta, demónios

A bicicleta é uma forma boa de enxotar os demónios: se os tentarmos afogar constantemente eles acabam por aprender a nadar.

Uma caixa de ti - Joni Mitchell

A Luísa pôs outra vez "A case of you", da Joni Mitchell. Abençoada seja. Deixo aqui a letra, porque sim (agradecimento, homenagem, plágio, falta de imaginação - a escolha é vossa). A canção é sublime, e a letra, a letra:

Just before our love got lost you said,
I am as constant as a northern star.
And I said, Constantly in the darkness
Where's that at?
If you want me I'll be in the bar.
On the back of a cartoon coaster
In the blue TV screen light
I drew a map of Canada
Oh Canada
With your face sketched on it twice
Oh, you're in my blood like holy wine
You taste so bitter and so sweet
Oh I could drink a case of you, darling
And I would still be on my feet
Oh I would still be on my feet

Oh I am a lonely painter
I live in a box of paints
I'm frightened by the devil
And I'm drawn to those ones that ain't afraid
I remember that time you told me, you said,
Love is touching souls
Surely you touched mine
'Cause part of you pours out of me
In these lines from time to time
Oh, you're in my blood like holy wine
You taste so bitter and so sweet
Oh I could drink a case of you, darling
Still, I'd be on my feet
I would still be on my feet

I met a woman
She had a mouth like yours
She knew your life
She knew your devils and your deeds
And she said,
Go to him, stay with him if you can
But be prepared to bleed
Oh but you are in my blood
You're my holy wine
You're so bitter, bitter and so sweet
Oh, I could drink a case of you, darling
Still I'd be on my feet
I would still be on my feet

Nós e eles; ou: contrição

À medida que acumulo quilómetros e diferentes trajectos de bicicleta vou começando a perceber duas ou três coisas. Uma delas é a razão que assiste aos automobilistas, que buzinam à menor infracçãozita daquelas inócuas que todos os ciclistas em qualquer parte do mundo cometem.

Eu percebo, e acho legítimo: afinal, em Lisboa os automobilistas não cometem infracções nenhumas, sejam elas inócuas ou mais graves; não estacionam em cima dos passeios, não passam com o sinal encarnado, são atentos e respeitam todos os outros utilizadores do espaço público. É portanto compreensível que à mais pequena coisa que nós, ciclistas, façamos eles buzinem desvairadamente.

E eu faço um acto de contrição, cada vez que »respondo« à buzinadela.

26.5.09

Meta-post, múltiplas; ou: been there

http://donvivo.blogspot.com/search?q=teimosia
http://donvivo.blogspot.com/search?q=perseverança
http://donvivo.blogspot.com/search?q=persistência
http://donvivo.blogspot.com/search?q=obstinado
http://donvivo.blogspot.com/search?q=obstinação
http://donvivo.blogspot.com/search?q=sonho


Never give an inch, never never never let go, never give up, never ever consider anything but victory. Il n'y a point de fin, avant la fin.

Desvio

As palavras desviaram-se-me, como se fossem água num canal; ou pássaros sem uma das asas, formigas desorientadas, um raio de luz na água. Não foste só tu, não penses: tu és a cereja da vida, não a vida; a comporta da barragem, não a barragem; o ar fresco, estimulante, picante da manhã, não a manhã.

25.5.09

Lágrimas

Quantas lágrimas são precisas para que seja considerado "chorar"?

24.5.09

Jeanne Moreau et les vieux navires

Jeanne Moreau - Où vas-tu Mathilda?

21.5.09

João Bénard da Costa

Hoje morreu João Bénard da Costa. Do pequeníssimo núcleo de bons professores que tive na ESC era de longe o melhor. Lembrar-me-ei sempre das suas camisas, recipientes para tudo, de cinza de cigarros a molhos do que quer fosse que estivesse a comer. O contraste da sua bonomia, da sua gentileza e disponibilidade com o rigor com que levava o ensino da História de Cinema era surpreendente. Era uma personalidade e um professor extraordinário.

18.5.09

Foutaises

"...et toutes ces foutaises que les hommes écrivent sur les femmes...", leio algures num livro de Beckett ("Bande et Sarabande", para quem quiser saber). Não é bem só sobre as mulheres, como qualquer pessoa que leia o Don Vivo regularmente sabe.

17.5.09

Obrigado

Um obrigado à Luísa, do Nocturno. Desta vez não posso responder: sempre tive uma vida que me impedia de seguir séries televisivas; há mais de dez anos deixei de ter televisão. De miúdo lembro-me do Bonanza, o que não é muito...

Evolução

É decerto uma falha da evolução: porque é que os remédios da alma fazem tão mal ao corpo, no dia seguinte?

16.5.09

Ser, parecer, aparecer

Nem tudo o que parece é; como nem tudo o que aparece.

La Diferenza

Tenho, no que a bares diz respeito, a sorte, o privilégio, a honra de ser amigo do melhor barman do mundo (o Luís, da Casa do Largo, em Cascais) e irmão do melhor proprietário de bares do universo. É uma sorte, porque é o único irmão que tenho.

Este meu irmão chama-se Hernâni Miguel e conheci-o há vinte anos nos Açores: era, creio, agente de um grupo de música da Guiné-Bissau chamado Issabari, ou coisa que o valha.

Depois perdemo-nos de vista, reencontrámo-nos naquele que foi para mim, durante algum tempo, o único bar potável do "novo" Bairro Alto (o Targus, para quem perguntar), perdemo-nos outra vez de vista até que há dois ou três anos nos reencontrámos.

O Hernâni abriu, em sociedade com um senhor simpatiquíssimo chamado Miguel Ruah, um novo bar no Bairro Alto. Chama-se La Diferenza. O nome não é um vago desiderato estético: é um programa - e, com o Hernâni e o Miguel à frente, é um objectivo que vai, de certeza, ser atingido.

Para nós, para todos aqueles que gostam de bares e não gostam do Bairro Alto (por uma simples e, reconheço, contestável necessidade de coerência interna) La Diferenza vai, realmente, fazer uma diferença. Porque a noite não tem nada a ver com aquelas massas de imbecis alcoolizados, agarrados a copos de plástico nas ruas outrora secretas, herméticas, e agora vomitadas e graffitadas do Bairro Alto. Para mim, pessoalmente, também: afinal é bom vermos um irmão fazer aquilo que sabe, vírgula, outra vez, vírgula, finalmente.

O La Diferenza fica na Rua da Atalaia, nº 172. É pequeno, bonito, tem música ao vivo, está no princípio e é uma sorte.

Erecção

Vai um gajo pela rua e de repente aparece-lhe uma erecção, vinda sabe-se lá de onde. A primeira pergunta que um gajo deve fazer-se é, claro "será esta erecção minha?" e procurar a resposta. "De quem é, se não for?"

É difícil saber a quem pertencem as erecções, na maioria dos casos. Por mim decidi, há já muito tempo, não ligar à propriedade delas, excepto em casos particulares, especiais, raros: aqueles em que se pode dizer não que "é minha", mas "é nossa".

Parece um bocado pateta, dito assim, eu sei. E se calhar é. Mas não sei dizer patetices disfarçando-as de coisas profundas, ou inteligentes. E a verdade é esta: as únicas erecções com as quais, a meu ver, se deve perder tempo é com aquelas que, não sendo minhas, não são de mais ninguém, se não nossas. Isto é, de hoje; não de ontem, nem de amanhã.



Nota: a ideia de erecções que se passeiam sem estar acompanhadas pelos respectivos donos é do filme "Providence", de Alain Resnais.

15.5.09

Contrabando de versos

Contrabando de Versos é um projecto alemão (mais especificamente berlinense) que consiste em juntar a poetas alemães poetas de outros países ou línguas. Cada ano uma país (ou idioma) é convidado. Os poetas organizam-se em duplas, cada um traduzindo / refazendo / "mudando" o ou os poemas do outro.

Este ano a língua convidada foi o português: havia poetas de Portugal, Brasil, Guiné, Moçambique e Angola. Cada um deles fez equipa com um poeta alemão. O resultado é um livro (o qual pode ser adquirido amanhã no stand da Sextante na Feira do Livro, passe a publicidade - é mais do que publicidade, é uma fortíssima sugestão para acorrerem em massa).

Corrijo: o resultado é muito mais do que um livro; é um entusiasmante, estimulante, revigorante, refrescante encontro de pessoas e mentes, de línguas e dificuldades, de vontades e inteligências, de sons e soluções. Não sei como são criadas as equipas - não havia forçosamente qualquer afinidade entre tipos de poesia, à partida, o que só contribuíu para tornar o exercício ainda mais enriquecedor.

14.5.09

Catherine

I

Nada disto aconteceu, claro: ela não se chamava Catherine, não era guitarrista num bar de uma cidade qualquer que não era do Algarve. Era bonita, isso sim; e tocava bem, muito bem. Tinha o pior cheiro que me foi dado cheirar num corpo feminino em muitos, muitos anos - tantos pelo menos quantos levo de deitar corpos femininos numa cama, num beliche, numa mesa de cozinha ou num chão de sala de jantar.


II

Ontem estava a fazer umas arrumações em casa e encontrei um papel rasgado, um bocado de um daqueles tickets de café. Tinha umas palavras rabiscadas: "Thanks. C."

Chamava-se, como disse, Catherine; era guitarrista num bar de jazz de uma cidade qualquer do Algarve. Cheirava mal, e tocava divinamente. Encontrei o bar porque quando chego a um porto qualquer a primeira coisa que faço é fugir da Marina - aliás começo em geral por evitar entrar em marinas, só o faço se não houver alternativa. Mas se tiver que ser, nunca páro nas imediações, que são todas um horror, todas iguais, todas foleiras.

Não conhecia a cidade; enfim, não a reconheci: costumava ir para lá quando era miúdo, e depois passei mais de trinta anos sem a visitar. Não era a mesma cidade, naturalmente. Fora a loja dos doces tradicionais, a fortaleza e a estação de caminho-de-ferro não havia nada que conhecesse, ou me dissesse alguma coisa.

O bar estava escondido numa zona nova, uma coisa um bocadinho estranha, mais parecida com um café de quarteirão do que com um bar com música boa, e uma guitarrista croata, ou serva (ou eslovaca?) com uma cabeleira loira densa como alguns dias de chuva no Burundi ou no leste do Zaire, dias em que não se vê nada senão a vida, quando a chuva acaba, o sol regressa e as plantas se põem a crescer a olho nu.

Menciono o Zaire porque foi assim que a conversa com ela começou: um solo que me fez pensar em África, uma confirmação da parte dela (tinha lá vivido, em criança, ou tinha lá ido em adolescente - pouco importa, de qualquer forma nada disto se passou assim). Conversámos bastante e quando lhe propus que fôssemos para um hotel - não estava sozinho a bordo, e não me apetecia encher a embarcação, já de si pequena, com aquele cheiro - ela disse que sim com naturalidade. "Só te peço uma coisa: não me penetres, não tentes penetrar-me".

Pessoalmente penso que fizemos amor, mas deixo o debate aos técnicos. Tomámos duche juntos, um duche longo que se prolongou por um ainda mais longo banho na enorme banheira do hotel; deitámo-nos no chão da casa de banho (era verão, e o chão estava fresco) e acariciámo-nos, beijámo-nos, apalpámo-nos, mordemo-nos, virámo-nos e revirámo-nos e viemo-nos como se as comportas do céu se tivessem abertas (aí já estávamos na cama). Mas eu não a penetrei, e não sei se conta. Acho que sim, não é? Não sei.

Na realidade lembro-me mal de Catherine; só a vejo aos bocados: os mamilos enormes, o monte-de-vénus com pelos que nunca deviam ter visto uma tesoura na vida - quanto mais uma lâmina, ou cera -, os olhos quase transparentes de tão azuis, os cabelos, que por vezes me pareciam cobrir a cama toda, o quarto todo, o mundo todo. Não creio ter trocado mais do que três ou quatro frases com ela, depois daquele estranho pedido. Nunca percebi porque mo fez. Quando acordei ela já se tinha ido embora.

Nesse mesmo dia largava e não tive oportunidade de voltar ao bar. Guardei - mecanicamente, porque tenho o hábito de guardar tudo - o bocado de papel que encontrei na secretária do quarto. Estive quase para guardar também um dos cabelos amarelos com que a cama tinha ficado coberta. Não o fiz: pareceu-me de uma pieguice sem fim (não devemos temer a pieguice: quando é demais ela própria se encarrega de fugir de nós. Mas era demasiado novo para saber isso).

Encontrei o bocado de papel. Lembrei-me imediatamente de onde vinha: de uma mulher que não possuí, e me deixou uma das melhores recordações que tenho de uma noite de amor - uma noite que começou há muito tempo, e nunca há-de acabar.


III

Ontem não arrumei a casa.

13.5.09

Revisão da matéria dada

Sedução é contenção, minha querida.

12.5.09

Pobrezas

"Pobre como um rato de igreja": a expressão é de Virginia Woolf. Tinha razão: até um rato de esgoto come melhor.

Pedras piegas

Chorava lágrimas grossas, solitárias, tristes como pedras num dia de chuva. Disse-lhe para se deixar de pieguices: nem as lágrimas, nem as pedras acabarão, nunca.

Meço as palavras

Meço as palavras; cada milímetro. Sigo-as com o olhar, quando elas passam sobre a superfície lisa do teu ventre, como numa praia, antes de baterem na água. Olho-as todas: andam sempre em revoadas, as palavras.

Como se, sozinhas, não se aguentassem; como se, sozinhas, não passassem de baças e desoladas estátuas numa praça vazia, à luz cinzenta da chuva, interminável.

11.5.09

Luminosa limpidez

Há um fio que os une. Não sei que nome dar-lhe: "tempo"; ou "a luminosa limpidez de um sorriso"; ou "a clareza simples da atracção por uma palavra, uma pele". Não sei: é difícil, a definição dos fios que unem as pessoas.

Há um fio que os une: escrevem-se directamente na pele, todas as noites, longas circunvalações que se poderiam identificar como letras novas de um alfabeto antigo, numa língua ancestral.

"És o meu caderno, e nele reescrevo a minha vida", disse um. "Cuidado: esse caderno que agora abres, tão delicadamente, não tem fim: se o abrires completamente ele nunca mais se fecha", respondeu o outro. Talvez seja esse o fio que os une: letras e tempo, à flor da pele.

Passados, Descobertas

Estou farto das Descobertas e de passados. O futuro não se faz a olhar para trás - é o contrário: os passados fazem-se construindo futuros. As Descobertas são hoje o nosso passado porque um dia foram o nosso futuro.

Devemos olhar para o futuro e arregaçar as mangas, se queremos voltar a ter um passado do qual nos possamos orgulhar.

Ditos

Portugal é um país de não-ditos, ou de malditos.

10.5.09

Exercícios da língua portuguesa

Provavelmente inúmeras pessoas por esse mundo fora prefeririam, se a escolha lhes fosse dada, que o sol nascesse a Oeste e se pusesse a Leste, ao contrário do que actualmente acontece. O impacto na vida dessas pessoas - e de todos nós - seria nulo. O Império do Sol Nascente chamar-se-ia quiçá Império do Sol Poente; o Império do Meio continuaria a ser Império do Meio; o vento a que hoje chamamos (em espanhol) "Levante" chamar-se-ia "Poniente", e vice-versa.

Já imensas coisas mudariam se o sol, em vez de girar no sentido Leste - Oeste o fizesse no sentido Norte - Sul, ou Sul - Norte. Isso sim, seria uma mudança importante, de grandes e imprevisíveis consequências. Transformar-se-ia a Groenlândia numa espécie de Japão? Teria a terra um número infinito de equadores, e um só meridiano? Para onde iriam os gelos?

Claro que se pode considerar que tudo isto não passa de um exercício teórico, académico: o sol nasce a Leste e põe-se a Oeste. E contra isto nada, rigorosamente nada há a fazer - excepto eventualmente trocar os sentidos de "Leste" e "Oeste", mas isso seria semântica, semântica e nada mais.

Há, contudo, coisas que não mudariam, qualquer que fosse o sentido de rotação da terra: tu continuarias, por exemplo, a ser a razão pela qual o sol se levanta e deita, todos os dias em todos os lugares - pelo menos para mim, claro - (e continuarias a ser a razão pela qual a palavra "tu" existe em todas as línguas, mas isso é outra disciplina); continuarias a ser a razão pela qual te escrevo todos os dias, de manhã à noite e da noite à manhã, mesmo quando não te escrevo; um dia sem ti continuaria a ser como um domingo cinzento e triste no qual o sol se tenha levantado a Norte, e uma vida sem ti como uma Terra sem sol.

E contra isto nada há a fazer, rigorosamente nada - excepto talvez esperar que tu existas, claro.

Selvagens

Aqueles selvagens daqueles americanos, pacóvios como só eles sabem ser, fizeram algumas modificações no site da OPC / NOAA. As cartas estão muito mais legíveis, há mais regiões e melhor divididas.

Quem se interessa por meteorologia, ou precisa de informações mais aprofundadas do que "vai chover" deve visitar este site. Tem cartas de tempo animadas para todos os oceanos, com loops a 3 e 7 dias. O modelo utilizado pela NOAA não é infalível, claro, mas parece-me um dos melhores do vasto leque disponível.

Adenda: as pessoas que porventura pensem dar grandes passeios de bicicleta na semana a seguir à que aí vem deviam rezar para que aqueles H que se vêem no quarto inferior direito da carta se mantenham por ali.

Maio

Estamos em Maio, a cidade está triste como o pátio de uma escola num domingo de férias, lembro-me de Dunkerque e só me apetece ir comer mexilhões com batatas fritas e beber cerveja, amar-te e passear pelo nevoeiro e pelo frio com o calor mais terno do mundo, com os olhos mais bonitos do mundo e com o desejo mais límpido do mundo; e o sorriso, esse sorriso com que me inundas a alma até aos abismos e no qual o cinzento se dissolve, o tempo, as palavras.

Dicionários

Gosto muito de dicionários, de os ler - sou capaz de ler um dicionário por letras, por exemplo; ou ao acaso, quando procuro uma palavra que não sei bem qual é. Ultimamente estou limitado ao Dicionário da Língua Portuguesa Online ("limitado" refere-se ao facto de só poder consultar esse, e não às suas qualidades, que são muitas).

Hoje tropecei na palavra inconho, que inicialmente pensei ser o contrário de conho, mas não é.

9.5.09

Firmes são as verticais do desejo

Firmes, tão firmes são as verticais. As horizontais são mais indistintas, menos claras. Às vezes é o contrário, claro: horizontais firmes como as rochas do Cabo da Roca e verticais tíbias. Ou então não há fimezas em lado nenhum: nem nas horizontais nem nas outras, que agora são tão verdes e tão direitas, amarelas e sensuais.

"Nunca se deve oferecer jarros a uma senhora que não se conhece bem", dizia-me já não sei quem. Nunca os ofereci - mas ofereci-me eu a eles. Tantas vezes: tão direitos, tão firmes, tão sólidos. E agora recebo-os: se fosse uma senhora teceria um comentário inteligente sobre as formas horizontais um pouco difusas; falaria do tempo que levaram a crescer, do hirto que eles são; mas não falaria das verticais, essas verticais do desejo que sabem que o essencial não se vê, e só raramente se deixa fotografar.

O essencial está nas horizontais. De tão deitadas me fazem pensar em ti, quando nos amámos pela primeira e última vez. O teu sorriso era aquele: amplo, difuso, belo, quase monocromático - porque a felicidade o é - tão leve, alegre.

Só depois de te amar te vi. Eras a porta que todos sonhamos na Índia, ou numa daquelas possessões que perduraram até hoje. Eras a porta e a folha o verde da água e da árvore, numa só: eras tu, "inesgotável e pura", reflexo de um desejo límpido num outro desejo límpido, defendido por uma porta impugnável, e escancarada.

Dia, nada

Um dia vou dizer-te nada. Nesse dia ter-te-ei dito tudo. Oxalá chegue depressa.

Espaço

Há um espaço à minha frente, um espaço vasto. Está povoado, claro: o futuro devia ser, mas não é um deserto.

Tempo

Não se devia dar tempo ao tempo: tem-no de sobra. Aliás: ele é que nos devia dar tempo; ou melhor: ensinar-nos a viver com ele, fabricá-lo, modelá-lo como plasticina, adaptá-lo a nós, que esperamos impacientes como se não houvesse futuro.

8.5.09

Só para lembrar a alguns mais esquecidos

As coisas e a pele das coisas

As verdades têm pele, eu sei: já encontrei algumas. As palavras não. Andam sempre nuas, ou vestidas com outras palavras. Devíamos pôr peles nas palavras, iguais às das verdades: elas precisam, como a vida.

Fragmento

"Há vezes em que precisamos de barragens contra as palavras, e há vezes em que precisamos de lhes abrir as comportas, às barragens, porque as palavras nos cirandam por tudo quanto é canto e veia e artéria e canal e nos saltam pelos poros e pelos olhos orelhas e há vezes em que se escondem, as cabras e há que ir buscá-las uma a uma, puxá-las das profundezas das grutas onde se encafuaram.

E depois lá aparece uma a boiar, porque as palavras andam sempre a banhar num líquido semiótico - ou será amniótico? Nunca sei - e há uma que lá vem à superfície como as garrafinhas do "Era uma vez na América" e por ali fica até que alguém a venha apanhar e beber.

Hoje a que me calhou na rifa foi "Juízo", e de como a falta dele é tão benéfica, ou de como quantas vezes nos enganamos na definição da coisa e aquilo que nos aparecia como falta de juízo no fundo se revelou um juízo enorme. Mas isto só acontece quando as palavras estão todas misturadas e muitas vezes andam - quase sempre, aliás.

"Juízo" anda sempre misturado, por exemplo, com "razão", e nunca aparece com "intuição" - assim como andam misturadas, as palavras por vezes criam inimigas, ou antagonismos estúpidos e recusam-se a aparecer juntamente com outras. "Juízo" e "intuição" são dessas, nunca aparecem juntas, mas eu cá para mim acho que deviam andar muito mais juntas do que andam pela razão simples e irrefutável que na vida real não se largam. Refiro-me à vida onde não há palavras, à vida onde pelo menos não são elas que mandam, porque há uma vida assim, uma vida sem palavras, uma vida onde a gente quer dizer as coisas e as coisas não se deixam dizer e depois há outra vida em que é preciso conter as palavras, se bem muitas vezes nem duas barragens cheguem, quanto mais uma só.

... "juízo" e "medo" também andam sempre juntas, amam-se sem parar e adquiriram uma respeitabilidade enorme ..."

7.5.09

Apresentação

A apresentação do projecto Mares - Olhares da Língua Portuguesa correu magnificamente bem. Na mesa estavam representantes dos Ministros da Cultura e do secretário de Estado dos Assuntos do Mar, o Secretário Geral da CPLP, o Embaixador do Brasil junto à CPLP. Na sala, cerca de 70* pessoas.

Rão Kyao estava em estado de graça. Tocou cerca de meia-hora e foi sublime. Os organizadores do evento deixam aqui expresso, explícito, um grande Obrigado! pela enorme gentileza de Rão e dos seus músicos.

O evento terminou com um excelente e animado cocktail, simpática oferta da Casa do Marquês.

* - de trás das cortinas dizem-me "80 pessoas".

Aproveito para deixar aqui o meu agradecimento a todas e todos aqueles que nos encorajaram, que partilharam connosco o desejo e a esperança de ver este projecto concretizar-se. Bem hajam, Luísa, Arábica, Catarina, Fugidia (o link fugiu). Esqueço-me decerto de alguém.

Inquietante

O nosso ministro da economia não sabe distinguir uma papa de uma farinha. Saberá distinguir outras coisas? Sei lá, a demagogia do bom senso, por exemplo? Ou o debate político da peixeirada?

Hallelujah!

Parece que o bom senso ganhou. Vamos ver. Se for o caso, a cidade de Lisboa fica a dever uma a Miguel Sousa Tavares.

"Acabou a guerra dos contentores. Lisboa vai ter um jardim"

Mais aqui e aqui.

6.5.09

Destinos, magnetismo

De repente as palavras encontram um destino, e é para lá que voam, se as deixarmos fazer o que querem. Como pombos-correio, ou limalha de ferro nas experiências sobre magnetismo.

Nomes

"What's in a name?" Não sei; não ligo muito a nomes, e ainda bem: nunca me lembro deles, e faço gaffes horríveis, por vezes.

Mas alguns atraem-me especialmente. Digo-os devagar enquanto os escrevo, enrolo-os, retenho-os... oops, desculpem, estava a falar de nomes.

5.5.09

Sono

Fazes-me perder o sono, mulher; procuro-o na tua pele, no teu olhar, no interior das tuas coxas, no lado de trás dos teus joelhos, nas raízes dos teus cabelos, nas circunvalações das tuas orelhas, na regular sucessão de pequenas colinas do teu dorso, naquela planície sem fim que é o teu ventre. Procuro-o nos dedos dos teus pés, na coivara dos teus dedos, na superfície - tão leve, tão alegre - dos teus lábios.

Procuro-o na leveza, que é o teu verdadeiro nome. E quando o sono chega é leve, finalmente.

PS - a expressão "coivara dos dedos" é de um poema brasileiro cujo autor não recordo e que li há muitos anos na revista Nova, da qual só saiu um exemplar, infelizmente. "Coivara" quer dizer incêndio. É uma palavra bonita. Como um incêndio, ou alguns dedos. Nem todos os dicionários a registam.

As coisas não se passaram assim (1ª parte, cont. e fim)

Acredita, não se passaram assim. Se se tivessem passado tu estarias agora ao meu lado a corrigir-me os posts, por exemplo. Ou a acariciar-me o olhar com o teu, tão ligeiro, tão deslizante, tão certeiro.

Nada como o meu: mas isso que importa, agora? As coisas não se passaram assim.

Inspiração

Não, não estou inspirado. E não penses sequer que és tu que me inspiras. Nada disso. Que te faz pensar que um olhar alegre, uma pele suave, dois seios imperiosos ou um sorriso cúmplice me inspiram? Não penses sequer nisso.

Não penses em nada, aliás: nem a certeza tenho de que pensar produza, sempre, bons resultados. Lembra-te do dia em que pensei amar-te, por exemplo.

Foi assim que as coisas não se passaram

I

As coisas não se passaram assim. As coisas nunca se passam como as vemos; e muito menos como as dizemos. Ou seja: as coisas não se passaram assim. Nunca. É por isso que muitas vezes pômos aspas nas coisas. Assim: "coisas". Mas a verdade é que as "coisas" nem sempre precisam de aspas, mesmo quando não se passaram como nós as vimos, pensamos ou sonhamos.

Por exemplo: vejamos as "coisas" de hoje. Duas raparigas estão sentadas ao meu lado no restaurante. Outras duas na mesa em frente. As duas ao meu lado estão "sozinhas" - com aspas; e são bonitas, sem elas. As que estão à minha frente têm dois gajos. Uma delas (a que está de costas para mim) tem o rego do cu à vista. São feias, as duas.

Depois foram-se embora. Isto é: as bonitas, que estavam ao meu lado, foram-se embora. Não quero sequer sonhar que há uma relação entre o rego do cu à vista e as outras terem ficado no restaurante, com dois gajos. Nem pensar nisso. Mas há, de certeza. Uma conspiração universal (e se calhar involuntária, inconsciente) contra um velho lúbrico, gordo e careca mas com um certo sentido de estética, que se sente mais estimulado por uma cara bonita do que por umas costas que não acabam a tempo.

Agora apercebo-me que um dos gajos da mesa à minha frente é uma gaja, afinal. São três. As coisas não são, portanto, como as vemos: um dos gajos é uma gaja, porque, simples e irrefutavelmente eu a olhei melhor. O rego do rabo continua à vista, o que é desagradável. Uma delas é italiana. São feias, todas. Mas isso é irrelevante: as coisas não se passaram assim.

Nada, nunca, se passou assim. É por isso que precisamos de aspas nas coisas. Às vezes, pelo menos.

II
Um dia continuarei este post. Quando deixar de pensar nos cus à vista e nas aspas, que são quase tão más como os ditos. Não gosto de coisas com aspas, sejam elas coisas, ou cus; e não gosto de regos de cus longíquos, como dicionários abertos numa mesa à qual não podemos chegar. São feios.

A italiana faz jogos com a palavra "coniglio". Rola-a na boca, devagar, sensualmente, para que o gajo ao lado dela e a gaja que há bocadinho tomei por um gajo reajam. Mas as coisas não se passaram assim. Se se tivessem passado não teriam sido assim. As mulheres bonitas que estavam na mesa ao lado da minha teriam ficado, e as feias que estão com o rego do cu à vista ter-se-iam ido embora.

As coisas nunca se passam como queremos, quando queremos. São misteriosas. Por isso precisamos, tantas vezes, de pôr aspas nas "coisas". Ou de as deixar correr, como cascos de cavalo numa rua empedrada, num coração empedrado, num olhar. Ou comovido, subitamente comovido, porque se lembrou de ti e te viu, no lugar daquela fealdade toda.

III
Isto, claro, porque as coisas não se passaram assim. Não sei como seriam, as coisas, se se passassem como nós queremos que elas se passem. Não faço ideia.

Domenico Belli, "Il nuovo stile"

A Renascença tem destas coisas: faz-me pensar que podia ser hoje.

Gravata, ou: Nada como a Primavera

A gravata estava passada a ferro, e os sapatos engraxados. O que me fez pensar que em Portugal os quadros superiores têm realmente uma vida diferente da do resto da Europa: o engraxador só chega ao seu posto de trabalho às dez e meia da manhã.

Compras

Por razões várias eu não queria comprar aquilo que ela tinha para me vender. E desisti de ver o resto da loja. O que os vendedores tomam, regra geral, por ofensivo. Mas não há nada de mais cansativo do que impingirem-nos mercadoria pior do que a que nós sabemos está reservada para os melhores clientes. E não me refiro só à carne: nos legumes é a mesma coisa.

Retratos possíveis

Encontrei-o na Baixa há uns dias. Não nos víamos há mais de 20 anos. Na altura era um pobretanas, vivia de pequenos empregos, todos eles breves - acaba sempre despedido, vítima de uma injustiça, uma desonestidade, uma maldade.

Agora está visivelmente rico - e de bom gosto, ainda por cima: tudo do bom, do melhor e do discreto. Fomos almoçar, e explicou-me a razão da metamorfose. "Sabes, eu pensava que era honesto, naqueles tempos. Mas não era: não tinha imaginação, apenas. O que dá formas profundas, mas provisórias, de honestidade". Fez um esgar e acrescentou "felizmente".

Videossincrasias

Porque será que o slow motion é melhor do que o fast forward? E qual o papel do fast rewind, nisto tudo?

Adenda - com um obrigado ao Plúvio, pela correcção.

4.5.09

Bisturis

Às vezes imagino o silêncio como um grande corpo estendido numa morgue universal, a ser dissecado por palavras em forma de bisturi. Ou será o contrário: o grande corpo da palavra a ser dissecado pelo bisturi do silêncio?

Na verdade podem coabitar, as duas imagem: umas vezes uma, outras a outra. A única coisa que se mantém é a necessidade de um bisturi.

Vasco Granja

Dos muitos posts dedicados à morte de Vasco Granja, este é o melhor.

Dúvida

Nunca percebeu bem se vivia num sonho que por vezes se incendiava, se num incêndio que por vezes sonhava.

As paredes em chamas

Às vezes encafuava-se num incêndio... Eu explico: era uma casa minúscula, com uma vista bonita sobre a cidade, cujas paredes tinham a particularidade de, a intervalos irregulares mas frequentes, se incendiarem. Mal via um desses fogos chegar ele enfiava-se no quarto - que não se distinguia, tão pequena era a casa, das outras divisões (a sala, a cozinha, a casa de banho) - e deixava-se purificar, num ritual que durava havia algumas dezenas de milhar de anos.

Os incêndios eram breves mas violentos e, ao contrário do que ele pensava, ou dizia, ou desejava, deixavam cicatrizes terríveis. Todos os que o rodeavam as viam, menos ele. Um dia decidiu que o incêndio devia durar para sempre, e destruiu a casa.

Súplica

Que fosse o amor a fazer-nos, percebes, e não nós a fazê-lo a ele.

Xaman

Um dia conheci um xaman que era especialista em curar visões: criava uma espécie de cegueira da alma, e elas apagavam-se como queimadas num dia de chuva.

De vez em quando apercebia breves lampejos da imagem dela, rápidos como o bater das asas de um colibri em plena tempestade

Estava no meio de um campo, nu como o silêncio. Pouco a pouco esse silêncio foi-se povoando de palavras - era um silêncio comum, partilhado, mas ele não sabia por quem. As palavras entrechocavam-se, embatiam umas nas outras como partículas num LHC; mas apenas libertavam quatidades ínfimas de energia. Essa energia fazia-o mover-se no campo sem árvores, povoado por espantalhos inertes. Só quando o vago rumor das palavras começou a tornar-se audível a vida chegou e uma alegre harmonia inundou a paisagem.

De vez em quando apercebia breves lampejos da imagem dela, rápidos como o bater das asas de um colibri em plena tempestade. "Há dois tipos de silêncio", pensou. "Aquele que é provocado pela ausência de sons, e o que, pelo contrário, resulta da mistura de todos os sons de todas as vidas. Prefiro este último". Era um conceito que lhe tinha ficado do aturado estudo das cores, a que dedicara grande parte da sua vida.

Feliz por esta descoberta recente deixou-se levar pelas diferentes visões: o colibri num dia de tempestade; um túnel circular em que as palavras giravam a velocidades vertiginosas; um exército de espantalhos vivos e sorridentes; uma esfera armilar de ruídos, que o envolve e isola dos outros ruídos todos; o olhar de um ciclone adormecido, atónito primeiro, e depois interrogativo, dubitativo, quase terno - para terminar numa aceitação total, passiva, incondicional da nudez de um silêncio que o perseguia há anos.

"Era um ciclone feminino. Há ciclones masculinos e ciclones femininos. Não sabia". Mais uma descoberta. Cansado, retirou-se; foi rezar os alfabetos que conhecia, como se fossem terços. Mas todas as letras, todos os caracteres de todas as línguas o conduziam ao mesmo sítio, ao lugar de onde partira: uma vida, um campo de silêncio. Tu. Assim se chamava esse lugar, fonte de todas as palavras, de todas as vidas, de todos os silêncios.

"Não vale sequer a pena mencionar os encontros fugazes em escadas de metro de sentidos opostos", ocorreu-lhe subitamente. "Algures há uma força capaz de fazer as duas escadas tomarem uma direcção comum, diferente das que tinham antes. Mas não sei como se chama, essa força. Provavelmente nem nome tem".

Não tinha nome, claro: o que não existe não se chama, não precisa de nome. Nascemos com as palavras, e elas morrem connosco. O que permanece é o silêncio. Tu. Um silêncio feminino.

A ler

Como de costume (e com um certo atraso, também ele habitual) deixo aqui o link para a entrevista de Medina Carreira no Correio da Manhã, a ler absolutamente. Diz sempre a mesma coisa? Diz. Infelizmente, está podre de razão, e seria necessário repeti-las ainda mais.

3.5.09

Definição, opção

A verdade não é, de forma alguma, sinónimo de liberdade; é mesmo uma prisão. Mas é uma prisão melhor do que a mentira.

Definições

Ter medo de tudo não faz de alguém uma pessoa sensata: faz um medroso; da mesma forma que não ter medo de nada não faz um corajoso, mas sim um inconsciente.

Hipérion - uma breve citação, ou duas

"Vi uma vez uma criança estender a mão para agarrar o luar, mas a luz continuou tranquilamente o seu caminho. Assim nos encontramos nós e lutamos para parar o destino na sua passagem."

Hipérion - uma breve citação

"Sempre que o homem quis fazer do Estado o seu céu transformou-o num inferno.

O Estado nada mais é do que a casca crua que envolve a essência da vida. Ele é o muro que cerca o jardim das flores e dos frutos do homem.

Mas de que serve o muro que cerca o jardim se o solo está seco?
"

2.5.09

L'infirmier mélomane

Il était un vrai champ de bataille, dévasté par des années de démons enragés en bagarre entre eux et avec tout ce qui les entourait. Les médecins ne lui prescrivaient que des conneries: des antibiotiques, des anti-inflammatoires, des analgésiques.

Il gémissait sourdement dans un coin quand un infirmier mélomane l'a vu, et l'a soigné: les Vêpres de Rachmaninov trois fois par jour pendant un mois; ensuite, une fois par jour jusqu'à complète disparition des symptômes. Et le silence, total, nu comme un alphabet. Pas un bruit, pas un mot, ni entendus, ni dits. Même pas pensés. Surtout pas pensés.



Prioridades

"A fragata portuguesa Corte Real, que comanda as operações de segurança da NATO ao largo da Somália, voltou a detectar actividade criminosa e acabou por interceptar 19 piratas fortemente armados. Logo a seguir, porém, teve de libertá-los, porque o nosso Código Penal não contempla o crime de pirataria.

É um caso exemplar: Portugal comanda a missão naquela região assolada por piratas, mas a representação portuguesa é inconsequente por lacuna legislativa. O poder político não sabia? O Governo, a Assembleia da República, a maioria socialista, os partidos com assento parlamentar — ninguém sabia nem podia tomar a iniciativa legislativa atempadamente?

Sabiam e podiam, claro. Só que estavam ocupados a legislar sobre o financiamento dos partidos sem documentação de suporte..."

Copiado integralmente daqui
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Uma barragem contra as palavras

As palavras impunham-se-lhe, por vezes, por razões que desconhecia totalmente, ou com uma antecedência de que não suspeitava e da qual só mais tarde se apercebia. Chegavam-lhe de todos os lados, como chuva num dia de temporal desfeito, ou pássaros cegos; e em todas as línguas. Exhilarating, por exemplo. Ou Indélébile. Ou Emoção.

Empatia

Gosto muito da palavra "empatia", uso-a muitas vezes. Mas hoje ocorreu-me que gosto muito mais de a ler do que de a escrever.

Nevoeiro, ressurreição

O fim do nevoeiro é uma ressurreição.

Mahler, final da Segunda Sinfonia, Simon Rattle e Anne-Sofie von Otter.

Sonho

Serviço Público - Vinhos

Quinta de Além Tanha, Vinhas Velhas, 2004.

"Um bom vinho é aquele que me faz dar um salto na cadeira", dizia um crítico de vinhos que já aqui citei várias vezes. Este fez-me dar saltos na cadeira a cada gole. Redondo, macio, encorpado, taninado mas sem ser agressivo, complexo, com um ataque claro, limpo, marcado e um fim de boca que se eterniza, e faz pedir mais mal acaba.

Não sei infelizmente (ou felizmente) o preço; é um grande, grande Douro.

Combinações

Será que Vital Moreira, cuja "discordância" com Sócrates a propósito de Durão Barroso cheira a esturro à légua combinou com o PCP um "empurrão e duas garrafas de água"?

Claro que não. Mas o PCP, que só faz e diz asneiras (e faria muitas mais se estivesse no poder) prestou um óptimo serviço a Vital Moreira, o que é chato. Quanto às consequências para si próprio não devem ser graves: os militantes aprovam, naturalmente; e no grupo dos não militantes não deve haver ninguém com mais de 12 anos que ainda tenha ilusões sobre o comunismo.

Tragédias

Saber gastar dinheiro e não o saber ganhar é uma tragédia; o contrário é outra, ainda maior.

1.5.09

15 - 10, um objectivo ambicioso

15% em 10 Anos - o mínimo que se pode dizer é que o objectivo é ambicioso.

O cheiro da AR

No seu lovável afã de confirmar tudo o que se pensa sobre eles, os partidos políticos nacionais aprovaram ontem uma lei sobre o seu (deles) financiamento.

Acho bem: ficaria extremamente desiludido com os nossos políticos se de repente me demonstrassem que a sensação de desconforto que sinto cada vez que passo à frente da Assembleia vem dos esgotos, ou coisa que o valha.

(A este respeito, posts excelentes aqui e aqui).