30.3.09

"Os beatos do látex"

Esta história dos preservativos e do Papa trouxe-me à memória uma história que vivi no Burundi. A situação em Bujumbura quando lá cheguei era pura e simplesmente indescritível. O Representative tinha sido enviado para lá, acredite quem quiser, para fechar a representação - tinha sido a primeira do UNHCR a abrir fora da Europa, e fechá-la por se ter tornado inútil era um acto simbólico (de entre as curiosidades da UN, é preciso saber-se que naquele ano, 1994, ainda havia uma representação do HCR em Lisboa).

Nada nem ninguém estava preparado para a avalanche de refugiados que chegou ao Burundi - 320,000 em pouco mais de meia-dúzia de semanas. Não havia nada para os receber, nada: nem campos, nem transportes, nem comida, nem assistência média, nem watsan (water and sanitation), nem telecomunicações, nem staff. Nada.

Quando eu lá cheguei não tinha sequer um sítio para me sentar, e havia dois telefones ou três para toda a delegação, que crescia, como se pode imaginar, a olhos vistos. Ainda por cima, pela primeira vez na história da assistência a coordenação da ajuda tinha sido atribuída ao HCR - era a mais antiga agência em Bujumbura - e tínhamos que coordenar igual crescimento e confusão em todos os nossos parceiros.

Tudo isto tentando minimizar os efeitos perversos da ajuda (pelos menos aqueles sobre os quais podíamos agir): a inflação que dispara, os recursos qualificados a trocar lugares de direcção em grandes empresas por salários três vezes mais elevados como ajudantes nas organizações, a redirecção da comida para as agências, a prostituição, o roubo, etc. Passei os primeiros dias nas ruas de Bujumbura a mandar parar todos os camiões que encontrava, porque não tínhamos, simplesmente, capacidade de transporte nem meios de comunicação para contactar os transportadores.

Um dia aparece-me uma senhora americana, que não sei bem como conseguira furar a apertada barreira que tínhamos estabelecido no Burundi (aquilo era um eldorado para as agências, e todas queriam ir para lá) cuja agência era especializada na luta contra o Sida: queria que eu usasse os camiões para transportar camisas-de-vénus para os campos.

Nessa altura, ainda morriam diariamente 4 a 5 pessoas nos sete campos de refugiados que tínhamos (nos dias normais. Quando havia ajustes de contas, vinganças e coisas que o valha esse número aumentava). Não havia comida que chegasse - a maioria das vezes por falta de transporte; não havia tarpaulins (as lonas com que se fazem aquelas tendas muito bonitas, azuis, que se vêem por vezes na televisão), não havia jerricans para a água, não havia cobertores que chegassem, não havia remédios - a mortalidade infantil devida à diarreia, uma coisa facilmente tratável, era atroz; não tínhamos pessoal que chegasse. E ela queria que eu transportasse camisas-de-vénus para os campos.

Arranjei-lhe um lugar no nosso avião para Nairobi e fui ao aeroporto despedir-me dela - queria ter a certeza de que não voltava para trás. Ainda hoje estou para saber onde param as caixas de camisas. A última vez que as vi foi no aeroporto, no dia em que ela chegou.

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