4.3.09

Imprescíndivel

Um jogo perverso

04/03/09 00:01 | Fernando Gabriel

Este artigo é imprescindível. Finalmente, começa a ler-se na imprensa mainstream aquilo que se murmurava - é o termo, os exércitos da correcção moram lá, também - nos corredores de algumas agências da ONU.

"Pressionado a retractar-se, em Fevereiro de 2005 Clay pediu finalmente desculpas -pela moderação da linguagem, por ter subestimado a dimensão do saque e por ter permanecido em silêncio durante tanto tempo.

As declarações do diplomata causaram incómodo não pelo grotesco, mas porque Clay ignorou as regras do jogo pós-colonialista. Neste jogo, os governos ocidentais prejudicam o crescimento dos países africanos através de políticas proteccionistas que diminuem a competitividade das exportações agrícolas. Em troca, pregam a superior virtude moral da ajuda financeira a África. Do lado africano, qualquer crítica à governação é denunciada como uma tentativa de "ingerência" e invocam-se imediatamente os pecados políticos do colonialismo. Todos devem abster-se de observar que este gigantesco exercício de cinismo é responsável pela pobreza, doença e corrupção da África subsaariana.

Às raras vozes que se atrevem a denunciar a perversidade sobrepõe-se a arrogância moral de redentores auto-designados como Bono ou Bob Geldof, armados de uma demagogia neo-puritana calibrada para as preferências culturais de um ocidente complacente, que adoptou o cosmopolitismo superficial da ajuda e do "comércio justo" como sucedâneos das teses sociológicas da dependência e da exploração.

Mas o jogo pós-colonialista não estava preparado para alguém como Dambisa Moyo. Natural da Zâmbia, completou um mestrado em Harvard e doutorou-se em Economia em Oxford. Trabalhou no Banco Mundial e na Goldman Sachs e acaba de publicar Dead Aid (Allen Lane, 2009) um argumento arrasador sobre os efeitos da ajuda sistemática, bilateral e multilateral, na corrupção e no empobrecimento africano.

África é abundante em exemplos espectaculares de corrupção. O mundo pasma-se com o descaramento de Mugabe, que pediu 2 mil milhões de dólares de ajuda para o Zimbabwe no mesmo dia em que gastou 175000 dólares a comemorar o seu aniversário, mas já poucos se lembram que a coroação de Bokassa como imperador custou 22 milhões de dólares em 1977, ou que os saques de Mobutu no Zaire e de Abacha na Nigéria terão superado os 5 mil milhões de dólares -cada. A evidência empírica disponível sugere que a ajuda internacional é o principal factor explicativo da corrupção africana e esta, através de diversos canais, tem um impacto negativo na taxa de crescimento, empobrecendo os países receptores e reforçando o ciclo vicioso da ajuda. Nos últimos trinta anos, os países africanos mais dependentes da ajuda externa conseguiram a proeza de diminuir a sua capacidade produtiva, registando uma taxa de crescimento média de -0,2%; entre 1970 e 1998, quando os valores da ajuda internacional cresceram até ao seu valor máximo, a pobreza africana disparou de 11% para 66% da população.

E no entanto a chuva de dinheiro ocidental continua a cair, impenitente. Tal como o puritanismo proibicionista foi instrumental no estímulo ao negócio de contrabando do álcool nos EUA dos anos 20, também o puritanismo dos redentores de África é instrumental na sustentação do negócio da ajuda externa. Pelos cálculos de Moyo, entre o Banco Mundial, FMI, ONU, ONG e agências governamentais, mais de meio milhão de ocidentais trabalham na indústria da ajuda internacional - um dos principais motivos da persistência no erro. Apesar disso e das inúmeras declarações sobre a necessidade de uma revisão profunda das instituições financeiras internacionais, ninguém se atreverá a recomendar a extinção do Banco Mundial na próxima reunião dos G20. Do mesmo modo, a ronda de Doha continuará a arrastar-se, como se o proteccionismo não fosse um dos maiores impedimentos ao crescimento.

Enquanto europeus e americanos agem como se a realidade fosse imutável, o resto do mundo continua a transformar-se e até África se está a cansar de aturar os seus benfeitores crónicos. Moyo defende que os países africanos não devem esperar mais pelo ocidente e precisam de incentivar as trocas comerciais com os que estão disponíveis: Índia, Brasil, Turquia e, sobretudo, China. Angola, por exemplo, já é o principal fornecedor de petróleo ao mercado chinês e na última década o comércio entre África e a Europa caiu de 40% para 26%. Enquanto os ocidentais oferecem prelecções sobre ‘sweatshops', os chineses investem e oferecem uma possibilidade de desenvolvimento. Ou os ocidentais corrigem os erros estratégicos, ou acabam a explicar a sua superioridade moral a países imaginários - o que até nem será muito diferente da atitude actual."

(in Diário Económico, ed. nº 4581)

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