1.3.09

Escrever

Escrever não é muito difícil; basta alinhar palavras umas atrás das outras, sujeito predicado complemento directo e esquecer que por detrás dessas palavras há sentimentos ou esperança ou emoção e coisas assim porque são essas coisas que estragam o que se escreve. E esquecer que há quem nos leia, quem imagine que percebe aquilo de que nós queremos fugir quando escrevemos, quem pense que sente a mesma coisa que nós que não sentimos nada, só alinhamos palavras e pontuação e advérbios e pensamos que não há nada a pensar, nada a sentir nada a dizer porque as palavras falam por si próprias e tudo o que há a fazer é escolhê-las criteriosamente já que não podemos escolher o que lhes fica por trás. É preciso escrever como se não se sentisse, como se não houvesse amor tristeza alegria esperança luta amizade morte, como se o teu sorriso não existisse nem o teu corpo nem as tuas mãos os teus olhos; é preciso escrever como se não houvesse nada excepto as palavras. É preciso escrever como se não houvesse tempo, como se amanhã não passasse de uma ilusão e ontem outra, como se amanhã ou depois não pudessem ser diferentes por causa do que se escreveu hoje; é preciso escrever e esquecer o que se escreveu porque as palavras não têm memória, a memória não tem memória, não sabe o que é. Basta escrever para que o mundo deixe de ser. Bastam as palavras.

7 comentários:

  1. :-)
    Mas não bastam.
    Como se constata deste belíssimo texto, Luis...

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  2. é um logro: as palavras nunca bastam, pese embora nutram e sobretudo apaziguem, mesmo ou sobretudo quando longe do teu corpo, dos teus olhos, das tuas poderosas mãos.

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  3. :-)
    (sorrindo e saindo de fininho...)

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  4. Claro que escrever não é muito difícil. O que é difícil é inscrever o que se escreve. Saber que o tempo não pára e é preciso memorizar. Não bastam as palavras. È preciso gestos feitos de palavras-acções.

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  5. Mas não há nada mesmo, excepto as palavras. Por isso é tão fácil escrever, e tão difícil viver. ;-)

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  6. Tudo isso que escreve, Luís, – e muitíssimo bem – é absolutamente verdade. Só não subscrevo a ideia de que escrever é fácil. Escrever é extremamente difícil – para mim – na medida em que prossegue um fim próprio que é alcançar a forma perfeita. Tão difícil, portanto, como resolver um problema matemático insolúvel ou descobrir a origem do mundo. Destes dois últimos, acho que já desisti. Mas do primeiro, ainda não, porque, no conjunto de «jogos» (e apostas) que me preenchem a vida, escrever é dos mais entusiasmantes e absorventes. Em muitos outros aspectos, a vida é fácil, vai-se resolvendo a si própria...

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  7. Luísa, a origem do mundo não é assim tão difícil de descobrir. Até os polícias de Braga deram com ela... ;-)

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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.