Agora oiço, de vez em quando. Hoje, por exemplo: a Philarmonie Baroque Orchestra, dirigida por Nicholas McGegan, Harmonia Mundi HM 1907010. Uma interpretação muito sóbria, que não tem nada daquela violenta noite num Gibsea 35 a caminho de Sète, ou Cap d'Agde.
31.3.09
Watermusick
Agora oiço, de vez em quando. Hoje, por exemplo: a Philarmonie Baroque Orchestra, dirigida por Nicholas McGegan, Harmonia Mundi HM 1907010. Uma interpretação muito sóbria, que não tem nada daquela violenta noite num Gibsea 35 a caminho de Sète, ou Cap d'Agde.
A quelque chose Mahler est bon
Ressuscitar, sim tu o farás!
Após breve descanso, do pó ressuscitarás!
Vida imortal a ti trará
Aquele que te chamar.
Para reflorescer, serás semeado!
O senhor da colheita caminha
E a nós, agora mortos,
Aos feixes nos recolhe!
Acredite, meu coração, acredite:
Nada perderás!
A ti pertence o que desejas!
É teu, tudo que amas,
Tudo que conquistas!
Acredite,
Não nascestes em vão!
Tampouco em vão a vida e a dor vivestes.
Morre o que nasce!
E Renasce o que morre.
Cesse o tremor!
Prepara-te para a vida!
Oh dor, que a tudo penetra!
De ti consegui escapar!
Oh morte, que a tudo domina!
Agora tu estás subjugada!
Com as asas que conquistei,
No esforço febril de amar,
Desaparecerei na luz,
Jamais vista por algum olhar!
Com as asas que conquistei,
Desaparecerei.
Morrer para viver!
Ressuscitar, sim! Meu coração,
Em um instante ressuscitarás!
O que na luta superas
a Deus conduzirá.
(5º Movimento. Gottlieb Klopstock)
Diálogos improváveis
- Estás a bater à porta errada: sou mais previsível do que um eclipse da Lua.
30.3.09
Lamentos, estações
Publicidade interessadíssima
Algumas das peças são visíveis aqui, outras aqui. Informações mais pormenorizadas via mail (lserpa@gmail.com).
Enigma
Fragmentos
Desafinado
PS - Talvez as palavras consigam.
Sophia
E o mar o devorou com o instinto de destino que há no mar."
Desunânime
PS - com uma excepção: acho realmente que as excomunhões na história da miúda de nove anos que abortou recentemente no Brasil são uma imbecilidade, e partilho o repúdio unânime, ou pelo menos largamente consensual.
O balanço dos pedais
Lisboa não é uma cidade confortável para as bicicletas, mas está longe de ser impossível. No fundo, uma escolha criteriosa de trajectos por parte do ciclista e pequenas modificações por parte da Câmara seriam mais do que suficientes (se excluirmos, claro, está, o estado calamitoso das ruas, que é uma obra maior) para tornar Lisboa uma cidade "ciclável", passe o neologismo.
"Os beatos do látex"
Nada nem ninguém estava preparado para a avalanche de refugiados que chegou ao Burundi - 320,000 em pouco mais de meia-dúzia de semanas. Não havia nada para os receber, nada: nem campos, nem transportes, nem comida, nem assistência média, nem watsan (water and sanitation), nem telecomunicações, nem staff. Nada.
Quando eu lá cheguei não tinha sequer um sítio para me sentar, e havia dois telefones ou três para toda a delegação, que crescia, como se pode imaginar, a olhos vistos. Ainda por cima, pela primeira vez na história da assistência a coordenação da ajuda tinha sido atribuída ao HCR - era a mais antiga agência em Bujumbura - e tínhamos que coordenar igual crescimento e confusão em todos os nossos parceiros.
Tudo isto tentando minimizar os efeitos perversos da ajuda (pelos menos aqueles sobre os quais podíamos agir): a inflação que dispara, os recursos qualificados a trocar lugares de direcção em grandes empresas por salários três vezes mais elevados como ajudantes nas organizações, a redirecção da comida para as agências, a prostituição, o roubo, etc. Passei os primeiros dias nas ruas de Bujumbura a mandar parar todos os camiões que encontrava, porque não tínhamos, simplesmente, capacidade de transporte nem meios de comunicação para contactar os transportadores.
Um dia aparece-me uma senhora americana, que não sei bem como conseguira furar a apertada barreira que tínhamos estabelecido no Burundi (aquilo era um eldorado para as agências, e todas queriam ir para lá) cuja agência era especializada na luta contra o Sida: queria que eu usasse os camiões para transportar camisas-de-vénus para os campos.
Nessa altura, ainda morriam diariamente 4 a 5 pessoas nos sete campos de refugiados que tínhamos (nos dias normais. Quando havia ajustes de contas, vinganças e coisas que o valha esse número aumentava). Não havia comida que chegasse - a maioria das vezes por falta de transporte; não havia tarpaulins (as lonas com que se fazem aquelas tendas muito bonitas, azuis, que se vêem por vezes na televisão), não havia jerricans para a água, não havia cobertores que chegassem, não havia remédios - a mortalidade infantil devida à diarreia, uma coisa facilmente tratável, era atroz; não tínhamos pessoal que chegasse. E ela queria que eu transportasse camisas-de-vénus para os campos.
Arranjei-lhe um lugar no nosso avião para Nairobi e fui ao aeroporto despedir-me dela - queria ter a certeza de que não voltava para trás. Ainda hoje estou para saber onde param as caixas de camisas. A última vez que as vi foi no aeroporto, no dia em que ela chegou.
Estação de serviço
A duração das paixões variava entre uma semana e um mês, raramente mais. A cada ruptura ele aparecia-nos demolido, de rastos, a sofrer crucificações. Depois recompunha-se e recomeçava.
Nessa noite apanhei-o sozinho, entre dois casos. "Ainda é demasiado cedo para te falar nela, ainda não é suficientemente cedo", explicava-me. Gostava de paradoxos e de jogos de palavras, pelo que não liguei muito. "A única coisa que não percebo", disse-lhe, "é porque sofres tu tanto com cada caso que termina. Tu já deves saber que eles vão terminar assim, não?"
"Sabes, sou uma estação de serviço para egos femininos. Elas vêm ter comigo, eu apaixono-me perdidamente, amo-as o melhor que posso e sei; faço-as sentirem-se mulheres, femininas, amadas, desejadas, cajolées, dorlotées, mimadas, lindas. Quando têm o ego recauchotado vão-se embora, e engatam outro tipo qualquer, mais rico e mais bonito do que eu, mais apresentável. Se eu não me apaixonar, nada disto funciona". Encolheu os ombros e acrescentou "não sei mentir, que queres?"
29.3.09
Vulnerável
Gran Torino
Dor, dignidade
Para a C. R..
Palavras, vazios
28.3.09
Bartoli
La Danza (tarantella napoletana), Rossini:
Vi sono sposa e amante, (Salieri).
27.3.09
Farto de não poder caminhar pelo passeio? Também eu.
"Quero andar a pé! Posso?
Os peões nas nossas cidades têm visto o seu diminuto espaço constantemente usurpado por veículos estacionados ilegalmente. Passeios totalmente ocupados, passadeiras bloqueadas e logradouros totalmente rodeados de carros estacionados impedem a passagem dos peões. Até carros a circular nos passeios são situações relativamente banais.
Perante o laxismo dos cidadãos e a ineficácia conivente das autoridades, tentaremos alertar para cidades que envergonham. Colabore!".
(Via Miss Pearls, O Carmo e a Trindade e Cidadania Lx).
Voar
Não é nada disso. É a cor, a cor do chão, que nos dá vontade de não o tocar, e os meios para poder fazê-lo. É a calma que irradia desse céu no chão; a ideia - apaziguadora - de que se nos perdêssemos naquele sítio não seria nunca nele que estaríamos perdidos, mas em nós.
13º mundo
"Sócrates e Fernanda Câncio vaiados no CCB"
Coincidências
Felizmente não fui eu que escrevi isto: teria estragado um texto, uma hipótese magnífica.
Amizades, amor
Fado
Uma pessoa vai ouvir fado e pergunta-se: porque serão as portuguesas tão contidas no amor?
II
Uma pessoa vai ouvir fado e percebe porque são as portuguesas tão contidas no amor.
O metro do sítio
Variações Goldberg - III
Variações Goldberg - II
(CBS Masterworks, CD 37779)
Variações Goldberg
Leilão, troca
Palavras, vento
Remédio d'alma
Para onde nos levam
25.3.09
D'un pont l'autre
Quelques uns d'entre nous rêvent de magnolias, d´autres au loin voient des lions, des pleines lunes, des îles d'Orients cachés, cachées.
Pas moi. Je ne vois que de l'acier suspendu, des ponts qui se succèdent et se superposent comme des avenirs sans issue, des ponts sur le néant, le plus petit plus grand que le plus grand.
Il y en a, force est de reconnaître, des néants aussi beaux que des ponts, aussi clairs, définis, déterminés, utiles, presque. Mais pas souvent. Les reconnaître dans l'amalgame de ponts, de vies, de personages qui nous entourent est un art.
A part faire rêver, les ponts servent aussi à lier les mots de marges différentes: les mots marginaux, pourrait-on presque dire. Les deux marges d'une rivière ne sont plus unies que par l'eau: elles le sont aussi par le regard, les mots, par un personnage solitaire qui s'interroge sur l'Orient et les divagations léonines de l'être aimé, par le pont.
Y a-t-il des amours léonines? - Et qui ne le sont pas?
Francisco Lobato
A classe na qual o Francisco navega é a Classe Mini. Chama-se assim porque a dimensão das embarcações está limitada a 6,5m. Contudo, só no comprimento faz jus ao nome. É uma classe de barcos de elevado desempenho, overpowered, difíceis, exigentes, verdadeiros laboratórios da vela de alta competição (os arquitectos usam-na para testar inovações que depois, se funcionarem, serão aplicadas em barcos maiores).
Cada classe tem uma regata que é a sua razão de ser, a mais importante. Na Classe Mini essa regata chama-se Transat 6,5 - é uma travessia do Atlântico, de La Rochelle a Salvador da Bahia, em solitário.
Como é natural, o Francisco Lobato quer participar na Transat 6,5 - é para isso que ele tem treinado, navegado, investido muito do seu tempo e do seu dinheiro, feito sacrifícios que a maior parte das pessoas não pode sequer imaginar.
Falta-lhe, contudo e como sempre, o dinheiro para isso.
Para uma empresa, apoiar o Francisco Lobato nesta regata não é um acto de caridade, não é uma ajuda: é comprar um vector de comunicação dos mais eficazes que existe. Para terem uma ideia, na última edição da regata (na qual o Francisco conquistou, se bem me lembro, um mais do que honroso 9º lugar) a página da regata teve 7,7 milhões de pageviews, 100 menções nas televisões internacionais, 2,000 artigos na imprensa escrita (todos os pormenores aqui).
A vela (e a fortiori a vela em solitário numa casca de noz de 6,5m com mais potência do que muitos barcos com o dobro do comprimento) é um desporto que exige qualidades humanas e conhecimentos técnicos fora do vulgar. Ou seja, é uma plataforma de comunicação excepcional, a partir da qual se podem desenvolver vectores de comunicação poderosos e eficazes - não é por acaso que empresas como a Volvo, a Oracle, a BMW, patrocinam eventos de vela ou embarcações de regata. Patrocinar o Francisco de um ponto de vista empresarial não é um acto de caridade: é uma acto de gestão, de boa gestão.
Para aqueles de entre os que me lêem que querem apoiar o Francisco a título pessoal, e para quem tem lugares de gestão em empresas, deixo aqui o link para o Jogo das Milhas, a forma que o Francisco Lobato encontrou para tentar angariar fundos para a Transat 6,5: cliquem aqui, vão ver, e comprem algumas milhas se o fizerem a título pessoal; contactem o Francisco se o fizerem de uma perspectiva empresarial.
E para os que têm blogs: divulguem, por favor.
Declaração de (des)interesse: não estou a fazer este apelo por razões profissionais, nem fui mandatado pelo Francisco Lobato para o fazer. Faço-o porque me é doloroso, e incompreensível, que Portugal não esteja representado na vela oceânica, que uma pessoa como o Francisco Lobato não encontre patrocínios num país do qual a vela devia ser o desporto nacional, cujos gestores ignoram o potencial da vela como plataforma de comunicação porque ignoram a vela, esse desporto nobre, tout court.
Perpetual defeat
Out of the sighs a little comes,
But not of grief, for I have knocked down that
Before the agony; the spirit grows,
Forgets, and cries;
A little comes, is tasted and found good;
All could not disappoint;
There must, be praised, some certainty.
If not of loving well, then not,
And that is true after perpetual defeat.
...
Dylan Thomas, in Collected Poems 1934 - 1953, ed. Phoenix, 1988
24.3.09
Fotografia
Do Tejo
Ali vive, trabalha, passa gente? Sim. Mas não é necessária: o cenário pertence às pedras e ao tempo, vistas da água. Aquelas pedras têm vida que chegue para dispensar outras vidas; não são bem pedras, aliás: é a vida feita casas, pedras e beleza."
(Nota: Este texto é uma adaptação de um comentário que deixei num post do Nocturno.)
23.3.09
Misturas
Sentidos diferentes, claro.
Bartok
(A resposta é "sim, vista do tempo só a água existe").
Palavras
Em vez disso são pesadas, difíceis de manusear, intransmissíveis, negras. E andam sempre coladas a nós, as putas. Das palavras.
Hallelujah
22.3.09
Descobertas
Hoje descobri a Fábrica do Braço de Prata: livros, discos, música, pessoas simpáticas e Alexanders ao nível dos melhores a preços que nem os piores. Parece que aquilo abriu há dois anos: não penso que tenha perdido dois anos - mas não ando lá muito longe.
Isto depois de ter ido ouvir Rhys Chatham ao Museu do Chiado: um concerto, e uma descoberta, sublimes. Haveria talvez cem pessoas na sala, o que me pareceu pouco para alguém que vinha referenciado na Actual com aquele destaque. E apesar de a minha compleição física (interna - externamente não se vê) não ser a ideal para estar sentado no chão por longos períodos - isto é, mais do que 5 minutos - o tempo passou sem que tivesse dado por ele. Não deixa de ser supreendente, inesperada, a forma como o minimalismo funciona na música.
21.3.09
Dias e dias - II
Mas, para agradecer à dita bonita jovem, aqui deixo um ou dois curtos poemas, da série Poemas Zen:
Conduz o teu cavalo sobre o fio de uma espada,
oculta-te como puderes no meio das labaredas.
As palavras não fazem o homem compreender,
é preciso fazer-se homem para entender as palavras.
E um fragmento que assinalei, também, quando comprei o livro:
...
Não sei como não posso fechar em duas conchas
essa pérola, essa dureza
preciosa e feroz
envolta
pelo frio, quando já não sei pensar.
...
E agora, sim, vou ler Herberto Helder. Obrigado, R.
Dias e dias
Aparentemente, hoje é dia da poesia (não sei se mundial, europeu, nacional, municipal ou universal), mas graças a isso temos direito a alguns poemas no Público.
Não resisto a transcrever o que foi escolhido por Changuito, da livraria Poesia Incompleta. Não porque é o poema mais curto, nem porque tive o prazer de conhecer o Mário Guerra há dias. É só porque é o meu preferido, de longe:
Quando quero morrer falo
quando quero morrer falo
com deus digo
merda de vida deste-me tu e
dá-me logo ele outra para comparar
Bénédicte Houart, in "Reconhecimento", Cotovia/Angelus Novus, Lisboa 2005.
20.3.09
Sim
Do outro lado
Não é muito complicado, pois não?
Vasco Pulido Valente, Público
(Do Portugal dos Pequeninos)
19.3.09
Auto-ajuda
S. Paulo
A misoginia de S. Paulo é das poucas coisas que gosto nele. Proporcionou-me o casamento mais hilariante da história de casamentos do meu grupo alargado de amigos.
O poço e a água
18.3.09
O caquelon, o futuro e as estranhas relações entre eles
Que queres? Queimei um caquelon, possivelmente; mas como eu já estava queimado há muito tempo isso mal se nota. Excepto, claro, nos momentos em que o caquelon é necessário, e aí a minha fatal inabilidade vem ao de cima. São quatro da manhã, a hora à qual o outro se lembra das gabardines azuis e eu de caquelons queimados, vidas queimadas, amores perdidos, inabilidades e fondues sem caquelon.
A verdade é esta: sou desajeitado, queimo caquelons como quem queima relações amorosas ou é queimado por elas, bebo vinho rosé às quatro da manhã e leite às seis (se fosse ao contrário seria pior, reconhece) e, apesar de tudo isso, continuo a acreditar que a vida não passa de uma sucessão de amanhãs que quando se transformam em hojes é gloriosa. Viver é fazer os amanhãs que ontem sonhámos. Alquimia pura, minha querida: homúnculos em homens; tu num corpo; caquelons queimados em fondue; vinho rosé numa bebedeira decente (é impossível, eu sei); uma vida em vida.
Verdades complicadas...
"How to stop the drug wars"
(Via Cachimbo de Magritte.)
17.3.09
Pergunta
"Amado admite que UE tenha de repensar as relações com Israel"
16.3.09
Porque é que eu sou cada vez mais céptico
Há tempos reuniu-se uma comissão que decidiu "partir do zero", e que fez um trabalho notável de simplificação, desburocratização, racionalização. O IPTM (céus, quem diria!) - para quem não sabe, Instituto dos Portos e Transportes Marítimos, até hoje um dos grandes freios à modernização e às reformas - não só aceitou como até encorajou as mudanças.
Hoje (por causa do post abaixo) fiquei a saber que está tudo na mesma: as escolas oposeram-se à mudança, e o IPTM, em vez de bater com o punho na mesa e impôr uma reforma mais do que necessária deixou ficar como estava.
E ainda há quem diga que Portugal é um país pobre.
PS - e depois há vezes em que sou cada vez mais optimista, de passagem se diga (são é cada vez menos, mas isso é outra história).
PS2 - a ideia, por exemplo, de que as melhores escolas de vela do mundo são em Inglaterra, um país que nem cartas tem não chega sequer a atravessar a mente desta gente tão pobremente servida de vistas e de mentes.
Causas
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Atenção: aulas para quem quer aprender a navegar à vela, não para quem quer uma carta de marinheiro, ou coisas assim. Poder-se-ia quase mesmo pensar "já tem carta? Então venha aprender a navegar", mas não é imperativo.
Manifesto anti-vírgula
Abaixo a vírgula e viva o ponto e vírgula (e já agora também tenho dúvidas sobre o ponto final: nada é nunca final, nem a morte, como dizem o Nick Cave e o Bob Dylan ali em baixo, nada acaba nunca para sempre. Vejam lá por exemplo o latim, se está morto? Não está nada, nem o grego clássico nem alguns sorrisos que eu conheço nem mesmo a ideia de morte morre, nada morre. Tudo ressuscita sempre, todos ressuscitamos - mesmo a vírgula, e não o merece, porque a vírgula é uma cabra redonda, meio sorriso meio nada. Já o ponto e vírgula é claro, vê-se bem ao longe. A vírgula faz muito pior, sob aqueles ares de perene bonomia do que os pontos final, de exclamação e de interrogação juntos. A vírgula não merece nem uma linha, nem um período nem uma frase nem o olhar espantado e grato, por um décimo de segundo, de uma mulher apaixonada. A vírgula espalha-se pela frase toda e pensa que esta lhe deve obedecer, que é ela que dita o ritmo, ela que manda. Uma vírgula não merece nem uns parênteses, quanto mais um parágrafo! Uma vírgula ocupa espaço no papel que seria muito mais bem utilizado com silêncio, com um espaço em branco, com uma saída pela esquerda baixa. Devia poder apagar-se as vírgulas todas do mundo como se apagam números de telefone de uma memória, ou se rasgam as páginas de receitas do Público, ou se afogam dores em banheiras de adrenalina).
Claro que pior do que qualquer vírgula são as reticências, mas essas não merecem sequer ser mencionadas, pensadas, como se existissem. As reticências são uma ilusão de óptica! Uma ilusão tout court! Uma fraude intelectual doublée de fraude gramatical [obrigado Artur Portela Filho].
[Imaginem uma reticência composta por vírgulas: ,,, É como um barco lento, uma mulher a sorrir permanentemente, um homem apaixonado e impotente, um dia sem vento, uma costa sem falésias, um whisky sem sede, uma pele sem vontade, um livro sem letras. Abaixo a vírgula, abaixo. Morra. Pim. Fim.]
15.3.09
Tibete
Virginia
Mas há por vezes passagens que nos levam a insistir. Como esta:
"It's almost too dark to see," said Andrew, coming up from the beach.
"One can hardly tell which is the sea and which is the land," said Prue.
"Do we leave that light burning?" said Lily as they took their coats off indoors.
"No," said Price, "not if everyone's in."
"Andrew," she called back, "just put out tghe light in the hall."
One by one the lights were all extinguished, except that Mr Carmichael, who liked to lie awake a little reading Virgil, kept his candle burning rather longer than the rest.
..."
(Virginia Woolf, in To the lighthouse)
Armando Silva Carvalho
pelo grito do granito.
Rigor obstinado,
era o que ele dizia.
E sorria. Sorria?
Deita uma palavra ao mar.
Exemplo: rio.
Abandona outra: vento, ao próprio vento.
Mas se o quiseres escutar
é melhor deixares
lá fora o teu lamento.
The Raven
Já agora, a versão original:
Edgar Allan Poe
The Raven
Once upon a midnight dreary, while I pondered weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
`'Tis some visitor,' I muttered, `tapping at my chamber door -
Only this, and nothing more.'
Ah, distinctly I remember it was in the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow
From my books surcease of sorrow - sorrow for the lost Lenore -
For the rare and radiant maiden whom the angels named Lenore -
Nameless here for evermore.
And the silken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me - filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating
`'Tis some visitor entreating entrance at my chamber door -
Some late visitor entreating entrance at my chamber door; -
This it is, and nothing more,'
Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
`Sir,' said I, `or Madam, truly your forgiveness I implore;
But the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
That I scarce was sure I heard you' - here I opened wide the door; -
Darkness there, and nothing more.
Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before
But the silence was unbroken, and the darkness gave no token,
And the only word there spoken was the whispered word, `Lenore!'
This I whispered, and an echo murmured back the word, `Lenore!'
Merely this and nothing more.
Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
`Surely,' said I, `surely that is something at my window lattice;
Let me see then, what thereat is, and this mystery explore -
Let my heart be still a moment and this mystery explore; -
'Tis the wind and nothing more!'
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore.
Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door -
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door -
Perched, and sat, and nothing more.
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
`Though thy crest be shorn and shaven, thou,' I said, `art sure no craven.
Ghastly grim and ancient raven wandering from the nightly shore -
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'
Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning - little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door -
Bird or beast above the sculptured bust above his chamber door,
With such name as `Nevermore.'
But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only,
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered - not a feather then he fluttered -
Till I scarcely more than muttered `Other friends have flown before -
On the morrow he will leave me, as my hopes have flown before.'
Then the bird said, `Nevermore.'
Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
`Doubtless,' said I, `what it utters is its only stock and store,
Caught from some unhappy master whom unmerciful disaster
Followed fast and followed faster till his songs one burden bore -
Till the dirges of his hope that melancholy burden bore
Of "Never-nevermore."'
But the raven still beguiling all my sad soul into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door;
Then, upon the velvet sinking, I betook myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore -
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore
Meant in croaking `Nevermore.'
This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom's core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er,
But whose velvet violet lining with the lamp-light gloating o'er,
She shall press, ah, nevermore!
Then, methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor.
`Wretch,' I cried, `thy God hath lent thee - by these angels he has sent thee
Respite - respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'
`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil! -
Whether tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -
On this home by horror haunted - tell me truly, I implore -
Is there - is there balm in Gilead? - tell me - tell me, I implore!'
Quoth the raven, `Nevermore.'
`Prophet!' said I, `thing of evil! - prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us - by that God we both adore -
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels named Lenore -
Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels named Lenore?'
Quoth the raven, `Nevermore.'
`Be that word our sign of parting, bird or fiend!' I shrieked upstarting -
`Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken! - quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!'
Quoth the raven, `Nevermore.'
And the raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon's that is dreaming,
And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted - nevermore!
Diagonal, rejeição, equidistância
Esquivas, as palavras, mas tão boas, quando se deixam apanhar, tão ricas e densas e promissoras.
Mar
Felicidade
A felicidade é a ausência de quase.
Domingo
14.3.09
Pão com tomates
(Via Blasfémias e Insurgente.)
12.3.09
Ser, não ser
Sindbad
Viva a luta de classes: o bom gosto
Viva a luta de classes: quecas queques
Americanos
Quando oiço esta espécie de bullshit penso invariavelmente nas TED Conferences, que são uma constante supresa, uma maravilha, um deslumbre sem fim.
Vejam isto, e lembrem-se: os americanos são uns incultos, bárbaros, etc.
PS - já agora, mais um exemplo dessa inquestionável falta de cultura.
O país de José Sócrates
(Via Escola de Lavores)
11.3.09
Vidas
10.3.09
Calor
Cá fora tudo seguiria igual: a esteira regular e direita do piloto automático, o céu azul, a brisa de Nordeste, a ocasional baleia ou os frequentes golfinhos, as velas bem afinadas, na aparência tão simples (e na verdade tão complicadas) como o desejo.
Nós não. Um mundo constrói-se assim: carícia a carícia, milímetro a milímetro, vaga a vaga.
9.3.09
Aterrador
E ainda há quem diga que Portugal é um país pobre.
Surpresa, surpresa
E ainda há quem pense que Portugal é um país pobre.
Nota: também publicado aqui.
8.3.09
Eterno feminino
"A feminilidade manifesta-se, já se sabe, de formas muito contraditórias, que vão da gentileza e da graciosidade ao pragmatismo e à malícia; combina um sentimentalismo delicado ou vibrante e um genuíno horror a violências com friezas terríveis e pequenas grandes crueldades; e é capaz de atropelar a mais firme lógica com o absurdo de inexplicáveis preferências ou enternecimentos
...
«eterno feminino» parece, portanto, resumir-se um ideal físico, estético, a que o homem rende homenagem imputando uma bateria não menos ideal de doces traços temperamentais. E é no desencontro entre esses ideais e o real que reside o mistério da tradição de equívocos e desinteligências que constitui a «guerra dos sexos», que o homem, preguiçoso no exercício da sua intuição, vai acalentando com a afirmação reiterada, feita com tanta resignação como irónica complacência: «nunca vou compreender as mulheres». Pois nós, felizmente, cada vez compreendemos melhor os homens."
Salvo dois ou três ínfimos pormenores (não acredito, por exemplo, na "inexplicabilidade" ou "absurdo" de certas preferências - prefiriria "indízivel", por exemplo) esta análise é perfeita.
O clube de Groucho e o amor
Estratégia de luta
Este meio
Porque isto tem, obviamente, que se lhe diga, vir por um meio e não o dizer, ou dizer que se vem por um e vir-se por outro.
Prazeres da vela
7.3.09
Trapalhadas
Claro que também há coisas boas (serão decerto compensadas pelo TGV, ampliação do Terminal de Contentores de Alcântara, et al.): "Governo só tem pequenas obras para inaugurar em ano eleitoral".
6.3.09
A quebra do enguiço
A ver, absolutamente
Pintura lúdica, erótica, irónica, livre. É bom saber que a Galeria Abraço está nas mãos competentes, e exigentes, de Jorge Oliveira.
Secundário
5.3.09
Tu, o mundo, a pele
Espera, hesitação
Resumo
Mares Olhares
Obrigado.
E obrigado também ao João Severino, do Pau Para Toda a Obra, e à Io do Amor e Outros Desastres - é possível que haja outros, a quem agradeço também, naturalmente, mas estes dois são os únicos que vi.
PS - O Technorati não me parece muito fiável. Já por várias vezes me apercebi de links para o DV que eu conheço e ele não menciona. Por isso, se alguém tiver mencionado o projecto, agradeço me avisem.
Fado dos contentores
Já ninguém parte do Tejo
Para dobrar bojadores
Agora olho e só vejo
Contentores contentores.
E do Martinho Pessoa
Já não veria o vapor
Veria a sua Lisboa
Fechada num contentor.
Por mais que busques defronte
Nem ilhas praias ou flores
Não há mar nem horizonte
Só contentores contentores.
Lisboa não tem paisagem
Já não há navegadores
Nem sol nem sul nem viagem
Só contentores contentores.
Entre o passado e o futuro
Em Lisboa de mil cores
O sonho bate num muro
De contentores contentores.
Por isso vamos cantar
O fado das nossas dores
E com ele derrubar
O muro dos contentores.
De Manuel Alegre
4.3.09
As Quintas do Esplanada - II
Aqui fica o menu, para relembrar:
- Mezze mediterrânico (tapenade, houmous, tzatziki e mais, consoante o mercado);
- Galinha do Campo de Outono;
- Mousse de banana e limão verde.
E, para terminar onde começou, chá marroquino.
O preço, bebidas incluídas, é de 20 euros.
Por favor inscrevam-se, divulguem, venham, tragam a família, os amigos e os - ou as - namoradas (não todas ao mesmo tempo, a ocasião quer-se pacífica).
Inscrições para Lserpa@gmail.com.
PS - O restaurante Esplanada do Príncipe Real fica no jardim do Príncipe Real.
Imprescíndivel
Um jogo perverso
04/03/09 00:01 | Fernando Gabriel"Pressionado a retractar-se, em Fevereiro de 2005 Clay pediu finalmente desculpas -pela moderação da linguagem, por ter subestimado a dimensão do saque e por ter permanecido em silêncio durante tanto tempo.
As declarações do diplomata causaram incómodo não pelo grotesco, mas porque Clay ignorou as regras do jogo pós-colonialista. Neste jogo, os governos ocidentais prejudicam o crescimento dos países africanos através de políticas proteccionistas que diminuem a competitividade das exportações agrícolas. Em troca, pregam a superior virtude moral da ajuda financeira a África. Do lado africano, qualquer crítica à governação é denunciada como uma tentativa de "ingerência" e invocam-se imediatamente os pecados políticos do colonialismo. Todos devem abster-se de observar que este gigantesco exercício de cinismo é responsável pela pobreza, doença e corrupção da África subsaariana.
Às raras vozes que se atrevem a denunciar a perversidade sobrepõe-se a arrogância moral de redentores auto-designados como Bono ou Bob Geldof, armados de uma demagogia neo-puritana calibrada para as preferências culturais de um ocidente complacente, que adoptou o cosmopolitismo superficial da ajuda e do "comércio justo" como sucedâneos das teses sociológicas da dependência e da exploração.
Mas o jogo pós-colonialista não estava preparado para alguém como Dambisa Moyo. Natural da Zâmbia, completou um mestrado em Harvard e doutorou-se em Economia em Oxford. Trabalhou no Banco Mundial e na Goldman Sachs e acaba de publicar Dead Aid (Allen Lane, 2009) um argumento arrasador sobre os efeitos da ajuda sistemática, bilateral e multilateral, na corrupção e no empobrecimento africano.
África é abundante em exemplos espectaculares de corrupção. O mundo pasma-se com o descaramento de Mugabe, que pediu 2 mil milhões de dólares de ajuda para o Zimbabwe no mesmo dia em que gastou 175000 dólares a comemorar o seu aniversário, mas já poucos se lembram que a coroação de Bokassa como imperador custou 22 milhões de dólares em 1977, ou que os saques de Mobutu no Zaire e de Abacha na Nigéria terão superado os 5 mil milhões de dólares -cada. A evidência empírica disponível sugere que a ajuda internacional é o principal factor explicativo da corrupção africana e esta, através de diversos canais, tem um impacto negativo na taxa de crescimento, empobrecendo os países receptores e reforçando o ciclo vicioso da ajuda. Nos últimos trinta anos, os países africanos mais dependentes da ajuda externa conseguiram a proeza de diminuir a sua capacidade produtiva, registando uma taxa de crescimento média de -0,2%; entre 1970 e 1998, quando os valores da ajuda internacional cresceram até ao seu valor máximo, a pobreza africana disparou de 11% para 66% da população.
E no entanto a chuva de dinheiro ocidental continua a cair, impenitente. Tal como o puritanismo proibicionista foi instrumental no estímulo ao negócio de contrabando do álcool nos EUA dos anos 20, também o puritanismo dos redentores de África é instrumental na sustentação do negócio da ajuda externa. Pelos cálculos de Moyo, entre o Banco Mundial, FMI, ONU, ONG e agências governamentais, mais de meio milhão de ocidentais trabalham na indústria da ajuda internacional - um dos principais motivos da persistência no erro. Apesar disso e das inúmeras declarações sobre a necessidade de uma revisão profunda das instituições financeiras internacionais, ninguém se atreverá a recomendar a extinção do Banco Mundial na próxima reunião dos G20. Do mesmo modo, a ronda de Doha continuará a arrastar-se, como se o proteccionismo não fosse um dos maiores impedimentos ao crescimento.
Enquanto europeus e americanos agem como se a realidade fosse imutável, o resto do mundo continua a transformar-se e até África se está a cansar de aturar os seus benfeitores crónicos. Moyo defende que os países africanos não devem esperar mais pelo ocidente e precisam de incentivar as trocas comerciais com os que estão disponíveis: Índia, Brasil, Turquia e, sobretudo, China. Angola, por exemplo, já é o principal fornecedor de petróleo ao mercado chinês e na última década o comércio entre África e a Europa caiu de 40% para 26%. Enquanto os ocidentais oferecem prelecções sobre ‘sweatshops', os chineses investem e oferecem uma possibilidade de desenvolvimento. Ou os ocidentais corrigem os erros estratégicos, ou acabam a explicar a sua superioridade moral a países imaginários - o que até nem será muito diferente da atitude actual."
Tratado das regras da vida doméstica para uso das novas gerações - II
O problema parece no mínimo espinhoso (não é, como se verá) - daí provavelmente o meu lapso que assim adquire uma aura freudiana, de respeitabilidade. O ponto de partida para a sua resolução deve portanto ser - não é novidade - conceptual: os jovens casais devem começar por ter em conta que a igualdade absoluta não só não existe - nem no casamento, nem no amor, nem na generalidade dos afectos humanos - como pode até, se perseguida cegamente, ser perniciosa. Cito, para exemplo, o casamento que há anos conheci de uma jovem suiça-alemã com um igualmente jovem alemão que acabou em fanicos dada a procura obsessiva, racional, quantificada ao centésimo de igualdade na divisão das tarefas domésticas. Nesta área (e só nesta) o bom-senso é quem deve mandar - e do bom-senso faz parte integrante a aceitação de certas assimetrias (se virmos bem, não há nada mais maravilhosamente assimétrico do que um homem e uma mulher - peço desculpa aos dias que correm, mas não sou muito bom em casais simétricos, se bem não tenha nada contra).
A primeira pergunta a fazer é saber quais as tarefas de que cada um gosta, e quais as que lhe são essenciais (já partilhei, por exemplo - por breves, muito breves meses, verdade seja dita - a vida de uma senhora para quem fazer a cama era imprescindível. Para mim, nessa altura, não era). Aprendemos assim que um não suporta o pó nos livros, outro a roupa do dia nas costas do sofá da sala - e pode estabelecer-se uma lista (mais ou menos informal e flexível) das coisas a evitar ou a fazer absolutamente. Esta lista pode ir-se fazendo, não é necessário estarem os dois, entre o padre e o notário, sentados num degrau das escadas a decidir se pode viver sem aspirador ou com camisas mal passadas (a resposta é "não", em ambos os casos).
Podemos, também, definir as coisas que só podem ser feitas por um dos membros do casal (nesta área nós, homens, temos a vantagem da força: quando é preciso mudar o piano de sítio, quem é que o vai mudar? Já coser um botão ou passar uma camisa a ferro qualquer pessoa pode fazer - se souber, claro. E desde já aconselho todos os jovens de sexo masculino a aprender estas tarefas básicas, tradicionalmente reservadas às senhoras. Não imaginam quão úteis poderão vir a ser). A partir daqui torna-se relativamente fácil passar para o segundo ponto:
O qual é baixamente comparativo. O que é melhor? - Retomando o exemplo acima: Viver sem a senhora, ou fazer a cama todos os dias? Mudar de roupa no quarto ou vê-la ir-se embora? Insistir em ter a loiça lavada no dia do jantar, ou ... (esta pergunta não é boa)?
O terceiro item nesta lista de pontos prévios é quantitativo: de todas as tarefas, quais as que se podem externalizar, contribuindo assim para a economia e para o bem estar de uma família na Ucrânia, ou no Brasil?
Estas etapas concluídas, a divisão das tarefas domésticas torna-se um jogo de crianças (o que ela é, verdade seja dita): as tarefas vitais para que o casal se mantenha durante os previsivelmente 7 ou 8 anos que vai estar junto devem absolutamente ser feitas - ou por uma pessoa externa, ou por aquele dos dois que é mais apto (ou retira mais prazer) da sua execução, ou pelos dois, alternadamente. As outras podem ser objecto de negociações au cas-par-cas. Deve sempre ter-se em conta, como dizia o Marquês de Sade, que de todos os actos humanos se pode retirar prazer (ele exceptuava a acção de se barbear, quotidiana e matinalmente - o que só demonstra que sabia do que falava); e poder: a minha Avó, que já aqui mencionei uma vez a propósito de uma outra confusão que frequentemente envenena a vida dos jovens casais, proibia-me, por exemplo, terminantemente de entrar numa cozinha - com o pretexto, para ela irrefutável e para mim, naquela altura, bastante aprazível, de que "a cozinha não é para os homens".
Claro que a divisão de tarefas domésticas não passa, o mais das vezes, de um repositório de tudo o que não funciona num casal - e muitos preferem limitar as suas discussões a esse tópico e não abordar os outros, mais importantes. É uma opção válida; se bem, para mim, um pouco triste: entre acabar um casamento por causa da loiça ou porque o amor, essa maravilhosa tragédia que de vez em quando se abate sobre nós (e nos abate, mas isso é outra história) não funcionou, ou acabou, ou nos sufoca, quem prefere a primeira?
3.3.09
Outono
cuja vida é um contínuo
relâmpago
O tempo do amor
O tempo do amor é o futuro, sempre; e o passado, às vezes - naqueles casos, tão raros, em que o amor morreu sem surpresas, sem dor, sem futuro.
(Com uma vénia a esta senhora)
Tratado das regras da vida doméstica para uso das novas gerações
Poder-se-ia pensar que com as modernas máquinas de lavar o problema estaria resolvido, mas não está. Além de que inúmeras são ainda as ocasiões em que o jovem casal não dispõe dessa tecnologia - a qual, de resto, é barulhenta e anti-ecológica (duvido, mas fica sempre bem, nestes tipo de tratados, mostrar uma certa preocupação com o ambiente. Mesmo que não ajude a vender não nos leva directamente para as estantes dos ostracizados).
Posto isto, devo previamente prevenir (anda por aqui um cheiro a pleonasmo) os jovens casais que me vão ler do meu gosto pela prática saudável, relaxante e, repito, amiga do ambiente da lavagem manual de loiça: ou seja, este post não é objectivo, eu reconheço.
Há duas razões pelas quais a maioria das pessoas não gosta de lavar a loiça: mau timing e desorganização. É evidente que após um magnífico jantar, com toda a gente na sala a conversar, beber cognac, whisky e outras coisas, a tecer comentários elogiosos ao que acabou de comer ninguém tem vontade de lavar a loiça - como não a teria de passar a ferro ou passar o aspirador, por exemplo (a diferença sendo que estas duas actividades domésticas nunca são agradáveis, ao contrário da lavagem de loiça). Nada disso; a loiça deve dividir-se em duas fases: uma pré-arrumação, depois de os convidados saírem - dividindo os diferentes constituintes por categorias que vão do menos ao mais sujo; e a lavagem propriamente dita, no dia seguinte logo de manhã cedo. Nada há de mais agradável do que reviver, através da loiça, o alegre convívio da véspera.
Em seguida, a desorganização: a maioria das pessoas que tenho visto lavar loiça fá-lo de uma forma desordenada - o que tem um impacto negativo tanto na eficácia da acção como no prazer que dela se retira. Idealmente deve dispôr-se de dois lava-loiças, um cheio de água com sabão e outro de água sem sabão. A ordem de lavagem é a seguinte:
- Copos;
- Talheres (estes dispõem-se no fundo do lava-loiças, por agora),
- Pratos de sopa;
- Pratos de sobremesa;
- Pratos do principal.
(Frequentemente, consoante o nº de convidados e o menu, chegados a este ponto convém mudar de água - lavando então os talheres, claro).
- Panelas, frigideiras e demais utensílios, por ordem crescente de sujidade.
Algumas notas:
a) Um erro frequente que todos os jovens inexperientes cometem é passar a loiça por água quente antes de iniciar a lavagem propriamente dita. É fácil ver que se a comida se pegou às panelas, por exemplo, foi devido à acção do calor. Se lhes puseermos água quente, estamos a atrasar, e não a adiantar, o efeito de descolagem da água;
b) Não se deve deixar acumular muita loiça na bacia de água limpa;
c) Os copos ficam melhor (ao contrário de tudo o mais), se forem passados por água fria depois da lavagem;
d) A loiça deve dispôr-se arrumada no secador de loiça (pessoalmente, detesto secá-la. Quem goste pode passar directamente a essa fase) de forma a facilitar a sua posterior arrumação.
Resta, claro, o habitualmente espinhoso problema de definir a divisão do trabalho. Há duas escolas, ambas defensáveis: a que diz "um cozinha, o outro lava" - leva por vezes a certos abusos e deliciosas retaliações; e a que defende que quem cozinha lava (no meu caso, como prefiro cozinhar e lavar a loiça a, por exemplo, secá-la, ou passar o aspirador, opto por esta).
Seguindo estas normas simples, as novas gerações poderão eliminar a maior parte dos conflitos (ou pelo menos daqueles que têm a sua origem na lavagem manual de loiça).
O próximo artigo será sobre a roupa, desde a lavagem à passagem a ferro - incluindo, naturalmente, as reparações.
2.3.09
Exaustão
Poesia, outra vez
mas, ai de mim, a desgraça sombria não se vai.
as minhas noites, no palácio de al-Zâhir,
eram sem mácula, como as de qualquer rei.
ventura, depois desgraça... uma apaga a outra.
por fim, a morte apaga toda a esperança.
Al-Mu'tamid, in "Al-Mu'tamid, Poeta do Destino", Assírio & Alvim, trad., prefácio e notas de Adalberto Alves.