30.10.08

E o resto é paisagem?

"E o resto é paisagem? PÚBLICO - 30.10.2008, Miguel Gaspar

Noutros tempos era costume dizer-se que "Portugal é Lisboa e o resto é paisagem". Mas nos tempos que correm esse adágio já não faz grande sentido. A qualidade de vida na capital e boa parte da respectiva área metropolitana é hoje inferior à que se pode usufruir em inúmeros municípios situados naquilo a que outrora se chamava "província". E mesmo o direito à paisagem parece longe de estar garantido aos lisboetas. É o que ocorre dizer a propósito do projecto de ampliação do terminal de contentores do porto de Lisboa, cuja cedência até 2042, sem concurso público, a uma empresa dirigida por um antigo ministro socialista, Jorge Coelho, levanta as maiores reservas: soube-se esta semana, através do Sol, que está a analisada pelo Tribunal de Contas e já se sabia que tem a oposição de todos os partidos e movimentos representados na Assembleia Municipal de Lisboa -exceptuando, claro, o PS.

Um dos problemas em toda esta história é não se saber muito bem do que se está a falar. O Governo, por exemplo, diz que compensará os cidadãos pela parte de rio que lhe vai retirar, mas não diz aonde. Nem esclarece exactamente qual o impacte sobre a paisagem, limitando-se a afirmar que será "limitado". O presidente da autarquia afinou por este diapasão, dando o aval do município ao projecto, e joga por isso boa parte da sua legitimidade nesta questão, que promete ser um dos temas centrais da campanha autárquica.

Mas no meio de toda esta intensificação, sabe-se que falamos da triplicação da área de armazenamento de contentores naquela que é uma das raras zonas lúdicas com ligação ao rio nesta cidade - um muro de contentores de 12 a 15 metros ao longo de 1500 metros. Esta maravilha do regime implica o fim da zona das docas e um corte brutal na zona de aproximadamente quatro quilómetros, entre Alcântara e a Torre de Belém. Uma área perto da água que precisava de equipamentos decentes, comuns para qualquer munícipe de Cascais ou de Oeiras, e não de ser encurtada em um quilómetro e meio.

Vamos ao contexto? O contexto é que há anos o alfacinha ouve dizer que as mudanças a introduzir na zona ribeirinha da cidade representarão mais zonas de lazer perto do rio. O primeiro projecto a ser conhecido vai exactamente na direcção contrária. Em vez de apostar na qualificação de uma zona que pode ser valorizada turisticamente ou para o bem dos cidadãos, zás!, faz-se um armazém. Dou de barato esta ideia algo deprimente de que um "armazém" pode ser uma grande obra de regime. E leio por cima de tudo isto que, de acordo com o Tribunal de Contas, a área de armazenamento actual está subaproveitada. Então para quê investir numa empreitada destas dimensões?

Já sei: vêm aí os apóstolos do progresso declarando que obras como esta são vitais para o desenvolvimento do país. O próprio primeiro-ministro diz que, com o afundamento da linha férrea que atravessa a Avenida 24 de Julho, vai-se acabar com um estrangulamento à mobilidade da capital. Eu sei que sou pouco entendido nestas coisas dos contentores - mas podem explicar-me como é que triplicar a capacidade de armazenamento de contentores em Alcântara contribui para aliviar Alcântara?

O que fica claro é então isto. Numa cidade em crise absoluta, cujo município parece não ter programa, políticas ou discurso, em que os prejuízos colossais das empresas municipais não coíbem os respectivos gestores de comportamentos como os apontados no caso Gebalis, não é possível admitir que o maior investimento previsto pelo Estado para Lisboa vá no sentido da diminuição dos direitos dos munícipes, em favor de um projecto de utilidade muito pouco clara. Nesta cidade, pelos vistos, os cidadão são só paisagem. É uma marca de provincianismo.

Jornalista (miguel.gaspar@publico.pt) " (Via Fórum da Cidadania)

Aqui fica um artigo lapidar de Miguel Gaspar, do Público de hoje. Negritos  e sublinhados meus. A verdade é que nem o Governo nem a APL informaram as pessoas do que planeavam fazer. E a palhaçada da "apresentação" do projecto pela APL à CML, ontem, não passa de isso mesmo: uma palhaçada. Querem convencer-nos que a CML não sabia o que se estava a passar? Por amor de Deus! Tenham vergonha na cara.

A verdade é que a política neste país está cada vez mais aviltada, mais indigna, mais asquerosa, mais desavergonhada. Com que cara é que uma pessoa que foi eleita para "devolver o Rio à cidade" apresenta hoje um projecto destes?

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