15.11.07

O Carrasco Infeliz

Durante anos desprezei as pessoas, trocei delas, gozei-as, escalpelizei-lhes os defeitos. Fazia-o em silêncio: era feliz, e podia dar-me a esse luxo. Gostava do meu emprego, dos meus amigos, da minha mulher, do dinheiro que ganhava, do reconhecimento e admiração que todos tinham por mim, das promoções anuais, dos automóveis e das férias e do meu futuro; não havia nada na minha vida de que eu não gostasse.

Um dia tudo mudou. Não importa porquê - na realidade, não foi num dia, foi num ano, ou dois. Descobri os limites da prisão que tão eficazmente fui construindo ao longo dos anos; pior ainda, descobri que não sou capaz de sair dela, não sou capaz de a deixar, não sou capaz de recomeçar. As qualidades que me deram a vitória nesta vida são as mesmas que me impedem de fazer outra. Tornei-me medroso; já não desprezo toda a gente mas não me calo com os outros, com aqueles que me são repugnantes, ou fracos, e não me podem fazer mal.

Refugiei-me no medo. A maldade, sua irmã siamesa, veio por acréscimo, por bónus; agora sou mau. Dá-me um prazer simples, puro, claro magoar alguém que eu julgue particularmente merecedor dos meus devastadores comentários. Uso e abuso da má-fé, aplicando minuciosamente aquele procedimento literário que consiste em tomar uma minúscula parte de qualquer coisa e ampliá-la, distorcê-la, até que ela se torne o todo, e faça dele uma coisa horrível; faço das pessoas figuras vivas de um quadro de Bacon. Aos poucos, todos os que me rodeavam e que eu desprezava ficaram a saber o que realmente pensava - e penso - deles. Foram-se embora, e agora vivo rodeado das poucas pessoas que admiro, pessoas do meu nível, vencedores como eu, pessoas iguais a mim. Ainda não sou feliz.

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