23.7.06

Monólogo múltiplo

Só para ter a certeza, sabe?, começo com uma cerveja. Passei a noite toda a whisky, e não há bebida que se lhe siga. Pois, grape or grain, but never the twain - em português diz-se "não se deve misturar uvas com cereais". A rapariga ao meu lado tem os braços cobertos de pelos, grande e pretos. Imagino como terá o bico das mamas, coitada. Uma vez tive uma namorada com pelos nas mamas, mas nunca me habituei e à segunda ou terceira vez fui-me embora. Já noutros sítios gosto de pelos, muitos e lautos. Paradoxos. Ela tem-nos assim porque quer, sejamos directos e frontais - tanto mais que não me tiram a vontade de ser frontal, contra ela. Imagine-a sem os pelos nos braços: fica bonita, sensual, com uma cabeleira farta, densa, e uns olhos que cospem desejo como um adolescente num concurso de bisgas. Será que vai ao Hot? O namorado martela mecanicamente a sapateira enquanto ela fala e o come com os olhos, e fala, e fala. Ele vai acedendo a tudo o que ela diz com pequenso gestos da cabeça, sem parar de mastigar. Ela não se deixa impressionar: o fio do discurso nunca se rompe. Tem uma voz fina, alta, inesperadamente elegante nums braços tão peludos.

Ah, reparou? Ela tem uma aliança, ele não. A minha cerveja vai-se esvaziando ao ritmo das marteladas dele. No Hot Club poderia namorar com todas (enfim, quase todas) as raparigas que lá estavam (o inverso não é verdade, mas isso é irrelevante). Aqui não: não namoraria com nenhuma, excepto talvez a vizinha depois de uma visita ao depilador. O que é injusto, reconheço: no que toca a pelos não me posso queixar.

Parece que mudámos de um planeta para outro, não é? "Beam me up, Scotty" - ou Johnny, mais apropriado. Não acredito na metempsicose, excepto quando fazia amor com uma ou duas pequenas que conheci, repare, ou contigo, mesmo, e tu chamavas por mim como se fosse para te tirar de um abismo, mas agora há que abrir uma excepção, porque "há quanto tempo não gritas por mim?" Há quanto tempo não te vejo a cor dos olhos, o dourado do cabelo, o liso do ventre, o perfeito das coxas? Há quanto tempo? Perdoar-me-ás que olhe para uma miuda quase gira, que olha para o amante como tu olhavas para mim. A verdade é que penso em ti com todos os poros do meu corpo, com todas as sinapses do meu cérebro. A rapariga tem indubitavelmente um sorriso bonito - o sorriso do desejo é sempre bonito, todos os sorrisos são bonitos, mas fuma e tem pelos pretos e grandes nos braços. Será que fuma na cama? Quem é que dizia "há três coisas boas na vida, um whisky antes e um cigarro depois?" Acho que foi a Marilyn, mas não tenho a certeza.

Ele não vê, mas ela acaricia-se as pernas por baixo da mesa enquanto ele fala (a sapateira acabou, agora é a vez dele falar). Ela acaricia-se as pernas, lentamente, e pousa os seios na mesa, percorre a cana do nariz com as pontas dos dedos, e ele fala. Mas ela não desiste. Deixou de acariciar as pernas, porque ele não podia ver, e agora acaricia os braços, as costas, põe as mãos por dentro do vestido. Sorri e diz que sim. Ele, finalmente, pára de falar por um bocadinho e dá-lhe a mão.

Traga-me outra cerveja, por favor.

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