10.12.05

Monólogo

Um dia (antes de morrer, espero), terei de contar-te o que na realidade aconteceu. Ou melhor: o que não me aconteceu, que é muito mais - não consegui, por exemplo, deixar de te amar, nunca; nem deixar de ser o nómada que há muito não quero ser; nem ser rico, nem deixar de amar o mar, essa maldição abençoada. Tudo coisas que tentei, repara, durante muitos anos; melhor do que ninguém tu sabe-lo.

"Porque me dizes, então, que atingiste todos os teus objectivos?", perguntaste-me uma vez, lassa, farta, cansada. Estávamos na cozinha, tínhamos acabado de jantar. Uma daquelas refeições tão frequentes em nossa casa, caóticas, cada um comia vinte coisas diferentes, bebia bebidas diferentes - mas que tinham algo que nos unia e lhes dava sentido: o inesgotável prazer de estarmos juntos, sempre renovado, fosse numa mesa, num sofá ou numa cama; o gozo que ambos sentíamos em cozinhar as mais variadas coisas um para o outro; a liberdade. Mas naquele dia estavas triste - "porque pensas, ou dizes, que atingiste os teus objectivos?", insististe.

Porque na realidade consegui muitas coisas: amar-te, e ao mar, e ter-vos aos dois simultaneamente; consegui fazer do mundo a minha casa - ou melhor, no mundo fazer uma casa, do tamanho dele; e, sobretudo, consegui ser pobre sem ser miserável, o que é tão ou mais difícil do que ser rico sem ser arrogante.

II

Acima de tudo, consegui sobreviver a um sonho. E é isso que terei, um dia, que te explicar: mas é um programa ambicioso, porque os sonhos excluem, matam, afastam, aprisionam - e ganham, quase sempre; o que deixam fora de uma vida é muito mais do que eles, se bem que menos importante.

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