26.2.04

Um dia (7)

O café, o sumo de laranja e as crianças chegaram ao mesmo tempo. Tomás e Helena tinham desaparelhado os barcos, passado escotas e cascos por água doce, dobrado as velas; posto a secar tudo o que havia para secar, arrumado os barcos, mudado de roupa. "A vela é um desporto em que a arrumação das coisas e do equipamento demora tanto tempo como a sua prática", pensou Bruno, que tinha, em tempos, sido um velejador razoável.

- Na primeira bolina foste para terra e devias ter ido para o mar, seu burro - dizia Helena, que andava sistematicamente à frente de Tomás;
- Pois, mas com a maré a vazar pensei que era melhor ir para a terra - respondeu ele.
- E não se via logo que em terra havia menos vento?

Na verdade há tantos parâmetros, é preciso ter atenção a tantos pormenores, a velocidade de um barco, qualquer que seja o seu tamanho, é tão sensível a distâncias e movimentos tão pequenos, que fazer vela deixa, muito rapidamente, de ser um desporto para se tornar um englobante. "É por isso", pensava Hannah, "que é tão chato estar com pessoas que navegam: não sabem falar de outra coisa". E não são temas de conversa que lhes faltam: é simplesmente a noção, quando dois navegadores se juntam, que o universo é o mar, e tudo o resto não passa de apêndices - os livros, o trabalho, a política, os homens (para as mulheres) ou as mulheres (para os homens).

(Pequena lição de afinação de velas para neófitos):

Uma embarcação de vela avança devido à diferença de pressões que há entre a face interior da vela (a que está voltada para o lado do vento) e a face exterior - exactamente o mesmo princípio que mantém um avião no ar (mas não que o faz avançar: é por isso que o avião precisa de motores e um veleiro não). Um veleiro não é, portanto, empurrado pelo vento, erro comum: ele é aspirado pelo vento, como eu e duas ou três pessoas que me foi dado conhecer. Uma vela latina (chama-se "latina" apesar de ter sido inventada pelos árabes, que nos legaram igualmente o harém, que infelizmente não aproveitamos, e o zero) tem três lados, e um "saco" (o saco é a curvatura da vela. Uma tábua de passar a ferro não tem saco, nem o tampo de uma secretária. Hannah tem pouco saco para alguns dos seus alunos. Um saco de batatas, a minha barriga e certas peças de lingerie têm "saco").

Se uma embarcação avança devido à diferença de pressões nas duas faces da vela, é legítimo deduzir que, quanto maior fôr essa diferença de pressões, mais depressa o barco anda. Para optimizar o rendimento de uma vela, o trimmer (a pessoa responsável pela afinação da vela) pode agir nos três lados do pano (vamos, se não se importam, chamar as coisas pelos seus nomes) e no saco. Comecemos por este, que é o mais difícil: o saco é o que fornece a potência a uma vela (tal como num carro há uma diferença entre "força" e "velocidade"); quando é que precisamos de potência? - quando há vagas, por exemplo. Num mar chão preferimos a velocidade; ou em condições de vento instável. Em que parte do pano deve estar o saco? De uma maneira geral, o saco quer-se na parte da frente (à vante). Mas, se o vento fôr fraco, eu posso ser tentado - e devo ceder à tentação - de puxar o saco um pouco para ré. Um pouco, claro, muito pouco - quanto mais para ré estiver o saco, mais para o lado se orienta o vector resultante das forças, e menos para a frente o barco avança.

Para aumentar ou diminuir a potência de uma vela agimos portanto sobre o saco - o seu "volume" - e a sua posição, e agimos também sobre os lados do triângulo (o que vai influenciar, na maioria dos casos, a forma do saco): quanto mais forte é o vento mais plana eu quero a vela: e para isso estico ("caço") dois dos lados (o vertical, que se chama testa, e é caçado por meio da adriça, e o horizontal, a esteira); se o vento continua a crescer tenho que tirar ainda mais potência à vela - e para isso deixo bater a valuma, que é a hipotenusa do triângulo, caçando o backstay - ou, se fôr uma genoa, puxando para trás o carrinho de escota.

Imaginemos portanto uma situação típica do Tejo: mar chão, vento médio muito irregular. A vela quer um pouco de saco, que eu controlo com a posição dos carrinhos de escotas, e tensões médias na adriça e na esteira. Em Cascais, onde o vento é mais regular e o mar menos chão, eu mantenho o saco da vela mas recuo-o um pouco (repararam que "recuar" e "ré" têm a mesma raiz?). À medida que o vento vai crescendo, eu avanço o saco até o tirar por completo.

Resumindo: para maximizar a diferença de pressões entre as duas faces da vela (uma bandeira bate porque a pressão é igual dos dois lados - e é por isso que o pau de bandeira se aguenta muito tempo no mesmo sítio), o trimmer deve controlar a posição e a forma do pano. Para a forma, dispõe da adriça, do boom - jack , da esteira, do cunningham, do backstay (e, em certos casos, dos running backstays, ou brandais volantes, em português), dos leach lines e dos carrinhos de escotas. Para controlar a sua posição - que é a afinação pincipal de uma vela - dispõe das escotas. Uma vela plana tem mais velocidade mas menos potência; esta obtem-se aumentando o saco. Um bom trimmer é alguém que consegue "ver" o vento como se fosse azul, que consegue visualizar o percurso dos filetes de ar ao longo das velas, e que sente uma dor cada vez que apercebe um escoamento menos linear desses filetes de ar, um turbilhão. Os marinheiros gostam das coisas lineares, fluidas, ordenadas.

Claro que isto é um breve, muito breve, resumo da afinação das velas; a velocidade do barco também varia com a forma e superfície da área molhada - controláveis por meio de pesos, seja de tripulantes, de lastro ou do equipamento de bordo - com a afinação do mastro, e com a maneira como o homem do leme "governa".

Para além da velocidade, há ainda que maximizar a capacidade de navegar contra o vento (a orça) - e depois, uma vez optimizadas a velocidade e o ângulo de bolina (o mesmo que "orça"), há que fazer as boas opções tácticas - de nada serve ter uma embarcação que anda muito se o trajecto não fôr bem escolhido.

Hannah achava as conversas entre velejadores aborrecidas, ou confusas; e fora um pouco por causa dela que Bruno parara de navegar. Ela sabia, contudo, que o mar é um vírus, e perguntava-se quanto tempo resistiria ele.

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