23.2.04

Um dia (2)

Anos mais tarde, sentados num café em Cascais, falaram naquele dia. Passava um reggae ligeiro, a vida profissional corria-lhes bem, e chovia. As gotas de chuva escorriam pelos vidros como caracóis apressados. Bruno era jornalista, e Hannah historiadora.

- Ambos explicamos o que aconteceu, você há mil anos e eu ontem,- dissera-lhe ele;
- Está enganado: se estudássemos o antigo Egipto baseados no que nos contariam os jornalistas da época, ainda saberíamos menos dele do que sabemos. - Hannah sentia-se incomodada com o sorriso berlusconiano do rapaz alto e bonito que a levava nos braços, e com a situação no seu conjunto: era ridículo tropeçar à saída do eléctrico, era ridículo ter aquele homem visivelmente encantado com a situação mesmo atrás dela, e era ridículo não poder ir dar a aula. Hannah era professora universitária, e sensível ao ridículo.

"Tem o sentido de humor de um bloco de basalto antes de ser trabalhado pelo Cutileiro", pensou Bruno. Enganava-se, claro. Depois de ter passado pelas mãos do Senhor João, o basalto não ganha em humor; e Hannah tinha-o para dar e vender. Aos poucos foi apreciando estar nos braços do jovem - sobretudo desde que se apercebeu do seu cansaço. Esperavam um táxi.

- Naquela altura não havia telefones portáteis...
- De qualquer forma não terias podido utilizá-lo, tinhas os dois braços ocupados; e os olhos também, não paravas de me olhar para as mamas. - Hannah era rude, ou directa. - Já não sabia onde metê-las.
- Não me pareceste muito incomodada.
- Estava furiosa, vexada, envergonhada, humilhada. E o teu sorriso! Parecia que te saíra a sorte grande, e aproveitaras para lavar os dentes.

Hannah era grande, quase da altura de Bruno. Tinha o cabelo encaracolado, olhos verdes, e um magnífico par de seios, "maiores que a mão de um homem honesto", dizia-lhe ele.
- Não é preciso ser honesto para lhes mexer, basta eu querer.

Olhavam os dois para a chuva, ouviam distraídos o reggae, e Hannah pensava no que lhe diria Bruno se soubesse que tinha um caso com um aluno quinze anos mais novo, e quinze quilos mais leve, que ele. Decidiu não lhe dizer nada. "Há coisas que não se dizem, nem a um marido", pensou.

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