27.1.04

Fotografia

Encontrei esta fotografia do Novotel, o hotel onde costumávamos ir, ficar, encontrar-nos, onde eu ia tomar o pequeno almoço quando precisava de picante logo de manhã.

À noite era proibido andar a pé; e quando digo "proibido andar a pé", incluia atravessar a avenida que se vê na fotografia. Tínhamos que ir de carro, de um lado da rua para o outro.

Uma vez, A., J.-L. e eu acabámos de jantar num restaurante qualquer, não me lembro qual. E decidimos andar a pé. Era meia-noite (ainda não havia recolher obrigatório) e vínhamos os três, a A. cinzenta de medo, o J.-L e eu com os sentidos num estado de hiper-sensibilidade tal que se um marciano espirrasse tê-lo-íamos ouvido. Sentíamos os olhos postos em nós, porque nunca se está sozinho, em África, nem sozinho nem em silêncio, de resto. Se nos acontecesse qualquer coisa não teríamos tempo sequer de chamar por socorro, nós sabíamo-lo, mas há quanto tempo, há quanto tempo não andávamos a pé à noite?

Eu ia todos as manhãs dar um passeio à beira do lago, o que também era perigoso por causa dos hipopótamos, e porque a essa hora ainda se podiam ter encontros desagradáveis - mas à noite era impensável. Fizémos uma pacto de segredo ad eternum, válido para sempre, pelo menos enquanto estivéssemos no Burundi. Quem corria mais riscos, do ponto de vista disciplinar, era o J.-L., que era chefe de um departamento.

Mas havia poucas coisas que não fossem perigosas: no dia em que o J.-L. chegou eu aconselhei-lhe um restaurante para jantar, "bom e não muito lento" - a lentidão dos restaurantes sendo então o nosso principal critério - a norma era esperar uma hora, hora e meia por uma refeição. Eu tinha um jantar marcado com alguém, de maneira não o acompanhei. Ainda eles não tinham começado a comer, irromperam no restaurante três tipos armados de Kalashes e roubaram-lhes tudo: relógios, dinheiro, pulseiras, anéis, tudo. Não dispararam um tiro, mas deram a entender que o fariam se fosse preciso - de qualquer forma o restaurante ficava na periferia da cidade, à beira do lago, e quando o exército chegasse já eles estaria a milhas.

J.-L. teve uma chegada atribulada: duas ou três semanas depois disto organizei um almoço em minha casa, para todas as ONG com quem o departamento de logística interagia. Éramos cerca de 25 pessoas e eu tinha mandado fazer um buffet porque teríamos de comer no jardim, eu não tinha epaço em casa. Uma hora antes dos convidados chegarem começaram combates nas colinas mesmo atrás da casa, e passámos o dia todo a ouvir tiros e bombardeamentos - e o J.-L., que tinha sido coronel na artilharia, comentava, como se fosse um relato: isto é um obus de 15, isto é não sei o quê, esperem que agora a seguir vai isto ou aquilo... O almoço estava muito bom, felizmente, porque eu tinha um cozinheiro excelente, e estabelecei relações óptimas com a malta das ONGs, que não gostava do UNHCR. Uma reacção semelhante à que leva as pessoas a não gostarem dos Estados Unido, penso. Só que naquele caso um bom cozinheiro, umas cervejas e muita conversa chegaram para eliminar muita da desconfiança - de resto mútua.

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