31.12.03

Saudades

Descobria, inquieto, que escrever-lhe já não era só um prazer: era também uma necessidade. Ainda não a conhecia e já tinha saudades dela.

Escrever

Já não sei a que língua pertenço, a que país. Escrever é um pouco como procurar o melhor itinerário nas ruas de Genebra, actividade à qual me dedico todos os dias, montado num scooter velho, extenuado e extenuante. Cá estou, outra vez entre duas vidas, dois países, duas ou três línguas e uma incálculavel quantidade de paisagens, geográficas ou emocionais, pelas quais fui desde sempre atraído e das quais fui sempre fugindo, umas vezes voluntariamente, outras não.

Escrever é como percorrer as ruas frias, feias e pouco convivais de Genebra sem um mapa; a cada esquina um precipício e indescritíveis monstros, disfarçados de polícias. Mas os caminhos da escrita são mais bonitos – e há mais palavras do que ruas, o que torna o exercício mais cativante; se bem que as punições sejam piores: não há multa que pague uma frase mal escrita, uma palavra mal escolhida, uma analogia deselegante, uma vírgula fora do lugar.

Do francês, Cioran dizia: “esta língua de empréstimo, com todas as suas palavras pensadas e repensadas, afinadas, subtis até à inexistência, dobradas sob as exacções da nuance, inexpressivas porque já exprimiram tudo, assustadoras de precisão, discretas até na vulgaridade... Uma sintaxe duma rigidez, duma dignidade cadavérica encerra-as e atribui-lhes um lugar do qual nem Deus os poderia desalojar”. E depois do que é para mim a melhor descrição da língua francesa que jamais li, vem este notável bocado: “A pátria não passa de um acampamento no deserto, diz um texto tibetano. Não vou tão longe: trocaria todas as paisagens do mundo pela da minha infância”.

A verdade é que eu não sei a que chamar, realmente, “a paisagem da minha infância”: será a Linha de Cascais, com a Marginal, esse cordão umbilical que sempre me ligou a Lisboa, e onde, ainda hoje, me acontece chorar quando vejo o sol pôr-se atrás do farol da Guia, e a luz se torna espessa e dengosa e côr-de-laranja como uma mulher das ilhas? Ou será Quelimane, em Moçambique, com aquelas intermináveis filas de coqueiros, onde sonhei as minhas primeiras aventuras, sentado na mangueira ao lado de casa, a encher-me de mangas verdes com sal, porque era o título de um livro de poesia (de um poeta que só muito mais tarde vim a conhecer e apreciar)? Ou ainda, esticando um pouco os limites da infãncia, Lourenço Marques, cuja baía conheço como as minhas mãos, onde a adolescência me apanhou e com ela as primeiras dores de amor, imediatamente diluídas em Nietzsche e em whisky? Onde é, o país da minha infância?

Percorro as ruas de Genebra montado na minha scooter e tateio o meu caminho através da escrita, tarefa nobre mas fastidiosa – e penso em todas as coisas que escrevi e deitei fora, porque não sabia, só hoje sei, que escrever é um castigo, uma faxina, um embaraço. Pensava nessa altura que cada frase devia ser sublime imediatamente, porque no fundo sou preguiçoso e não há nada que mais tema do que a lassidão. Hoje sei que não é verdade, as palavras vêm como vómito, depois é preciso limpar tudo, cada sílaba, cada gaveta, cada prateleira, cada canto do espelho - porque escrevemos e vomitamos sempre à frente de um espelho, numa tentativa - falhada - de nos desgostarmos de nós e da escrita para sempre.

Hoje, montado na scooter, não são as ruas de Genebra que eu vejo: são as inúmeras avenidas, ruas, becos, autoestradas, por onde andei ao longo dos anos, labirinto sem fim do qual o ponto de chegada é, inevitavelmente, o ponto de partida; e onde não há polícias para nos castigar – só as palavras e a morte, porque uma vida perdida é uma morte antecipada. E é dessas ruas, avenidas, becos sem saída, carreiros e caminhos de cabra que quero falar, um pouco como um arquitecto que fizesse os planos da casa depois dela construída.

Genève, 2000

O Verbo e a Verba

Ao princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus. Depois veio a Verba e ficou tudo estragado. Com o Verbo pagava-se o whisky e atraíam-se as pequenas (naquele tempo o mundo era um vasto paraíso tropical, onde as mulheres eram brasileiras e o whisky escocês). Mas Deus, ou alguém no lugar Dele, inventou a Verba, e o whisky deixou de cair do céu, e para elas começou a ser preciso Verba e ainda mais Verbo.

(Como todos os seres do sexo feminino, de qualquer espécie, a Verba em breve tomou o controle de tudo – lembram-se da história do padeiro que se casou com a Maria Albertina? Poucos tempo depois do casamento, ela começou a ser conhecida como “a mulher do padeiro”; mais alguns meses e era “a padeira”; não tardou muito, e o padeiro ficou “o marido da padeira” - para sempre...)

E agora a Verba é Deus, e o Verbo completamente inútil.

Felação

Esta não foi, de certeza, a melhor felação que já me fizeram - esse título está com outra boca, outros olhos - mas foi a mais inesperada, e de qualquer forma aproxima-se muito.

Eu tinha acordado cedo, como de costume, e a empregada trouxera-me o pequeno almoço: ovos estrelados, bacon, sumo de laranja, um galão frio, quase gelado, e torradas. A casa era uma daquelas construções coloniais assentes em pilotis, com uma varanda de quase três metros a toda a volta. Depois do pequeno almoço, fui sentar-me na cadeira de balanço a ler o jornal. Ainda só tinha os shorts vestidos, sem nada por baixo, porque apesar de cedo já estava calor. A minha mulher dormia ainda, e as crianças tinham ido passar o fim de semana a casa de uns amigos na cidade.

A empregada levantou a mesa e põs-se a limpar o chão da varanda, de gatas: uma metade de casca de coco em cada mão e um pano debaixo de cada joelho. Quando chegou ao sítio onde eu estava sentado olhou para mim e continuou a esfregar. Mas pouco depois voltou a olhar para mim, e para os meus calções, onde, apercebia-me agora, o pénis e os testículos eram completamente visíveis.

Sem uma palavra, sem um olhar, sem sequer tirar os panos dos joelhos, ela aproximou-se, tirou-me o membro para fora e começou a chupá-lo. Não trocámos uma palavra, ninguém nos viu, ninguém nos ouviu; eu tentava transformar em suspiros os urros de prazer que tinha vontade de dar. O dia estava completamente imóvel, não havia sopro de vento, nada se mexia salvo a língua e os lábios dela. Estávamos na estação quente e em breve o calor seria infernal.

Quando acabou, cuspiu o esperma para um dos panos, limpou-me com a manga da camisa, foi buscar outro pano e continuou a esfregar o chão da varanda. Eu fui para o quarto deitar-me ao lado da Maria José, e tentar fazer-lhe amor. A coisa repetiu-se duas ou três vezes; depois despedi a empregada, e recusei sistematicamente todas as jovens que se apresentaram para a substituir.

Baleias

Há dias fui ouvir um concerto do Chico António, um – justamente – reputado artista local que cultiva uma certa semelhança física com o Miles Davis. O concerto foi mau, ou pelo menos medíocre. O que mais me impressionou foram os seios da cantora: eram enormes, cada um deles maior que a cabeça dela. Os dois juntos faziam pensar numa baleia encalhada na praia. Cantava bem e era muito simpática.

Havia também uma dançarina, muito magrinha e cujo corpo parecia estar dividido em seis partes: dois braços, duas pernas, a cabeça e o torso. E cada uma destas partes, por sua vez divididas em sub-partes e sub-sub-partes, parecia dançar independentemente das outras, coordenadas somente por qualquer coisa exterior à míuda. Era impressionante vê-la mexer-se porque parecia que se estava a ver seis pessoas a dançar ao mesmo tempo e no mesmo ritmo – todas em harmonia, todas sincronizadas. Mas havia um só corpo e um só sorriso, que lhe atravessava a sua cara como uma linha de comboio, e era honesto, bonito, comunicativo.

Há anos que escrevo e re-escrevo um poema que começa assim:
Por que portos navegaste,
Por que corpos?
Por que praias encalhaste,
Por que ventres?

Não me lembro bem do resto: cada versão é diferente da anterior (e pior), e está perdida num computador diferente. Acaba mais ou menos assim:
Para que nortes navegaste,
Para que mortes,
Solidões.

Vem isto a propósito dos seios da cantora: quando as baleias encalham na praia morrem esmagadas pelo seu próprio peso: os orgãos esmagam os que lhes estão por baixo. As baleias morrem esmagadas por si-próprias, como eu. Só que eu ainda não estou morto, e ainda não perdi a vontade de lutar. Afinal de contas conheço muitas histórias de pessoas em situações piores que a minha. Como a daquele pescador de bacalhau que se perdeu no bote e que apertou as mãos à volta dos remos para que quando estas gelassem ele pudesse continuar a remar – e assim chegou à Islândia. Tiveram que lhe serrar os punhos. Este mesmo gajo atravessou mais tarde o Atlântico sozinho, à vela, se bem que eu ainda esteja para perceber como é que ele fez sem as mãos – e não só o fez, mas ainda foi mais rápido que o Alain Gerbault, que tinha as duas mãos e escrevia muito bem, mas que para navegar mais valia estar quieto.

Ou então uma das minhas histórias favoritas, a do capitão “Fora ou Dentro”, como ficou a ser conhecido. Ele era mau, esse capitão, e nos tempos em que ser mau era a norma, ser considerado mau implicava certamente aquilo a que os ingleses chamariam “um mau carácter”. O homem era odiado, profundamente odiado pela tripulação - a qual um dia decidiu deitá-lo ao mar. Ora se há um tabu no mar é o de que não se deitam homens vivos ao mar - pode-se castigá-los, e as possibilidades de castigo são inúmeras, limitadas somente pela imaginação ou pela crueldade de quem castiga: pode enforcar-se a vítima, deixá-la morrer de fome, passar-se-lhe os ferros, dar-se-lhe a volta por debaixo do casco do navio amarrada pelos pés e pelas mãos – mas não se deita uma pessoa viva ao mar. E, claro, muito menos o capitão. Mas este capitão era mau, horrivelmente mau, e um dia um grupo de homens pegou nele e passou-o pela borda fora. Quando ele estava do outro lado da balaustrada os homens não conseguiram largá-lo (é difícil matar uma pessoa, não é? Esperar que ela morra é mais fácil) e ele ali ficou, nas mãos de marinheiros a quem ele tinha batido, injuriado, humilhado, insultado, a dois metros de uma água na qual sobreviveria quando muito cinco minutos. E como a tripulação hesitava, disse-lhe:
- Ou fora ou dentro, seus filhos da puta, que isto é que não é lugar para um homem.
Os pescadores não tiveram coragem de o deixar cair, puxaram-no para bordo, e o capitão arreou-lhes um arraial de porrada que ainda hoje é célebre nos anais da pesca do bacalhau. E fez uma participação disciplinar, que era o castigo supremo, nessa altura. Quando os hábitos “novos” chegaram ao bacalhau, os pescadores pediam aos jovens oficiais que lhes batessem, mas que não participassem à companhia as faltas e erros que tinham cometido.

Nunca estive, enquanto naveguei, em condições muito extremas: tenho, como cada um de nós, a minha quota-parte de mau tempo, da qual a pior foi sem dúvida a cauda de ciclone que apanhei no Atlântico, e a minha parte de dias sem vento, que são igualmente horríveis. Uma vez vinha sozinho dos Açores no “Aquarelle”, um barco cuja beleza estava muito longe de corresponder à do nome. Não havia um sopro de vento, e tinha arriado o pano e decidido ir ver o que se passava com o alternador, que não estava a carregar as baterias como devia ser.

A meio do trabalho, e por nenhuma razão em especial, resolvi vir cá acima. A vinte metros do barco passava, imperial, uma baleia de bossa. O mar estava calmo como água no lava-loiças, transparente, e o efeito de lupa fazia a baleia parecer ainda maior do que na realidade era. Mas ela era, garantidamente, maior do que os dez metros do barco, e muito mais pesada.

Estava a passar-me por bombordo, calma, imponente, e desapareceu. Eu voltei para baixo e continuei a desmontar o alternador. Mas pouco depois a mesma intuição voltou a fazer-me subir. E a baleia desta vez passava por estibordo, em sentido contrário, e mais perto ainda do barco. Seriam precisos dons de escritor muito, muito superiores aos meus para dar conta da beleza do espectáculo: era indescrítivel. O mar estava liso como alguns ventres de que me lembrarei toda a vida, e totalmente transparente. A baleia não estava a mais de quinze metros de mim. Podia ver-lhe a pele e as inúmeras marcas que a adornavam, lembrança talvez de titânicos combates com gigantescos monstros das profundezas; podia sobretudo cheirá-la – e não há na terra ou no mar cheiro pior, mais pestilento, mais infecto do que o de uma baleia. Há qualquer coisa de mágico no cheiro da baleia, de tão mau, tão primordial, tão de profundiis.

E ali estava, pano arriado, um magnífico dia de sol, a duzentas e cinquenta milhas dos Açores, na companhia de uma baleia de bossa que pesava pelo menos o dobro do que pesava o meu “Aquarelle” e que media um bom metro mais do que ele. A cena era linda, maravilhosa, mas eu estava inquieto: semanas antes tinha lido a história de um solitário bastante experiente que tinha chamado o CROSSMED (o organismo francês de busca e salvamento no mar) porque tinha uma baleia a coçar as costas na quilha do barco. Era um tipo experiente, dizia ao CROSS que sabia que não havia nada a fazer, ele só lhes pedia que ficassem alerta porque os nervos estavam quase a abandoná-lo e talvez fosse preciso eles irem buscá-lo, se a quilha cedesse. Ali onde eu estava não havia CROSS nem apoio psicológico – e mesmo tendo eu uma confiança ilimitada no “Aquarelle”, que era uma espécie de cofre forte flutuante, não tinha vontade de servir de escova de costas a uma baleia que tinha sobrevivido a todos os combates de que ela mostrava as cicatrizes. E da qual eu via os olhos, cruéis, pequenos e, parecia-me, fixos em mim.

Via-lhe os olhos e a pele com as cicatrizes e crustáceos agarrados, depois vi-lhe a cauda – e aí vi que tinha de me pôr a andar dali para fora a toda a força: a baleia estava a dar meia-volta mesmo à minha popa, a meia-dúzia de metros do barco.

Desci a correr para pôr o alternador em condições de poder ligar o motor. Quando subi, já ela estava ao meu lado outra vez, agora muito mais perto. Pus o motor a trabalhar e ela assustou-se: expirou um grande jacto de água, cujo cheiro era ainda pior, se possível, e mergulhou batendo com a cauda na água. O barulho foi ensurdecedor. Parecia que tinham dado um tiro com uma peça de artilharia. O “Aquarelle” vibrou até ao galope do mastro. O meu coração batia tão forte que fechei a boca, de medo que ele se fosse embora e me deixasse ali sozinho.

Mas o vapor de água e o cheiro repugnante dissiparam-se rapidamente. Todos os traços do mergulho se desvaneceram da água, e de repente tudo estava calmo outra vez, o “Aquarelle” sozinho no mar e eu sozinho dentro dele. Ao fim de meia hora parei o motor; depois, encontrei a avaria do alternador e acabei de o montar. De vez em quando olhava para baixo, para o azul do mar, sabendo que era perfeitamente inútil. Não a veria chegar, se ela se quisesse vingar do susto que eu lhe tinha pregado.

São animais surpreendentes, as baleias. Nos anos que se seguiram vi muitas, e ouvi muitas histórias delas. E os homens que as caçavam também são impressionantes. Na Horta conheci um desses arpoadores (de cachalotes, que nos Açores é o que eles caçavam: as baleias afundam-se quando mortas), um dos últimos. Esse tipo era grande: cada braço dele parecia uma das minhas coxas, e cada coxa dele era do tamanho do meu torso. Deslocava-se numa motocicleta ridícula, que desaparecia totalmente debaixo daquela massa de músculos. Só se lhe via a parte inferior dos pneus, completamente vazios porque não há pressão que suporte o peso de tamanho monolito. Via-o passar todos os dias à frente do Peter e os braços dele faziam-me sentir uma certa pena dos bichos. Sempre pensei que o problema dele devia ser medir a força com que atirava o arpão, não fosse este atravessar o cachalote e perder-se nas profundezas do mar.

Eu também precisava de uma força assim, para lutar contra estas baleias que me invadem e me sufocam e me assaltam de todos os lados.

Por que portos

Por que portos navegaste,
por que corpos?
Por que praias encalhaste,
por que ventres?

Em quantas línguas mentiste,
contra quantos ventos bolinaste,
a quantas tempestade aproaste,
de quantas fugiste?

Quantas mãos te acariciaram,
quantas vagas?
Quanto olhos te guiaram,
quantos faróis?

Quantos sóis observaste,
quantos seios?
Quantas rectas te situaram,
quantas pernas,
quantos braços?

Em quantas cartas traçaste um rumo,
quantas peles?

Quantos nortes te esperam,
quantas mortes, solidões?

Refúgios

Talvez devido às nossas origens animais, temos tendência a ver um refúgio como um lugar físico, uma paisagem, uma casa, uma gruta. Não é necessariamente assim: podemos por exemplo refugiar-nos na música (particularmente na de uma cantora de jazz chamada Jeanne Lee, ou na música medieval, e mística, de Hildegarde von Bingen, ou na 5ª sinfonia de Mahler; ou em tantas outras). Podemos também refugiar-nos no álcool, especialmente no vinho ou no whisky, numa tentativa camusiana - isto é, inútil mas necessária - de afogar os demónios; podemos refugiar-nos nos livros, ou num corpo feminino (desde que esse corpo tenha uma alma, porque um corpo sem alma não é um refúgio, é um poço, é como cair a um poço). Muitos de nós refugiam-se na solidão: não é um bom refúgio, para mim. É o lugar da memória, da abjecção (“Solo una cosa no hay: es el olvido./ Diós, que crió el metal, crió la escória / y cifra, en su profética memória / las lunas que seran, y las que han sido”, dizia esse outro gande refúgio argentino).

A depressão é um refúgio, também; o pior e o melhor deles: é o mais doloroso, o mais cruel, o mais indescritivelmente maldoso, e o mais eficaz, porque nos isola de metade do mundo, do prazer, da felicidade, do bem-estar. E só nos deixa ver a dor, a miséria, a escuridão. A depressão é como ter que andar com uma fractura exposta que não se vê, não se vêem as feridas dilaceradas, não se vêem as carnes rasgadas, não se vê o sangue, não se pode cortar o mal pela raiz sem cortar o mal tout court, ou a raiz. A amizade tão-pouco é um bom refúgio: não depende só de nós, e num bom refúgio devemos ser autónomos, por definição, sozinhos.

(Alguém dizia que a liberdade é a possibilidade de cada um escolher as suas própias prisões; um refúgio devia ser a versão optimista de uma prisão - como se houvesse versões optimistas do que quer que fosse...)

Mas enfim, devo reconhecer que tenho um refúgio secreto em Portugal, e que esse refúgio é um lugar físico: é o mar; em especial aquele pedaço de mar que vai do Cabo da Roca ao Cabo Raso, do qual nunca me canso, no qual nunca me canso. Gosto do contraste entre as linhas verticais do Cabo (que não são bem verticais, são oblíquas e um pouco grosseiras, como se estivesse a chover rocha) e a curva graciosa e horizontal da praia. Gosto do Guincho a pé, a cavalo ou de bicicleta, de carro ou de avião. Gosto de passar o Raso quando venho a navegar do norte porque é quando se começa a cheirar a terra, e a serra de Sintra tem um cheiro bonito, a pinhais e a maquis – um pouco como o da Córsega, mas mais bonito, porque esta é a minha terra, e o cheiro vem carregado de passado; o da Córsega só tem presente. Gosto de estar no mar a olhar para a terra e na terra a olhar para o mar. Gosto do Guincho nos dias de vento, que são muitos, e nos dias sem vento, que são mágicos. Gosto do Guincho aos domingos, nos dias de procissão automóvel, e às segundas-feiras à noite, quando não há ninguém para ver o facho luminoso do farol apontar para a América, para o mundo. E isto apesar de não gostar de praia. Mas o Guincho, e aquela zona da qual ele é a alma, se não o centro, não é só uma praia: e ainda bem, porque como praia deixa um pouco a desejar, não é?, com aquelas correntes, a água glacial, as rochas, as ondas desencontradas, o vento.

Gosto daquele bocadinho de mar porque nele me refugio desde a infância, e os refúgios da infância nunca mais nos abandonam, sejam eles uma paisagem ou uma cabana nas árvores. Gosto daquele bocadinho de mar: e é nele que gostaria de me refugiar, um dia. Para sempre.

Cascais, 23/12/02

30.12.03

Visitas

Qualquer dia ir-se-ão todos embora. A queda, de novo.

Ela

Pensava nela, de viagem numa cidade que ele não conhecia. Tão pouco a conheço a ela. Será bonita? Será sensual? Ao telefone, a voz era agradável: quente, redonda, segura. "Quando se olha para alguém só se vê metade dessa pessoa", diz o inevitável provérbio chinês. E quando nem sequer se viu a pessoa, qual a parte dela que se conhece?

Passeios matinais

Todas as manhãs ele ia passear, para perder peso e tristezas. Em relação ao primeiro objectivo podia averbar uma vitória.

Ia até ao Estoril pelo Paredão e quando voltava para trás Cascais começava a receber os primeiros raios de sol, um pouco langorosa. Cocteau descreveu Veneza como uma "preta no banho". E Cascais, que seria? Uma loira e estúpida (não há nenhuma relação entre os dois termos) que se esqueceu de fechar as persianas e acorda irritada com a primeira luz. Pede ao marido para ir fechá-las. E ele vai, porque ela é bonita e irresistível.

E assim ele começa o dia, todos os dias: o mar e a luz do mar.

29.12.03

O princípio

Ele, cuja maior aspiração era a normalidade, que a sua vida se transformasse, finalmente, num longo rio tranquilo, sentia-se de novo atraído pela originalidade, pela excentricidade, pelo único.

Nela, essa excentricidade não constituia o cartão de visita que ele inicialmente temera: era tão-só mais uma peça no seu conjunto de defesas, mais uma pedra na muralha. Num país conformista e conservador como Portugal, no qual só em alguns sítios de Lisboa a diferença era aceite ou solicitada, ir viver para o interior e brandir a sua unicidade como um estandarte não era uma provocação: era uma - mais uma - fuga para dentro. E, inevitávelmente, Nuno Júdice veio-lhe ao espírito: "Comecei a fugir para dentro. É cada vez mais difícil não fugir para dentro".

Desejou-lhe boa viagem, em silêncio, e foi dar o seu passeio matinal. "Gostaria que me telefonasses, ou escrevesses, ou me levasses contigo", pensou, ao fechar a porta.